sábado, julho 31, 2010

Treta da semana: a assistente da Dra.

No preçário do Centro Maria Helena podemos ver o preço para as consultas «Presenciais com a Dra. Maria Helena», 110€, e as consultas «Presenciais com a Assistente da Dra.», só 55 € (1). A Maria Helena é “Dra” porque tem uma licenciatura em sociologia e, na mesma página, está escrito que «Todos os serviços são prestados por técnicos licenciados em Universidades Portuguesas». Por isso a “Assistente da Dra” deve ser tão “Dra” como a própria “Dra”. Faz-me lembrar a Susaninha, a amiga da Mafalda, que queria ter um filho médico para ser a dona Susaninha mãe do senhor doutor filho da dona Susaninha.

A Maria Helena dá também informação acerca dos anjos (2). Infelizmente, faltou descrever o processo de investigação que permitiu apurar quais são os Serafins, Querubins e afins, ou o que fazem. A lista não menciona Izual, o que até se compreende, mas – falha grave – também omite Tyrael, que ajudou os Horadrim num momento tão terrível da História. E é curioso que Mumaiah esteja tanto na categoria dos Anjos como na dos Arcanjos. Não sei se terá sido uma promoção rápida durante a elaboração do documento ou mera falta de imaginação.

O triste é haver quem paga para ouvir a “Dra” e a “Assistente da Dra” dissertar sobre estes disparates. E pagam porque estão convencidos que isto é verdade, que esta gente vê o futuro nas cartas ou nas posições das estrelas, que sabe o nome do anjo da guarda em função do signo e assim por diante. É um abuso indecente da confiança e credulidade destas vítimas.

O que me traz à distinção entre “crentes sofisticados” e “não sofisticados”, feita por crentes que se consideram entre os primeiros e que assim evitam ter de fundamentar pela religião as práticas religiosas da maioria. São pouco sofisticados, está-se a ver, não importa. E, pelos vistos nem sequer importa esclarecê-los. O Diogo Ramalho explica porque é que os crentes “sofisticados” não tentam educar os restantes:

«Por exemplo: eu não acho que o ir de joelhos até Fátima vá levar a que algum milagre médico ocorra. Mas quando vejo pessoas a praticarem estas formas de espiritualidade o que me parece é que elas têm sentimentos profundos de relação com Deus e que aquela é a melhor forma de que dispõe para manifestarem esses sentimentos.»(3)

Não é só ir de joelhos. É pagar ao padre para dizer o nome do falecido marido durante a missa julgando encurtar a sua estadia no purgatório. É pagar pernas e braços de cera cuja queima se crê tornar mais eficazes os milagres da virgem. É dar ouro, jóias e dinheiro à Igreja para purificar a alma ou obter favores sobrenaturais. É muita coisa que, sob o rótulo de “espiritualidade”, acaba por ser o mesmo que a Maria Helena faz aos seus clientes.

Dizem que a Igreja é diferente porque não exige dinheiro, que as pessoas dão porque querem. Mas quem paga consultas de astrologia também dá dinheiro porque quer, esse truque do pagamento voluntário é também usado por Mamadus de toda a espécie e o próprio santuário de Fátima tem um preçário (4). Por exemplo, no baptizado cobra-se 35€ de Taxa do Santuário mais 17,5€ de Taxa da Câmara Eclesiástica de Leiria. Para um serviço que, na prática, equivale a uma carta astrológica ou à invocação do anjo da guarda.

O Diogo Ramalho admite que não explicar aos crentes menos sofisticados que Deus não quer jóias, dinheiro ou que se arrastem de joelhos «Pode parecer grotesco, antiquado ou mesmo errado aos sofisticados mas estes remetem-se a um respeito pela solução que o não-sofisticado encontra de viver a força do seu sentimento religioso.» Antiquado não me parece que seja. Pelo que vejo, está sempre na moda levar o dinheiro das pessoas aproveitando o “respeito” pelo seu “sentimento religioso”. E não diria que é grotesco porque é mais trágico do que ridículo. Mas errado, é. E indecente, e imoral.

Deixam que aquela gente se arraste e dê as suas poupanças na esperança de comprar milagres, metem o dinheiro ao bolso e capitalizam a publicidade que lhes traz esses sacrifícios. Até encorajam estas coisas ensinando que é uma virtude peregrinar e dar dinheiro à Igreja. Mas dizem que estas são expressões “menos sofisticadas” de quem julga, enganado, que pode comprar favores divinos.

A Maria Helena ainda pode ser que esteja tão iludida quanto os seus clientes e os engane apenas por negligência, por não ter tido o cuidado de verificar se lhes vende algo eficaz em vez de placebo. A ela posso dar o benefício da dúvida, mesmo que o benefício tenha de ser grande por a dúvida ser tão pequena. Mas a Igreja Católica, e a sua hierarquia de crentes sofisticados, admite perpetrar o pior tipo de embuste por beneficiar da credulidade dos que considera menos sofisticados, sabendo que estes acreditam em falsidades e não fazendo nada para os esclarecer. E ainda têm a lata de dizer que é por respeito que recebem o dinheiro dos pobres e o sacrifício dos enfermos.

1- Centro Maria Helena, Tabela de Preços
2- Centro Maria Helena, Hierarquias Angelicais
3- Comentários em Agora é por ser blasfémia....
4- Santuário de Fátima, SEPALI – Serviço Pastoral Litúrgica

sexta-feira, julho 30, 2010

Resumido.

Tal como com a teoria da evolução, também as conclusões científicas acerca do aquecimento global são rejeitadas por uma franja extremista dedicada a atrapalhar quem tenta compreender o impacto que temos sobre o clima. Mas, ao contrário do que se passa com a teoria da evolução, não tenho nem conhecimento nem paciência para lidar com esses. Enquanto a tal não estiver disposto vou ignorar as “provas” de que os efeitos antropogénicos no clima são mero embuste e concentrar-me nas objecções de quem admite que as emissões de CO2 não são inofensivas mas que, como o Barba Rija, acha que só as devemos reduzir «mantendo toda a civilização industrial em pé e em boa saúde económica» e que não podemos «ver o problema como uma questão moralista»(1).

Eu defendo que devemos considerar a ética desta decisão porque o problema da poluição atmosférica é análogo ao de despejar o bacio pela janela. São problemas de deveres, direitos, decência e justiça, com a agravante das emissões de carbono afectarem todo o mundo e não só quem passa pela rua, e com consequências mais sérias e duradouras. Por isso um factor de peso nesta decisão é não termos o direito de poluir o ar que é de todos. Não é um moralismo supérfluo. É uma questão fundamental.

O problema económico é mais complexo. É difícil comparar em detalhe os modelos económicos que prevêem um grande custo para a economia se deixarmos de queimar tudo o que arder, com os modelos climáticos que prevêem um grande arrependimento nas gerações futuras pela insanidade da corrente. No entanto, a decisão acaba por ser relativamente simples. Os modelos climáticos prevêem consequências sérias nos próximos cinquenta ou cem anos se não diminuirmos drasticamente as emissões de carbono. Não são modelos totalmente fiáveis nem muito precisos, mas dão-nos uma estimativa informada que, mesmo contando com as margens de erro, justificam preocupação.

Por outro lado, os modelos económicos não dizem nada com mais de uns poucos anos de antecedência. Engana-se quem julgar que consegue prever o estado da economia daqui a dez anos, quanto mais cinquenta ou cem. Reduzir o consumo de petróleo seria um grande golpe na economia. Agora. Mas também o foram as duas guerras mundiais, a grande depressão, as várias crises do petróleo e o colapso do sistema de crédito. E o que estes episódios demonstram é que os grandes problemas económicos são, acima de tudo, devido à burrice de quem está no poder. Basta comparar as duas alemanhas depois da segunda guerra. A devastação, a morte e três milhões de toneladas de bombas não foram nada, economicamente, quando comparadas com o regime imbecil que se seguiu.

Por isso, quando pondero os sacrifícios económicos de deixar de queimar fósseis com o prejuízo ambiental de continuar a fazê-lo, o que me ocorre é que os meus netos vão sofrer na pele as asneiras que fizermos com o ambiente enquanto os custo de as evitar serão, se tanto, um parágrafo nos livros de história.

