domingo, agosto 23, 2015

Treta da semana (passada): enviesamento.

Um artigo do autor cristão J. Warner Wallace argumenta que os ateus são mais enviesados do que os cristãos por dependerem demais da ciência. Segundo Wallace, «a alegação de que “a ciência é a única forma de se saber a verdade” [...] não pode ser confirmada pela ciência»(1) e, por isso, a ciência não pode ser a única forma de saber a verdade. Cheque mate. Wallace defende alguns disparates que dão jeito ao literalismo bíblico mas que são obviamente falsos, como o de que «a ciência não pode determinar o que é historicamente verdadeiro.» As mesmas equações que usamos para determinar onde a Lua vai estar na próxima semana também servem para saber onde esteve na semana passada e todos os dados que a ciência usa são históricos, seja o resultado da experiência de ontem seja a luz que saiu de uma galáxia distante há dez mil milhões de anos. Mas o fundamental da tese de Wallace é interessante porque é um argumento muito usado – a tese de que a ciência é apenas uma crença enviesada dá imenso jeito para propagar tretas – e porque assenta num mal-entendido importante acerca do que é a ciência. Mas primeiro, o problema das “verdades”.

Segundo Wallace, «Existem muitas coisas que podemos saber sem o benefício da ciência. […] Verdades matemáticas e lógicas […] Verdades metafísicas […] Verdades éticas e morais [ e ] Verdades estéticas». Isto confunde três coisas diferentes. O problema de determinar o valor de verdade de uma expressão como “é imoral espetar ferros num toiro” advém da expressão, apesar das aparências, não ser uma proposição enquanto não se especificar o que é ser imoral. Mas, uma vez definido o termo, determinar se a proposição é verdade torna-se um problema científico. Por exemplo, se o imoral é causar sofrimento, então é imoral espetar ferros no toiro se o toiro sofrer com isso. Determinar se o toiro sofre é um problema científico, objectivo, para se resolver com recurso a testes empíricos.

Na matemática, na lógica e na metafísica podemos estipular verdades por definição. Por exemplo, na álgebra da escola primária é verdade que 1+1=2, na álgebra de Boole* a verdade é que 1+1=1 e nada nos impede de inventar uma álgebra na qual 1+1=3. Mas o significado comum de verdade é a correspondência entre uma descrição e a coisa descrita. Neste sentido, se somarmos laranjas a melhor descrição (a verdade) será 1+1=2 mas se juntarmos cardumes 1+1=1 será a descrição mais correcta. Ou seja, 1+1=2, 1+1=1 e 1+1=3 são todas verdadeiras por consistência com os axiomas respectivos. Mas 1+1=2 é verdadeira por correspondência nuns casos, 1+1=1 noutros e, tanto quanto sei, 1+1=3 não serve para nada.

Inventar afirmações que pretendem descrever a realidade, por si só, não nos dá conhecimento. Para a sabedoria é preciso também identificar, entre essas infinitas possibilidades, quais as que melhor correspondem ao que queremos descrever. Isso é o que faz a ciência e é por isso que «“a ciência é a única forma de se saber a verdade”». O problema principal da tese da ciência ser apenas uma crença enviesada é ignorar a diferença fundamental entre a ciência e o resto. Nas religiões, teologias e tretas afins, o procedimento padrão é assentar argumentos dedutivos numas poucas premissas tidas como inquestionáveis. Que Deus existe e inspirou a Bíblia ou que os astros influenciam a nossa vida conforme a sua posição aparente, por exemplo. Se a ciência fosse assim, realmente seria apenas mais uma treta. Mas não é.

A ciência não deduz uma conclusão a partir de um conjunto de premissas. A ciência procura as melhores explicações admitindo todas as premissas. Por exemplo, se admite a premissa de que a Terra é plana, admite também que pode ser cúbica, ou esférica ou esferóide alargada no equador. Admite também várias hipóteses sobre fios de prumo, relógios solares, esquadros e réguas. Depois interpreta a sombra ao meio dia a várias latitudes e os eclipses lunares à luz de cada combinação de premissas – não há dados brutos que possam ser apreendidos sem assumir nada – e nota que, na vasta maioria dos casos, as coisas não encaixam. Eventualmente, isto obriga a concluir que a Terra é aproximadamente esférica, mais uma data de coisas. Que por sua vez levantam novas questões, inspiram novas fornadas de hipóteses e novas iterações do processo. Sem nunca acabar. A ciência não assume à partida que isto ou aquilo é que é verdade. Explora continuamente todas as hipóteses em aberto à procura das melhores explicações.