Outra objecção é que o problema principal está nos países em desenvolvimento e que não adianta termos nós cuidado com o que fazemos se eles acabam por estragar tudo. Não acho que já seja assim, mas é verdade que pode vir a ser. Mas esse problema também se pode combater aceitando os custos económicos, especialmente na transferência de tecnologia. Se a minha electricidade fica mais cara por causa do licenciamento das turbinas de vento, patentes e assim, ainda vá. Agora se vão empurrar milhares de milhões de asiáticos para tecnologias antigas e poluentes só com a desculpa da “propriedade intelectual”, vão-se mas é lixar (e nós todos com eles...).

Finalmente, os supostos custos monetários são apenas uma parte dos factores a considerar. Eu acho que o incremento na qualidade de vida por poder passear sem respirar fumo compensa uma redução significativa no meu poder de compra.

Por estas razões, sou a favor de reduzir as emissões de carbono mesmo que seja preciso pagar por isso.

1- Comentários em Para o Barba Rija.

quinta-feira, julho 29, 2010

Não percebo...

Tanta gente na esplanada. A andar pela rua. Na conversa.

Será que não têm Internet?

quarta-feira, julho 28, 2010

De caras.

A Catalunha baniu a tourada. Por cá, infelizmente, ainda há uns a rabejar...

O valor que ficou de fora.

Segundo uma notícia no Público, «a não ser que os comerciantes optem por perder margem, os portugueses podem contar em breve com o aumento do preço do café»(1). Citando a Associação Industrial e Comercial do Café (AICC), «A subida da matéria-prima resulta em perda directa de margem para os industriais deste sector.» E o director-geral da Nutricafés prevê «um aumento a curto prazo que pode chegar aos quatro e seis por cento». A notícia depois menciona o preço da bica, que ronda os 55 ou 60 cêntimos. «Nos cafés de rua [...] os aumentos do preço do lote já são esperados. "Este ano a Delta já aumentou cerca de 50 cêntimos o quilo e não me espanto se aumentar uma outra vez. O ano passado sofremos duas actualizações", diz António Brito, dono da Pastelaria Mátria, em Lisboa.» Por enquanto os donos das cafetarias não querem aumentar a bica, mas a mensagem é clara. Se o café fica mais caro não terão outro remédio.

A notícia dá-nos uma data de números. Os milhões de sacas produzidas, o preço de cada saca, quantos quilos tem, as várias colheitas em vários países e até a variação percentual da cotação do café do tipo arábica no mercado de futuros de Nova Iorque, para entrega em Setembro (2,6%). Muito bem investigado.

Infelizmente, esqueceram-se de mencionar que cada bica tem 7g de café. A 5€ o quilo, isto dá uns 3 cêntimos de café por bica. O aumento estimado de “quatro a seis por cento” no custo desta matéria prima equivale a algo como um ou dois décimos de cêntimo por chávena. Se for por isto que vão ajustar o preço, terá de ser um ajuste muito fino...

O preço da bica tem pouco que ver com o preço do café. É função dos custos fixos – empregados, principalmente – e daquilo que o consumidor estiver disposto a pagar. Se acha que 60 cêntimos está bem, é 60 cêntimos que lhe cobram, quer tenha 3 quer tenha 30 de café. Daí a importância de dar as notícias desta maneira. O preço do café vai aumentar. Pobres de nós, estamos de mãos atadas, não podemos senão cobrar mais 5 ou 10 cêntimos por bica por causa do que vamos ter de pagar a mais (0,2 cêntimos).

Dos vendedores isto compreende-se. Mas dos jornalistas não é aceitável. Ou isto é incompetência, tendo o pessoal da AICC feito a papinha toda e o jornalista nem se preocupou em procurar mais dados. Ou então quem escreveu isto também vende cafés e quer embarretar os leitores. Porque só pode ser esse o objectivo de dar aqueles valores todos e não mencionar quanto café tem uma bica.

1- Público, Actualização do preço do café parece inevitável, diz associação

terça-feira, julho 27, 2010

Para o Barba Rija.



Via Bad Astronomy.

Insanidade.

Isao Hashimoto fez este vídeo compilando as explosões nucleares entre 1945 e 1998. Só a segunda e a terceira, sobre Hiroshima e Nagasaki, é que foram para matar gente. O resto foram testes. Muitos testes.

O vídeo começa um pouco devagar, mas as décadas de 50 e 60 são impressionantes. No final também há um resumo da distribuição geográfica das explosões que vale a pena ver.



Via Disinformation.

segunda-feira, julho 26, 2010

Agora é por ser blasfémia...

O Miguel Panão diz defender o diálogo entre a ciência “a religião”, no singular porque é só a sua. E neste diálogo a ciência não se pode pronunciar acerca do que for teológico, isentando o dogma católico do cepticismo metódico e do dever de fundamentação a que se sujeita a ciência. O propósito deste diálogo, por assim dizer, parece ser a religião apropriar-se do que a ciência produz acrescentando-lhe um “graças a Deus” e alegando dar-lhe um sentido último, um porquê e coisas assim sonantes que nem se percebe bem o que sejam.

Este é um problema constante no meu diálogo com o Miguel Panão. Num diálogo racional cada parte deve apresentar razões que possam persuadir quem discorda. É isso que a ciência faz. Quando propõe algo mostra as evidências. O Miguel diz safar-se desta responsabilidade porque as suas teses são “teológicas”. É uma palavra mágica. Alega que o seu deus age sem deixar vestígios, que é três pessoas numa substância, que nasceu de uma virgem e ressuscitou. Qualquer outro que propusesse tal coisa teria de suportar um ónus de prova pesadíssimo. Mas o Miguel diz a sua palavra mágica e puf. Basta ter ouvido dizer que é assim e fica tudo justificado.

É claro que não basta. Uma afirmação injustificada não prescinde de justificação só por a classificarmos de teológica ou por dizer que não é ciência. Se assim fosse então astrólogos, videntes, médiums e aldrabões em geral poderiam vender o que quisessem. Bastava dizer que não era ciência e ninguém poderia levantar objecções. Isto é demasiado irracional para aceitar.

Além disso, o dogma católico afirma coisas claramente científicas. A virgindade de Maria, por exemplo. A definição de “virgem” é ambígua*. Pode querer dizer não ter tido sexo, não ter tido sexo com penetração vaginal ou, no caso das mulheres, ter o hímen intacto. Mas, seja como for, se é ou não virgem depende de comportamentos e vestígios observáveis. Por quando o Miguel Panão diz que uma pessoa é virgem afirma algo testável. Não é uma matéria de fé mas sim de comportamento sexual e anatomia. Tratando-se, para mais, de uma mulher que o Miguel diz ter tido um filho, a afirmação exige evidências extraordinárias. E o Miguel não fica por aí. Não se limita a pôr a hipótese. Diz que isso é conhecimento, que ele sabe que Maria é virgem.

Num diálogo racional é natural que alegações destas levem a perguntar como sabe disso. Foi o que eu fiz. Perguntei ao Miguel como é que ele consegue contar quantas pessoas é o seu deus e como é que ele sabe o estado do hímen de Maria. Curiosamente, respondeu-me «Com os dedos»(1) apenas à primeira pergunta. À segunda disse «Não respondo a blasfémias» e «acho que devias ter mais respeito.» Logo a seguir o Diogo Ramalho reforçou o ralhete dizendo acerca de mim que há «um desfasamento entre a educação da sua capacidade intelectual (boa) e a educação recebida em casa quando pequeno.»

Enganam-se os dois. Eu tenho bastante respeito pelos crentes que por aqui passam. Perco tempo a ler os vossos comentários e a tentar explicar as minhas objecções. Invisto neste diálogo e preocupo-me em justificar o que proponho. E não me faço de ofendido quando põem em causa as minhas opiniões ou insinuam algo acerca da minha família. Nem vejo qualquer desfasamento entre a minha formação académica e a educação que recebi em criança. Felizmente, desde sempre me ensinaram a dar valor às perguntas, a prezar as dúvidas e a questionar como é que se sabe o que se alega saber. Nunca os meus pais sugeriram que perguntar “como é que sabes?” fosse faltar ao respeito.

Falta de respeito é isso que estão a fazer. Essas insinuações pessoais, esse empinar do nariz e dizer que não respondem a “blasfémias”. Nem sequer sei que raio de coisa é isso da blasfémia. É o que vos der jeito, presumo. Se alegam que uma mulher é virgem depois de ter tido um filho é perfeitamente legítimo perguntar-vos como o sabem. E se em resposta se fazem de ofendidos, isso é que é falta de respeito. É falta de respeito por quem está a dialogar convosco e é falta de respeito pela verdade.

O Diogo diz que incomodo «os crentes de forma rude [...] por usar um estilo de linguagem provocador» e que «seria pena ir afastando os crentes que mostram abertura e vontade de dialogar». Concordo que seria pena afastar quem tem vontade de dialogar. Mas quem tem a presunção e arrogância de se julgar acima do dever de justificar o que afirma não tem vontade de dialogar. Pode dizer que tem mas, para dialogar, é preciso distanciar-se da sua opinião o suficiente para a poder apreciar como o outro a vê. É neste distanciamento que o diálogo pode dar frutos, quando cada interveniente se coloca numa posição neutra em relação às teses em conflito e pondera as razões que sustentam cada uma.

Não sinto qualquer dever de evitar perguntas incómodas, embrulhar o que escrevo em algodão ou vergar-me a esse tal “respeitinho”. Presumo que sejam adultos e que cá vêm porque querem. Se não esperam que me ofenda quando me dizem que uma mulher casada e com um filho ainda é virgem, apesar de isso ser o mesmo que me chamar de parvo, também não se devem ofender quando lhes pergunto como sabem. E se a pergunta vos ofende, lamento, mas nesse caso o melhor é irem dialogar para a missa.

*E possivelmente um erro de tradução, pois o que Isaias descreve é que a mãe seria uma mulher jovem. É só de uma interpretação posterior, das traduções gregas, que defende que Maria ficou virgem para sempre.

1- Comentários em Previsões.

domingo, julho 25, 2010

1939 - 2010



Está só do ponto de vista dos hamburgers, mas dá uma boa ideia da trapalhada que foram as últimas sete décadas...

Via 9GAG

Treta da semana: vinte porcento.

Tenho lido algumas críticas à sugestão do Carlos Azevedo, o bispo auxiliar de Lisboa, para que os políticos cristãos contribuam 20% do seu ordenado para um fundo social. Há quem o acuse de demagogia, populismo ou até de hipocrisia. Não digam isso, coitado do homem. A ideia dele é boa. Contribuir uma parte do ordenado para um fundo comum de onde se financia aquilo de que todos precisam é uma excelente prática.

É verdade que não é novidade nenhuma para a maioria de nós, e quem ganhar mais que 600€ por mês já paga 23,5% só de IRS, sem contar com o resto. Os 20% do Carlos Azevedo são uma estimativa modesta. Mas penso que não se deve criticar tanto o bispo auxiliar porque ele é um dos poucos adultos portugueses que é inocente em matéria de impostos. Falta-lhe a nossa prática nisto. Há duas coisas que quase todos reconhecemos como inevitáveis; o fisco e a morte. De uma dessas os padres só dão promessas vagas de salvação, mas da outra estão bem protegidos.

Carlos Azevedo pede este dinheiro aos políticos católicos «para um fundo que vai ser criado junto da Caritas para atender às situações mais criticas e que serão veiculadas através das paróquias»(1). Ou seja, para os católicos darem dinheiro à Igreja Católica para ajudar outros católicos. Mais uma vez, é uma boa ideia. Mas, talvez pela falta de prática com isto dos impostos e por ter passado uma vida a julgar que justiça social é dar esmola aos pobrezinhos, falta ao bispo auxiliar uma visão mais abrangente do problema.

A crise não é por os políticos católicos não darem dinheiro à igreja do bispo (auxiliar). A crise é, em boa parte, por não conseguirmos pagar a educação, infraestrutura, saúde, segurança, administração e outros serviços dos quais o país precisa. Não cada um de nós, individualmente, mas todos em conjunto. E com isso vamos afundando o país em dívidas. A sopa dos pobres, no meio disto, é uma fatia mais pequena do que as tolerâncias de ponto há uns meses atrás.

Por isso aqui vai a minha contra-proposta para o bispo auxiliar. A ver o que ele acha. Em vez desse tal «testemunho de modo voluntário» que pede aos políticos católicos, de mais uma esmola para a Igreja distribuir pelos pobres que julgue merecer, proponho que todos façamos a nossa parte. Todos. E não é só 20%. Eu, contando com IRS, CGA e o resto, já vou nos 35%. Não peço mais ao senhor bispo auxiliar nem à sua Igreja, mesmo que não tenham filhos para criar. 35% dos vossos ordenados e do negócio da fé já era uma ajuda para o país.

E mesmo os padres que já dêem parte do seu salário à Igreja Católica deviam pensar neste problema de forma mais abrangente. Não é para os fundos desta ou daquela organização que devemos contribuir, que os fundos sociais não devem ser de uma religião, clube ou empresa. Devemos contribuir, por justiça e não por pena ou caridade, para o fundo que é de todos.

Já agora, um conselho. A Igreja Católica tem tido algumas dificuldades em preservar a sua imagem, metendo o pé na boca em quase todas as oportunidades. Para contrariar essa tendência sugiro que, em tempo de crise, foquem mais em tentar contribuir e menos em pedir dinheiro.

1- RTP, Igreja pede parte dos vencimentos aos políticos católicos, via este post do Carlos Esperança no DA.

sábado, julho 24, 2010

Estragar palavras.

As palavras servem para agarrar conceitos e mostrá-los aos outros. Cada palavra significa aquilo que cada um pensa quando a fala e percebe quando a ouve. Esta flexibilidade tem vantagens e desvantagens mas, acima de tudo, é inevitável. Conforme vamos pensando de forma diferente vamos falando de forma diferente e, com o passar do tempo, é natural que se cole as palavras a outros conceitos. Por isso a minha objecção a certos abusos das palavras não se deve a algum purismo linguístico, que não tenho. Até porque sem abusar das palavras não havia poesia. O meu problema é quando o abuso serve a falácia e estraga as palavras.

“Roubar” refere um acto que priva ilegitimamente a vítima daquilo que é seu. Mas puxa também outros conceitos, como causar prejuízo, beneficiar o perpetrador, custar dinheiro à vítima e assim por diante. Quando se diz que descarregar um filme é roubar a palavra parece adequar-se se clubes de vídeo e lojas ganharem menos dinheiro por isso e quem sacar o filme beneficiar do acto. Mas a conotação negativa da palavra vem do conceito principal, o da apropriação que se condena por privar alguém daquilo que já tem. Prejudicar o comerciante por não lhe comprar algo não merece esta conotação negativa.

Este truque de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida é uma falácia comum. Quando se chama homicídio ao aborto, terrorismo a um assalto ou se justifica o chip na matrícula alegando a segurança, por exemplo. Nestes casos aproveita-se a analogia com alguns conceitos inofensivos que vêm com estas palavras para desviar o raciocínio para algo mais saliente. O homicídio é um crime condenado pela sociedade, o terrorismo é violência indiscriminada para causar pânico e a segurança é o que nos protege de ameaças. Mas se está em causa a legalidade do aborto não faz sentido assumir à partida que tem de ser crime, o assaltante não é um bombista suicida e o chip na matrícula não protege o dono do carro. Este é um uso enganador dos termos.

A minha objecção a chamar censura ao que a Playboy fez é, em parte, uma objecção a esta falácia para induzir a conclusão que a Playboy está a interferir na nossa liberdade de expressão. É certo que “censura” também significa crítica, reprovação ou repúdio, e a Playboy americana criticou e repudiou as imagens que a editora portuguesa publicou em seu nome. Mas, como o Ricardo Alves aponta, a censura é fundamentalmente «Impedir a divulgação de uma mensagem»(1). É esse impedimento que faz da censura uma coisa má. A censura é má porque obriga a calar-se quem quer dizer algo.

Para justificar chamar censura ao que a Playboy fez o Ricardo vai buscar outros conceitos associados à palavra, dando como exemplo que já apagou «comentários [no Esquerda Republicana]» e dizendo que a censura por parte da Playboy americana, se bem que legítima, «configura uma limitação à liberdade de expressão e de informação». Vê-se aqui o fio por se puxa a conotação negativa da palavra. Apagar comentários num blog não é censura. Se eu escrever este texto no blog do Ricardo e ele o apagar não faz mal porque fica aqui, onde ele não apaga nada. Para ser censura, a limitação à liberdade de expressão tem de impedir a mensagem. Não deixar o Ricardo escrever com a minha caneta ou publicar posts no meu blog não chega para ser censura.

O caso da Playboy é claramente diferente da censura. A Playboy não tem o poder de impedir que se publique fotografias de senhoras despidas ao pé de Jesus. E nem sequer levanta objecções a isso. Convido o Ricardo a testar esta hipótese, se estiver na dúvida. Basta uns minutos com o Gimp*, encher o blog com imagens de Jesus com meninas, e estou convencido que não vai haver reclamações da Playboy. Porque a única objecção da Playboy americana foi que lá pusessem o seu nome sem a sua aprovação. E se é contra isso que o Ricardo protesta, então que me empreste o seu livro de cheques...