É também assim que podemos concluír que este método é o único que produz conhecimento de forma fiável. Porque, ao admitir qualquer hipótese, engloba todos os métodos alternativos. Se o criacionismo evangélico, por exemplo, fosse verdade, já faria parte das melhores explicações científicas. Não seria mais estranho do que a relatividade ou a mecânica quântica. Além disso, enquanto métodos de produção de conhecimento, as supostas alternativas não passam de versões amputadas da ciência. Em ciência não há mal nenhum em admitir a hipótese da Bíblia ser o livro de Deus e literalmente verdadeira. O que é preciso é também admitir a possibilidade da Bíblia ser uma obra de ficção, entre outras hipóteses, e avaliar imparcialmente as explicações que resultam de cada uma. Isto o cristianismo evangélico tem dificuldade em fazer. E, finalmente, por não presumir que as coisas são assim e pronto, a ciência está continuamente a encontrar mais detalhes e melhores explicações. Ou seja, mais conhecimento. Enquanto os criacionistas andam a defender narrativas da idade do bronze, a ciência está a revelar como o universo realmente se formou e a mostrar-nos como curar doenças, usar a energia do Sol, comunicar instantaneamente de um lado ao outro da Terra e pousar sondas em cometas.

*Adenda: Em rigor, na álgebra de Boole esta operação é a disjunção e não a soma. Mas muitas vezes simplifica-se a notação representando a disjunção pelo sinal + e o ponto principal aqui é que podemos inventar as regras e a notação que quisermos.

1- Traduzido pelo Mats no seu blog: Os perigos do “Cientificismo”

8 comentários:

  1. 1+1=3 não serve para nada mas 1+1+1=1 dá um jeitão para justificar que pai é filho e é(são) espírito. :-)

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  2. Ludwig,

    «Mas primeiro, o problema das “verdades”»
    Creio que o problema não seja saber qual é a "verdade", com ou sem significado metafísico. O problema, tanto quanto consigo perceber destas coisas e por isso é algo meu, é como obter conhecimento. O objectivo último é conhecer, e se daí obtemos verdade, melhor, mas não é o objectivo principal, ao contrário das crenças onde o papel da "verdade" parece ter primazia.

    «A ciência procura as melhores explicações admitindo todas as premissas.»
    Creio que tal não deve ser bem verdade, afinal a ciência é um acumular de conhecimento, e sabendo que há caminhos que são becos sem saída, qual é o mal de os descartar? Já no post anterior escrevi sobre este tema, saber identificar as ideias erradas faz também parte do processo.

    «Em ciência não há mal nenhum em admitir a hipótese da Bíblia ser o livro de Deus e literalmente verdadeira.»
    Em boa verdade, seria necessário admitir muitas mais hipóteses: devemos considerar os Upanixades, o Alcorão, os Veda, o Popol Vuh, o Livro dos mortos,...? Quais os prós e os contras de cada um deles? Que conhecimentos podemos obter de qualquer um deles? Em que medida a informação que lá está ajuda ao desenvolvimento da sociedade? Creio que todas as hipóteses já falharam no passado, logo não há interesse em repetir...

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  3. Ludwig,

    «Em ciência não há mal nenhum em admitir a hipótese da Bíblia ser o livro de Deus e literalmente verdadeira. O que é preciso é também admitir a possibilidade da Bíblia ser uma obra de ficção, entre outras hipóteses, e avaliar imparcialmente as explicações que resultam de cada uma.»

    Em ciência e em filosofia e em teologia e em antropologia..., ou seja, não há RAZÃO nenhuma para não se pensar sobre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto, o belo e o feio, o vício e a virtude, etc.. Aliás, há muitas BOAS RAZÕES para se pensar, "científicamente" e não só, sobre a Bíblia ser o livro de Deus ou mera criação humana, de mera ficção, pensamento, moral, história, jornalismo, etc..

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  4. Não dizem que em sinergia "1+1" pode ser igual a "4"?

    Perfeito artigo, ajuda muito a esclarecer essas confusões que os criacionistas insistem em continuar espalhando.