Além da falácia de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida, há outra coisa que me incomoda nisto. As palavras são ferramentas. Temos de as ajustar de vez em quando para as manter alinhadas com os conceitos mais úteis. Há dois mil anos “censura” era um cargo político, mas hoje já não temos os sistema de governo dos romanos e afinámos o sentido da palavra.

No entanto, o abuso sistemático das palavras para persuadir pela demagogia em vez da razão tem o efeito contrário. Tira-lhes o gume. Se “censura” for agora apagar comentários num blog ou não querer ter o nome no que os outros publicam, quando precisarmos de designar a censura a sério só teremos uma palavra frouxa que não vale de nada. E, da maneira como estão a empurrar a lei para controlar a informação que trocamos entre nós, esta é uma palavra que convém manter afiada.

* Admito que se tivesse escrito “Photoshop” era mais claro. Mas o Gimp é gratuito e de código aberto.
1- Ricardo Alves, Censura ou não censura

sexta-feira, julho 23, 2010

Previsões.

No sentido comum do termo, uma previsão é acerca do futuro. Não se prevê o passado nem o presente. Mas em ciência esta palavra tem um sentido diferente que gera alguma confusão. A previsão científica é aquilo um modelo diz acerca do que se pode observar, quer venha ainda a ocorrer quer tenha ocorrido no passado. Por exemplo, podemos dizer que um modelo cosmológico prevê uma certa frequência de supernovas mesmo apesar das supernovas que observarmos já terem explodido há centenas ou milhares de milhões de anos.

Esta ideia de inferir de modelos aquilo que se vai observar foi um passo importante no conhecimento. Antigamente o saber era listas de factos, que já é alguma coisa mas tem uma utilidade limitada. Os egípcios aprenderam a construir pirâmides depois de vários fracassos, até acertarem nas proporções. Depois fizeram daquela maneira. Só nos últimos séculos é que se criou modelos que permitem prever se uma estrutura se aguentam antes de a construir. Unificar os dados num modelo capaz de explicar e dizer mais alguma coisa é muito melhor do que saber apenas o que já foi testado.

Isto é importante não só para poder usar os modelos como para detectar e corrigir erros. Se o modelo que concebemos é que os seres vivos foram criados por milagre, ou que o Diabo anda por aí a fazer maldades às escondidas, além de não nos dizer nada de útil podemos estar redondamente enganados e nunca o descobrir. É como passar a vida julgando-se perseguido por anões invisíveis.

E a previsão, neste sentido, separa radicalmente as religiões da filosofia e ciência. No sentido coloquial as religiões têm previsões. Aos molhos. O livro do Apocalipse, por exemplo, prevê uma data de coisas estranhas. Mas não são previsões no sentido científico, de inferências que partam de modelos testáveis. Essas as religiões evitam porque perceber não lhes serve; o que faz perdurar uma tradição religiosa é a memorização, a aceitação do “saber” autoritário e o mistério. Em 1950, Pio XII declarou que Maria tinha ascendido ao Céu de corpo e alma. Não porque este modelo do suposto acontecimento unifique dados e preveja correctamente o que se venha a observar, mas pela «autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos s. Pedro e s. Paulo»(1) e do Papa.

E muita gente acreditou.

Mas já uns séculos antes do filho do carpinteiro ter inspirado a moda uns gregos acharam que a sabedoria devia ser mais do que ir na cantiga dos sacerdotes. E começaram a formar ideias que lhes pudessem dizer alguma coisa testável acerca da realidade. O sucesso foi limitado, é verdade, e hoje em dia muitos consideram que a filosofia é mera especulação de sofá. Muita, infelizmente, até é. Mas, em parte, a classificação é injusta. No tempo de Demócrito ou Aristóteles não se conseguia perceber de que é feita a matéria ou porque as coisas caem. Faltava aprender muita coisa até que lá chegar. Mas eles tentaram. Tentaram dissecar o problema, compreender o que faltava saber e perceber como se pode discutir essas questões sem inventar autoridades ou ficar atolado em especulações vazias. E, séculos mais tarde, isso deu resultado.

O que prejudica a imagem da filosofia é que quando finalmente consegue criar modelos úteis passa a chamar-se ciência. Com o passar dos séculos, a filosofia mirrou do estudo de tudo ao estudo de umas poucas coisas problemáticas como a consciência, que ainda não sabemos onde encaixar na realidade, ou a ética, em que a realidade pouco ajuda*. Foi um enorme sucesso mas parece um fracasso.

As religiões ficaram de fora. De propósito. Ou fincam o pé em “factos” claramente contrários ao que se observa, como a Terra ter só uns milhares de anos e os fósseis terem sido depositados num dilúvio tão mágico que separou os grãos de pólen em estratos de acordo com a espécie de cada um. Ou se dedicam a especular sobre o que nunca se pode saber, como um outro mundo onde vive o Diabo, uma carrada de santos e a virgem Maria. Que ainda deve ser virgem, coitada, sendo única pessoa com corpo no meio de almas insubstanciais**. E ficam de fora porque as únicas previsões que fazem é que o mundo está quase a acabar – outra vez – e até isso inventam na altura.

* E uma carrada de tretas. Mas isso é inevitável quando não se tem forma de testar os modelos.
** A menos que lá apareça um bombista suicida. Estas coisas são um bocado confusas...

1- Vaticano, Definição do dogma da assunção de Nossa Senhora em corpo e alma ao Céu.

segunda-feira, julho 19, 2010

Finalmente...

4pane-funny-comics-jebuz
Mais em: Comixed

domingo, julho 18, 2010

Treta da semana: droga digital.

A guerra contra as drogas tem sido um grande sucesso. Tem enfiado muitos jovens na cadeia, aumentado o preço e os lucros dos vendedores, até impedido que se plante cânhamo. E tudo isto sem afectar o consumo. Agora abre-se uma nova frente de batalha, prenhe de possibilidades para mais sucessos assim e sem sequer precisar de droga a sério. As drogas digitais.

Desde o final do século XIX que se sabe enganar o cérebro dando a cada ouvido um som diferente. Controlando o tempo e intensidade a que o som chega a cada ouvido podemos criar uma ilusão de direcção (1). E se um ouvido recebe um som de frequência ligeiramente diferente da frequência do som que chega ao outro o cérebro inventa uma batida onde nenhuma existe (2). E enquanto o primeiro efeito é bom para filmes e jogos, o segundo dá para sacar dinheiro dos mais crédulos, com alegados efeitos desde “focar energia” a “projecção astral”, tudo isso por ouvir um som monótono e irritante durante uma hora. E depois de pagar $39.95, claro (3). Mas, ao que parece, o problema não é a aldrabice. É o alegado perigo para os jovens, aliciados a drogar-se com estes sons que os podem desencaminhar, levando-os a drogas mais fortes.

Eu admito que também ficava preocupado se um dos meus filhos se metesse nisto das drogas digitais. Não por medo que ficasse pedrado ou viciado, mas por demonstrar ter ficado parvo. Supostamente, o som que se segue deve ser ouvido com auscultadores para fazer efeito. Mas, pelo que tive paciência de experimentar, vai dar ao mesmo...



Infelizmente, não são só os miúdos que enfiam o barrete. São os pais, os professores e os jornalistas:



A propósito de notícias como esta:




Threat Level, Report: Teens Using Digital Drugs to Get High, Via o FriendFeed do Marcos Marado.

1- Um exemplo é o Virtual Barber Shop. Devem ouvir com auscultadores; ao contrário da treta das drogas digitais, este funciona.
2- Wikipedia, Binaural beats.
3- Musicmefree.com

sábado, julho 17, 2010

Confusão dos diabos...

Julgando que a melhor maneira de sair de um buraco é continuar a escavar, o Bernardo Motta escreveu um longo post sobre a existência do Diabo. Como o Bernardo tem fé, um aditivo mágico que transforma em “Verdade” qualquer opinião, basta-lhe julgar que o Diabo existe para considerar provada a hipótese. Em contraste, eu não o consigo refutar porque não apresento «argumentos substanciais contra a existência do Diabo»(1).

Este é um caso em que uma pequena imprecisão linguística cria uma grande confusão. Argumentar não tem impacto nenhum na existência ou inexistência seja do que for. Se o Diabo não existir não há argumento que o crie. E se existir não é por argumento que desaparece. A argumentação é apenas uma ferramenta para escolher, entre tudo o que possamos imaginar, as poucas ideias que correspondem à realidade.

Por isso os meus argumentos não são contra a “existência do Diabo”. São contra essa escolha do Bernardo. O Bernardo optou por defender um modelo caricato que sacerdotes ignorantes inventaram, há dezenas de séculos, para manter o rebanho na linha. E com isto rejeita outros modelos muito mais plausíveis. A estupidez e a maldade estão perfeitamente ao alcance das capacidades humanas. Não é preciso inventar demónios para explicar a sua origem. Pelo contrário. A estupidez e a maldade são os melhores candidatos para explicar essa invenção.

Sem quaisquer evidências que justifiquem esse modelo, o Bernardo passa então a dissertar sobre o que me levará a rejeitá-lo. Escapa-lhe a explicação mais simples. Rejeito o modelo do Bernardo porque não há nenhuma observação que precise de diabos que a expliquem. Não preciso tentar provar que o Diabo não existe, ou sequer inventar “argumentos substanciais”. Basta apontar que, tal como acontece com “fadas”, “Pai Natal” e “mafaguinhos”, não se encontra nada ao qual o termo “Diabo” refira.

Mas o Bernardo tem razão quando diz que eu rejeito o seu diabo por desconfiança. Eu desconfio das opiniões. Das dos outros e, principalmente, das minhas. Sei que sou falível, por isso sei que querer ter razão não equivale a tê-la. É isso que me leva a considerar alternativas e a confrontá-las com as evidências. E é isso que me impede de ter a fé do Bernardo, que desconfia muito pouco do que lhe metem na cabeça. Infelizmente, o Bernardo não explora a utilidade da desconfiança como método para separar a verdade da treta. Salta logo para várias confusões.

Primeiro, acha que eu sou materialista. Não sei de onde vem essa ideia. A realidade é obviamente mais do que a matéria, e a própria noção de matéria é uma simplificação inadequada para descrever a realidade. Fotões, carga, gravidade, espaço-tempo e uma data de outras coisas não encaixam na noção comum de “matéria”. E eu não sou fã de me definir como um “ista” qualquer achando que isso vai obrigar a realidade a dar-me razão. Essa é uma actividade fútil à qual só recorre quem não encontra forma de justificar o que defende. Por isso rejeito também esta alegação, por muito que a façam:

«Por definição, a Ciência não trata, nem pode tratar, de explicar fenómenos que ultrapassem a sua própria (e auto-definida) esfera de trabalho. Se uma explicação científica é sempre, por definição, uma explicação que faz uso exclusivo de causas naturais, tudo o que é sobrenatural está fora do seu âmbito.»

A ciência é um método para compreender a realidade. Não é um método que se define teimosamente mas que se adapta ao que vamos descobrindo. Quando parecia que um deus tinha criado isto tudo, era isso que a ciência propunha. Quando parecia que os seres vivos eram movidos por uma substância diferente da dos seres inanimados, foi isso que a ciência assumiu. Conforme se foi descobrindo que estas hipóteses eram falsas, a ciência substituiu-as por outras mais de acordo com o que observamos. Não é por o Bernardo inventar que o seu diabo é “sobrenatural” que impede a ciência de apontar o disparate.

Depois, para tentar mostrar que o exorcismo não é bruxaria, o Bernardo enumera algumas «reais e cruciais diferenças». Que os bruxos cobram e o exorcista não, que o exorcista usa o poder de Cristo, que o exorcismo serve «apenas para curar alguém de influências demoníacas», que a bruxaria não assenta «numa filosofia coerente e que pretenda explicar toda a realidade», que o cristianismo tem dois mil anos e que o exorcista colabora sempre com os médicos. Ou seja, admite implicitamente que não tem um pingo de evidências pois, se as tivesse teria mencionado algo de relevante. Mesmo que o exorcismo seja bruxaria gratuita feita por padres com pretensões filosóficas continua a ser bruxaria à mesma.

Por fim, o Bernardo diz que eu tenho uma «filosofia da treta que se auto-refuta» por achar que os meus pensamentos são a actividade dos meus neurónios. Diz que isto nega a noção de verdade por ser num processo sujeito às leis da física. Disparate. A verdade é a propriedade de um pensamento corresponder à realidade. É intrigante como um pensamento ser acerca de algo, verdadeiro ou não. Não consigo explicar como o pensamento pode ser intencional. Mas não é a inventar tretas como alminhas e diabos que se esclarece o que quer que seja.

1- Bernardo Motta, Desconfiados do Diabo.

quinta-feira, julho 15, 2010

Bom senso criacionista.

Ray Comfort é o criacionista que propôs a banana como o “pesadelo dos ateus”. Não tem sementes, encaixa na mão, abre-se facilmente e assim por diante, o que prova que Deus existe. É claro que as bananas selvagens não eram nada assim. A banana que temos hoje nem é capaz de se reproduzir, tem de ser clonada, e resulta de milhares de anos de selecção artificial para um fruto ao nosso gosto. Mas os pés dos criacionistas já têm tantos buracos que mais um tiro não lhes faz diferença. E Pat Robertson é um pregador evangélico famoso por, entre outras que tal, prever o fim do mundo em 1982 e alegar que o terremoto no Haiti foi castigo por um pacto com o Diabo. Mas já estou tão habituado às coisas do Mats que nem me espanta que ele considere uma entrevista do Pat Robertson ao Ray Comfort como sendo «Usar o bom senso para refutar a evolução» (1).

A “peça” começa com o Ray Comfort a fazer umas perguntas a desconhecidos escolhidos por não perceberem absolutamente nada de evolução ou por serem criacionistas disfarçados. Com estes, Comfort aproveita para dar as bases do seu argumento. O senso comum refuta a teoria da evolução porque o primeiro animal a sair da água, tendo só brânquias, teria de passar o tempo todo a correr de volta à água para poder respirar até os pulmões se “desenvolverem”. E mesmo que conseguisse ter pulmões, depois estava sozinho, sem ninguém com quem se reproduzir.

Chiça...

Muitos peixes têm bexiga natatória, um ou dois sacos elásticos que se desenvolvem a partir do tubo digestivo. A pressão é regulada por permuta de gases com o sangue do peixe ou, em algumas espécies, por uma ligação que permanece com o resto do sistema digestivo, o que permite ao peixe engolir ou “arrotar” o gás conforme necessário para regular a sua flutuabilidade. Foi pela acumulação de modificações a esta estrutura que surgiram os pulmões.

E os pulmões são independentes das brânquias, que descendem de estruturas para apanhar alimentos do tempo em que animais pequenos obtinham todo o oxigénio por difusão através da pele. Parte das cartilagens de suporte das brânquias deram origem às mandíbulas dos peixes e, eventualmente, nos vertebrados terrestres, aos ossos dos ouvidos (2). Por isso não há nada de estranho em ter existido animais com brânquias e pulmões. Até existem hoje, mesmo na terra natal do Ray Comfort (3), o que me faz pensar que ele ou é um "estudioso" extraordinariamente incompetente ou é um aldrabão.

Grande parte da conversa do Ray Comfort não tem nada que ver com a biologia. Diz que Darwin era um tipo amargurado, que é terrível um filho dizer aos pais que não acredita no deus dos criacionistas, que os crentes devem falar à consciência dos ateus e outras coisas irrelevantes para a teoria da evolução. Mas volta ao problema da “fêmea que falta”, dando como exemplo um cão que evoluiu dentes, olhos, cauda, patas e isso tudo, mas agora precisa de encontrar uma cadela que tenha evoluído exactamente as mesmas coisas.

Este alegado problema é tão ridículo que até teria piada se não fosse haver pessoas, como o Mats, que levam estes disparates a sério. Os criacionistas teimam em descrever a evolução como um processo que ocorre em cada organismo. Mas a evolução é a acumulação das inevitáveis diferenças entre gerações. É algo que acontece às populações. E, salvo raras excepções como a poliploidia nas plantas, estas diferenças são tão pequenas, e a mudança tão gradual, que não ocorre este problema de surgir uma espécie só com um organismo.

Mas dessa treta já falei há uns tempos (4), por isso deixo-vos aqui com o vídeo do bom senso criacionista. Ou, se preferirem, passem logo ao seguinte. Ao menos esse vale a pena ver.





1- Mats, Using Common Sense to Debunk Evolution
2- NCBI, Developmental Biology, Scott Gilbert, Evolutionary Embryology
3- Australian Lungfish
4- Miscelânea criacionista: o sexo.