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  5. Podemos compreender o mundo sem a intervenção da crença?
    Parece-me que na história do pensamento humano quem melhor exprimiu esta ideia foi Descartes : Se penso, logo existo. Ou seja, a crença de que existia por ter essa faculdade miraculosa de pensar. No fundo, aquele sentimento básico e fundamental do sobressalto do ser, de ter consciência de si e do mundo que o rodeia, em última análise, de perceber que é alguma coisa, uma coisa que sente e que sabe que existe. Pelo menos, como pensamento.
    Se penso , logo existo, se penso, logo sou. Mas se este sentimento, esta sensação ou consciência de ser e de existir não tiver, afinal, nenhuma tradução real ? Se a mente for apenas um sonho insubstancial, um programa virtual, uma trágica ilusão ( mas mesmo assim, algo de significativo ), como aponta o Solipsismo ?
    Na verdade, existe uma crença fundamental antes de toda a crença, que é a crença na possibilidade da existência da própria crença - Eu acredito porque sou impelido naturalmente a acreditar, eu acredito que sou e que existo, eu acredito que acredito.
    A sublime explosão de subjectividade que determina o nascimento da consciência ( quando o ser estala com o pensar ) e que o axioma cartesiano reflecte tão bem, é, na realidade, a génese de toda a crença.
    Está bem, eu sei que se bater com força com a cabeça contra a parede, de imediato vou saber com quantos paus se faz uma canoa. Todavia, a dor lancinante que obviamente iria sentir teria apenas uma variável, é que a ilusão, assim, seria mais perfeita.

    (...) No princípio, Deus criou a terra e observou-a com atenção na Sua solidão cósmica.
    E Deus disse: façamos seres vivos com o barro, para o barro ver o que Nós fizemos.
    E Deus criou todos os seres vivos que se movem e um deles foi o homem. Só com o homem o barro podia falar.
    Deus inclinou-se para o barro, enquanto o homem olhou à sua volta e falou." Qual é o propósito de tudo isto", perguntou. "Tudo tem de ter um propósito?", perguntou Deus.
    " claro, disse o homem."
    "Então, encarrego-te de encontrares um para tudo isto", disse Deus.
    E foi-se embora.(...)
    Kurt Vonnegut

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    1. Castro Fernandes,

      Acredito que possa acreditar em muitas crenças! :-)
      Mas, sobretudo, acredito que não é a crença que está em causa, mas se a ciência é uma crença.
      Eu sou dos que "acreditam" que em ciência mais do que "acreditar", é preciso ter boas bases para aceitar. É esta a grande diferença, uns acreditam, outros aceitam os modelos e as teorias.

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  6. A nossa mente " foi programada " para nos dar todas as respostas. Agora, é preciso saber perguntar. Está lá tudo. E quando se diz tudo, é mesmo tudo. E não é a natureza que responde a este desafio, nem é ela que coloca as questões, é a mente humana que outorga significado, é a mente humana a debruçar-se sobre si própria.
    O presente , o passado e o futuro, a vida e a nossa existência, a realidade e o cosmos, bem como todas as intermitências da metafísica, onde avultam as questões do infinito e da origem - o fundo, o fundinho de tudo isto -, está tudo contido na nossa mente.
    De facto, para lá da fé e do apego de todas as religiões a um Deus e a todos os deuses, incluindo os seres ditos supremos de que falam as misteriosas mitologias ancestrais, indiciando que talvez tivéssemos sido visitados por alguma civilização muito mais avançada extraterrestre há milhares de anos, ou de termos sido uma das suas colónias experimentais, ou o seu elo mais atrasado, quiçá; para lá de todas as respostas e virtualidades que a visão e especulação tecno-científica nos possam dar sobre os caminhos do futuro, como a possibilidade de podermos estar a viver noutras dimensões , ou num multi-universo, ou de vir a trilhar, daqui por milénios, os caminhos enigmáticos
    do horizonte de eventos de um buraco negro; para lá, enfim, de tudo o mais que possa impressionar todas as nossas inquietações e interrogações de todos os tempos e para todos os tempos daquilo que estará por "detrás" disto tudo, subjazerá sempre, no meio desta tormentosa tempestade, que é a existência humana, a inefável e sempre enigmática mente. Se até aqui foi ela quem nos iluminou o caminho, por certo que será nela também que encontraremos a resposta, porque nós seremos sempre a pergunta e a resposta, porque nós seremos sempre a resposta. Mesmo que demore uma
    eternidade.

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  7. No site http://www.sciencedaily.com/releases/2015/08/150819083326.htm, diz que «Comet impacts may have led to life on Earth -- and perhaps elsewhere».

    Se tivermos tempo suficiente e dados suficientes, ainda vamos conseguir provar, que afinal os cientologistas têm razão, e fomos criados pelos extra-terrestres.

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