Editado a 16-7 para tirar as gazes ao coitado do peixe. Obrigado ao Zarolho pela ajuda.

terça-feira, julho 13, 2010

Nós somos o Autor. A resistência é fútil.

A propósito da notícia sobre os cortes no orçamento do Ministério da Cultura (1) fui visitar a página da Direcção-Geral das Artes. Lá encontrei um aviso, no canto inferior direito de cada página: «© Direcção-Geral das Artes. Todos direitos reservados.»(2)

Intrigado que um órgão do Estado tenha direitos de autor, enviei um email à D.G. das Artes pedindo que me esclarecessem «[...] quem é que é ao certo o detentor destes direitos reservados e que direitos reservam. Sendo a DGA financiada do erário, à partida julgaria que o conteúdo do site devia ser de domínio público […]».

Hoje recebi a resposta, pela mão do Director-Geral: «No que diz respeito aos conteúdos e utilização de conteúdos, todas as imagens ou textos, acessíveis neste sítio (www.dgartes.pt) estão protegidos pela lei, nomeadamente pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, o que significa que é interdita qualquer utilização, distribuição, difusão ou transmissão, total ou parcial, comercial ou não comercial, quaisquer que sejam os meios utilizados, salvo com autorização expressa da Direcção-Geral das Artes», adiantando que se exceptuam desta interdição o uso privado e a citação.

Fico grato pela resposta, que confirmou as minhas suspeitas. A Paula Simões tinha sugerido que talvez o aviso se referisse apenas a algum conteúdo criado para a D.G. das Artes mas que continuasse propriedade dos seus autores. Eu, mais pessimista nestas coisas, suspeitei logo que fosse o “tudo meu!” do costume.

Infelizmente, não me deram qualquer justificação para que um órgão oficial do Estado, financiado dos impostos, reivindique direitos exclusivos sobre o conteúdo que lhe pagamos para criar. Sinto-me ainda mais roubado do que é costume.

E ainda por cima estes conteúdos. Segundo o Director-Geral, «é interdita qualquer utilização, distribuição, difusão ou transmissão» de «todas as imagens ou textos» do site. Mas estes textos incluem actas, despachos, listas dos nomeados para os vários serviços, organogramas, legislação, resultados de concursos, programas de apoio, portarias e anúncios de acções da D.G. das Artes. E em todas as páginas está o aviso «© Direcção-Geral das Artes. Todos direitos reservados.» Só falta termos de pagar direitos de autor para consultar o Código do Direito de Autor.

Se isto não fosse tão triste fartava-me de rir...

1- Público, Artistas independentes são quem mais vai sofrer com os cortes, via o FriendFeed da Paula Simões
2- www.dgartes.pt

Ciência, blues, e pão com manteiga.

À primeira vista, conceder um monopólio sobre a cópia é um incentivo à criatividade pela promessa ao autor de ganhar tanto dinheiro quantas cópias venda. Como não é o autor que faz as cópias, que as distribui, que é dono das lojas e assim, acaba por ficar só com uma pequena parte do bolo mas, mesmo assim, sempre ganha alguma coisa.

Um problema deste sistema é cobrar de todos um custo muito maior que o benefício para o autor. Limita direitos fundamentais de privacidade, expressão e partilha de informação e inibe a criatividade por restringir o acesso à cultura e proibir a criação de obras derivadas. E a ênfase na cópia virou ao contrário o papel da arte na sociedade, reduzindo-a a um bem de consumo. Hoje compra-se música em vez de cantar, aluga-se DVDs em vez de contar histórias e, com o DRM, até já arranjaram maneira de não deixar emprestar livros. Quem usa a arte para o que serviu durante sessenta mil anos, até ao século XX, é um pirata porque comunica, partilha ou transforma o que outros criaram.

Reconhecendo estes problemas, mas assumindo que o monopólio legal sobre a cópia é um bom incentivo, há quem proponha reformas ao copyright para mitigar os defeitos mantendo as supostas vantagens. O que assume, à partida, a necessidade de um monopólio legal. No entanto, um artista admirado por milhões de pessoas safa-se bem mesmo sem monopólios. E se só atrai umas dúzias de familiares e amigos não há lei que lhe permita viver da sua arte. Estes monopólios não servem quem cria arte mas sim quem compra os “direitos” de muitos artistas para manipular o mercado. Pior ainda, o próprio mecanismo de incentivo é defeituoso, mesmo quando o dinheiro chega aos artistas.

Em certas actividades, uma recompensa condicional distorce os objectivos. Se o objectivo é encher garrafas pode-se dar um prémio pelo número de garrafas que o trabalhador encha. Mas se premiamos os professores pelo número de alunos aprovados vamos incentivar a aprovação de quem devia reprovar, e se os premiamos pelo resultado nos exames vão apenas preparar os alunos para responder essas perguntas (1). Se uma farmacêutica ganha pelo monopólio sobre um fármaco vai investir mais na ansiedade dos ricos que na malária ou disenteria dos pobres. Se premiamos investigadores pelo número de artigos passam a escrever resmas de lixo. E se compensamos os autores pela popularidade incentivamos aquilo que agrada a mais gente, nem que seja pelo hábito. Spice Girls, James Bond e códigos de Da Vinci.

Outro problema é que essas recompensas por uma medida de desempenho interferem com a criatividade. Já mostrei aqui uma palestra do Daniel Pink sobre isto (2), e deixo outra no final deste post. Mas, intuitivamente, é fácil de perceber. Uma tarefa criativa exige soltar as ideias. Porque, à partida, não sabemos como é a inovação que procuramos, onde a vamos encontrar ou o que nos vai despertar o momento “Aha!” Focar a mente num objectivo definido, como o de vender o máximo de discos, dificulta a pesquisa pelas possibilidades.

Daí o sistema que se usa no mundo académico. Apesar da grande treta da “indústria cultural”, a cultura que temos vem mais de escolas, universidades, conservatórios, museus, bibliotecas e centros de investigação do que de editoras ou fábricas de discos. E, em geral, físicos, biólogos, historiadores, filósofos e professores têm um ordenado. Não trabalham para maximizar o número de cópias daquilo que criam, e é isso que lhes dá a autonomia e liberdade necessária para serem criativos.

A arte também era assim antes de ser dominada pela indústria da reprodução. No início do século XX os músicos de blues partilhavam as suas composições, citavam-se e adaptavam as obras alheias, criando um estilo que influenciou marcadamente quase toda a música até hoje. Tocavam pela música e não pelo número de cópias, o que não só estimulou a criatividade como permitiu fazerem arte como deve ser. De forma partilhada, interactiva e colectiva, em vez de cortada às rodelas com donos para cada som.

É óbvio que nem todos conseguem criar coisas magnificas. A criatividade é uma aposta; umas vezes ganha-se e outras perde-se. Mas se reunirmos quem esteja disposto a tentar, lhes dermos acesso ao que já está criado, formação e condições para trabalhar alguns dos resultados serão sublimes. Alguns serão uma trampa. Uma sanita partida ou a aldrabice da fusão a frio. Mas outros serão como a Capela Sistina ou a teoria da relatividade, compensando amplamente o investimento no resto.

Premiar a criatividade pelo número de cópias só traz chatices. Limita o que todos podemos fazer, dificulta o acesso à cultura, impede a transformação de obras recentes e incentiva o contrário do que queremos. O que nos interessa são os saltos de génio, imprevisíveis e muitas vezes pouco apreciados a curto prazo. Mas, em vez disso, investimos no corriqueiro, no que já todos conhecem, porque é isso que se sabe que muitos milhões vão comprar.



Já não me lembro por que via encontrei o vídeo, mas obrigado a quem ajudou.
Foi por este post no Coding Horror. Obrigado ao Pedro Amaral Couto pelo link e pelo lembrete.


1- Ou pior... Under Pressure, Teachers Tamper With Test Scores
2- O que eles querem... (ou porque é que os professores ganham pouco).

domingo, julho 11, 2010

Testar o Chrome.



Via Free Soft.

sábado, julho 10, 2010

Mais sobre a censura.

Originalmente, censura era o cargo do censor. Um dos elementos mais importantes da burocracia romana, o censor era responsável pelos recenseamentos, pela supervisão das finanças e por regular a moralidade pública. É daqui que vem o sentido corrente da palavra (1).

É claro que o sentido que damos às palavras vai mudando, e é natural que hoje “censura” não queira dizer o mesmo que no tempo dos romanos. Mas o sentido das palavras deve evoluir preservando a sua capacidade de designar os conceitos que nos interessam. E “censura” corre o perigo de deixar de servir para designar restrições impostas à liberdade de expressão, de tanto abuso e maus tratos que sofre.

Um exemplo desta degradação de sentido é o termo “auto-censura”, que só posso classificar de imbecil. Se uma pessoa não diz o que pensa porque tem medo de sofrer represálias isso é censura. Não é “auto” coisa nenhuma. E se não diz o que pensa porque não quer, sem temer consequências, então isso é escolha sua e não censura. “Auto-censura” é um absurdo.

Outro problema é chamar censura a uma data de coisas que não são e depois não reparar no que é mesmo censório. Apagar um comentário no blog, não deixar que colem cartazes na minha porta ou filtrar emails indesejados não é censura. Não impede a expressão dessas ideias, apenas alguns actos específicos associados. Proibir a venda de CDs ou pastéis de nata sem licença também não é censura. Mas proibir a partilha de informação, por qualquer meio e sob qualquer forma, que permita alguém recriar um pastel de nata ou um CD, isso já é censura. A diferença fundamental, obscurecida pelo uso desleixado do termo, é que a censura impede a troca da informação em si e não apenas algum acto acessório.

Grande parte do que fazemos todos os dias está a ser restringido por leis que nos censuram, como o copyright e as patentes, porque nos impedem de partilhar informação e conhecimento. O caso recente do Roy van Rijn é um exemplo extremo mas, infelizmente, cada vez mais comum. Implementou um sistema de classificação de músicas parecido com o do Shazam e descreveu no seu blog como era fácil fazê-lo. Ia até disponibilizar o código fonte para toda a gente aprender como se faz. Até que recebeu uma carta dos advogados da Landmark Digital ameaçando levá-lo a tribunal por violação das suas patentes e proibindo-o até de explicar o algoritmo no blog. Como um julgamento destes pode custar milhões de euros, por muito injusta que seja a acusação o desgraçado não tem alternativa senão fazer o que lhe mandam. Isto é censura (2).

O caso da Playboy não tem nada de parecido. O Ricardo Alves diz que «É de censura que se trata quando uma empresa impede os seus funcionários de a criticarem em público, ou quando impede a circulação da mensagem política ou religiosa X ou Y dentro da empresa.»(3) Estou parcialmente de acordo. Se uma empresa ameaça despedir os funcionários que a criticarem, seja por que meio ou em que contexto o fizerem, então está a censurar porque está a impedi-los de exprimir essa ideia. Mas se ameaça despedir o porta-voz da empresa se disser mal da empresa na conferência de imprensa isso já não é censura. Porque não visa impedir a expressão da ideia em si mas apenas restringir como o funcionário desempenha o seu trabalho naquela situação. Mais uma vez, a diferença fundamental é entre impedir a mensagem ou apenas um acto específico que a inclua.

E o que se passa com a Playboy nem é análogo a isto. Uma empresa portuguesa que representava a Playboy publicou, sob a marca da Playboy, imagens que a Playboy não aprovou. Como a Playboy não quer que o público fique com a impressão errada que a Playboy aprova essas imagens rescindiu o contrato de representação com a editora portuguesa. Isto é o mesmo que o Ricardo publicar um texto a louvar o criacionismo, assinar o meu nome e eu exigir que não me atribuam um texto do qual discordo. Isso não é censura. É um direito.

A Playboy não pode nem tenta proibir a publicação de mulheres nuas ao lado de uma figura de Jesus. Querem apenas que não ponham o símbolo da sua empresa nessas publicações. Se chamam a isto censura estamos mal, porque vamos ter de inventar uma palavra nova para quando quisermos referir violações da liberdade de expressão em vez do legítimo exercício desses direitos.

1- Wikipedia, Roman censor
2- Techdirt, Describing How To Create A Software Program Now Puts You At Risk Of Contributory Patent Infringement?. Obrigado pelo email com o link.
3- Ricardo Alves, É censura? Sim. É grave? Há pior. Mas...

sexta-feira, julho 09, 2010

Treta da semana: o Diabo da crença.

Segundo o Bernardo Motta, «um cristão, mesmo sendo sacerdote ou Bispo, que perdeu a fé nas verdades acerca dos anjos e dos demónios, e na verdade da acção do Príncipe das Trevas sobre o Mundo e sobre a Humanidade, está fora da fé cristã.»(1) O fiscal de linha levanta a bandeira, o árbitro apita e pronto, é um fora de fé. E sabemos que a opinião do Bernardo acerca dos anjos, dos demónios e do filho do rei das trevas corresponde inteiramente à realidade. Não porque o Bernardo tenha alguma evidência destas coisas, mas porque ele próprio diz que são verdades. Esta é a chamada “verdade da fé”, também conhecida como “sim porque sim, ora”.

Muitos alegam que eu confundo religião com superstição e que critico caricaturas da religião em vez da Religião Verdadeira®. São tantos os que me apontam isto que já me teriam convencido se não fosse cada um dizer que religião é a sua e superstições caricatas as dos restantes. Assim apenas confirmam a minha suspeita que a distinção que querem que eu faça é simplesmente entre “nosso” e “deles”.

Porque o método da religião é o mesmo da superstição. A Enciclopédia Católica (2) explica que a Bíblia não dá uma descrição coerente do Diabo, pelo que o que se “sabe” dele tem de ser interpretado de vários fragmentos «à luz da tradição patrística e teológica». Ou seja, por especulação inspirada na especulação dos outros. Que é o mesmo método que levou à conclusão que ferraduras dão sorte, gatos pretos dão azar e quem entorna sal deve atirar uma pitada por cima do ombro. Tudo isto é tão verdadeiro como a cauda pontiaguda do Mafarrico.

Como os crentes esclarecidos não se deixam levar por mera especulação, no quarto concílio Laterano isto deixou de ser especulação e passou a ser dogma. É assim que os católicos resolvem estes problemas. Nada desses disparates de testar hipóteses e reunir evidências. O caminho para a verdade está nas proclamações de homens de saia. «O diabo e outros demónios foram realmente criados por Deus bons por natureza mas tornaram-se maus por eles próprios; o homem, no entanto, pecou pela sugestão do diabo.»(3) Verdade da Fé.

Um exorcista que anda por cá é José Fortea, o padre espanhol que escreveu o «Tratado de Demonologia e Manual de Exorcistas» (4). Segundo a, à falta de melhor termo, jornalista Rosa Ramos «José Fortea fala do Diabo com uma familiaridade e seriedade de espantar». E vê-se bem que é um homem profundamente espiritual. «Durante os primeiros cinco minutos de entrevista, José Fortea falou sempre de olhos fechados». Se eu não estivesse habituado a ver os meus alunos fazer o mesmo nas minhas aulas, ficava impressionado. Tenho pena é que seja mais difícil exorcisar a treta do jornalismo que o Diabo do corpo.

Mas o mais famoso dos exorcistas, e o mais castiço, é o padre Gabriele Amorth. Segundo este perito em diabruras de toda a espécie, o Diabo é culpado de quase tudo o que se passa no Vaticano, da maluca que atacou o Papa aos tarados que violam crianças. Diz também que o filme “O Exorcista” dá uma ideia «substancialmente exacta»(5) do que é ser possuído por um demónio e que este novo Papa «acredita de todo o coração na prática do exorcismo. Ele tem encorajado e louvado o nosso trabalho». Olha que bom.

Para quem quiser encetar carreira nesta velha profissão, ou simplesmente rir um pouco, aqui fica um pequeno tutorial de exorcismo (6), à laia de novas oportunidades. Mas notem que apesar do feitiço ser simples a bruxaria só funciona se o praticante estiver devidamente licenciado pelo bispo (católico, claro). É que se qualquer um pudesse exorcisar, benzer, transubstanciar e coisas que tais lá tinha esta gente de trabalhar para ganhar o seu. Para que diabo servia a religião se fosse assim tão simples?



O que mais me espanta nisto nem são os disparates em que esta gente acredita. O mais incrível é estranharem quando gozam com eles...

1- Bernardo Motta, A existência do Diabo
2- Catholic Encyclopedia, Devil
3- Fordham, Medieval Sourcebook, Canons of the Fourth Lateran Council,
4- i, Exorcista. "Os padres estão pouco preparados para lidar com demónios"
5- Telegraph, Chief exorcist says Devil is in Vatican
6- Via o blog do Bernardo, Espectadores

Obrigado pelos vários emails com estas notícias.

quinta-feira, julho 08, 2010

Censura por tudo e por nada...

Censura é a restrição da liberdade de expressão ou do direito de acesso à informação. É típica de ditaduras e cultos religiosos, onde serve para controlar as pessoas. Há uns anos troquei uns emails com um cientólogo que me contactou com umas perguntas mas, ao fim de uns tempos, escreveu-me a dizer que não podíamos continuar a conversa porque os seus superiores não deixavam. Parece que eu estava a interferir no seu progresso. Isso é censura.

Também há censura por outras razões, como proibir a partilha de informação “proprietária” que é vendida ao público ou fechar fóruns de discussão com ligações para sites com filmes e música, por exemplo. E nem sempre a censura é uma coisa má. Pode servir para proteger acusados ou testemunhas num processo crime ou a nossa privacidade. Mas seja a mãe a proibir o filho de dizer palavrões seja o governo da Coreia do Norte impedir notícias sobre o 7 a 0, a censura é sempre o bloqueio de uma mensagem imposto por alguém com autoridade sobre o emissor ou o receptor. É por isso que é uma coisa má. Um quer dizer algo, outro quer ouvi-lo, e um terceiro impede que comuniquem violando os direitos de ambos.

Infelizmente, há uma tendência para chamar censura a tudo e mais alguma coisa. Infelizmente porque se trivializarmos o termo arriscamo-nos a que deixem de lhe dar importância. Como o rapaz que gritava lobo. Já falei sobre isto antes, acerca de vídeos no YouTube (1) ou de artigos em revistas (2). Desta vez é a propósito do eventual fecho da Playboy portuguesa.

Aludindo ao “Evangelho segundo Jesus Cristo” de Saramago, e em homenagem ao falecido escritor, a Playboy portuguesa incluiu uma figura de Jesus junto das meninas do costume. Em resposta, a representante da Playboy Entretainment diz que vão «rescindir o contrato com Portugal»(3). E o Ricardo Alves escreve que «Assim é: a censura pode vir de onde menos se espera. Até de uma revista conhecida internacionalmente por ter alargado as fronteiras do publicável.»(4)

Isto não tem nada que ver com censura. Pode ser pelo simbolismo religioso, por terem posto um homem barbudo na capa, por a Playboy portuguesa não dar dinheiro ou por terem medo de perder clientes cristãos. Até pode ser por pressão das igrejas, se bem que a ameaça dos padres boicotarem a Playboy não deve ter grande impacto. Tanto faz. O que importa é que é uma decisão livre de uma empresa privada. Não é uma imposição que viole os direitos de alguém. Pelo contrário, é o exercício dos direitos dos accionistas e gestores da empresa, que são livres de decidir com quem fazem contratos para editar a Playboy noutros países.

Não vamos chamar às coisas o que elas não são. Partilhar não é roubar. Nem todo o crime é terrorismo. Alugar vídeos não é cultura. A tourada não é arte. A astrologia não é uma ciência. E a Playboy americana não querer barbudos na capa não é censura.

1- 20-2-2007, Censura?
2- 2-4-2007, Jónatas Machado e a Censura.
3- TVI 24, Cristo na capa leva «Playboy» a acabar com edição portuguesa
4- Ricardo Alves, Censura.

Obrigado também pelos emails acerca da notícia.

Editado a 9-7 para corrigir uma gralha. Obrigado ao João Vasco pela atenção.

Woody Guthrie.

Woody Guthrie foi um músico e activista político famoso nos Estados Unidos. Nasceu em 1912, morreu em 1967 e viveu um período atribulado do século XX. Costumava tocar com um letreiro na guitarra a avisar que «esta máquina mata fascistas». Hoje é recordado principalmente por partes da música «This Land Is Your Land», de onde se omite alguns versos menos politicamente correctos como (1)

«As I was walkin’ I saw a sign there
And that sign said “No tresspassin’”
But on the other side, it didn’t say nothin’
Now that side was made for you and me

In the squares of the city / In the shadow of the steeple
Near the relief office, I see my people
And some are grumblin’ and some are wonderin’
If this land’s still made for you and me»


E este é o aviso de copyright que Woodie Guthrie costumava usar nas suas gravações:

«This song is Copyrighted in U.S., under Seal of Copyright #154085, for a period of 28 years, and anybody caught singin’ it without our permission, will be mighty good friends of ourn, ’cause we don’t give a dern. Publish it. Write it. Sing it. Swing to it. Yodel it. We wrote it, that’s all we wanted to do.»

Mas 64 anos depois, quando os irmãos Evan e Gregg Spiridellis usaram esta música numa paródia política às candidaturas de George W. Bush e John Kerry, a editora detentora do copyright ameaçou processá-los por deturpar a alegada «mensagem unificadora» desta música de Woody Guthrie (3). Se ele estivesse vivo tinha dado com a sua máquina de matar fascistas na cabeça dos advogados que se lembraram disso.

Dar direitos exclusivos a empresas que lucram restringindo o acesso a produtos comerciais não é a melhor maneira de promover a cultura nem respeitar os artistas. É uma receita para abusos, para a deturpação da arte e para nos privar da cultura com a desculpa de a “proteger”. Uma treta, pois a cultura protege-se divulgando-a, incorporando-a em obras novas e usando-a para nos exprimirmos.

1- Disinformation, Forgotten Verses From “This Land is Your Land”
2- EFF, This Land Isn't Your Land
3- CNN, 26-7-2004, A Jibjab showdown,

quarta-feira, julho 07, 2010

Evolução: ortólogos e parólogos.

A hemoglobina humana é composta por quatro sub-unidades formando um tetraedro. Nos adultos, duas são do tipo que designamos α e duas β. Em cada sub-unidade há uma porfirina, uma pequena “bolacha” molecular, com um átomo de ferro que se pode ligar a uma molécula de oxigénio. Quando uma molécula de O2 se liga ao átomo de Fe essa sub-unidade deforma-se e altera a conformação das outras com as quais está em contacto, aumentando a afinidade destas por O2. O resultado é que assim que a hemoglobina liga uma molécula de O2 rapidamente apanha as quatro que pode ligar. Inversamente, se estiver num meio com pouco oxigénio, ao libertar uma molécula de O2 a afinidade diminui e logo despeja todas as que carrega. Esta resposta às variações na concentração de O2 faz da hemoglobina um excelente transportador de oxigénio.

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Como as sub-unidades α ou β, sozinhas, não conseguem interagir da forma correcta, parece difícil que algo como a hemoglobina possa surgir pela acumulação gradual de pequenas mutações. Mas a semelhança destas sub-unidades da hemoglobina, entre si e com a mioglobina, ajuda a esclarecer o mistério. A mioglobina é composta apenas por uma unidade proteica. Sem a interacção das várias partes a sua resposta à concentração de O2 é linear, melhor para armazenar oxigénio que o tudo-ou-nada da hemoglobina. Podia funcionar como transportador de O2 também, à falta de melhor, mas seria menos eficaz. É por isso que temos mioglobina nos músculos e hemoglobina no sangue.

A semelhança entre estas proteínas mostra um caminho possível para a sua evolução. Os genes para a mioglobina e os dois tipos de sub-unidade da hemoglobina descendem de um único gene ancestral. Erros na replicação do ADN de antepassados distantes terão duplicado genes criando cópias capazes de evolução independente. Ao longo das gerações estas terão sofrido mutações aleatórias que foram posteriormente seleccionadas pelo seu efeito no sucesso reprodutivo dos organismos. Por exemplo, por interagirem e criarem proteínas de transporte mais eficientes.

E temos ampla evidência disto. A hipótese que a hemoglobina evoluiu assim dá previsões muito restritivas acerca das relações que podemos observar entre estes genes. Por exemplo, a diferença entre as cadeias α e β indica que estes genes divergiram há cerca de 450 milhões de anos, pelo em todos os mamíferos que tenham estes genes as suas diferenças terão de ser semelhantes. É o que observamos nestas e também quando as comparamos com a mioglobina, outras cadeias da hemoglobina e até outras variantes em plantas e bactérias que descendem de um gene ancestral mais antigo (1).

Estes padrões são evidência muito forte. É o que observamos na homologia morfológica também. Duas estruturas são consideradas homólogas quando há evidências de descenderem de uma estrutura ancestral num antepassado comum. Por exemplo, a asa do morcego, a barbatana do golfinho, a pata do cão e a nossa mão. Podemos ver como as semelhanças e diferenças acompanham outras características agrupando as espécies perfeitamente numa árvore de família, algo extremamente improvável se tivessem uma criação independente. Não conseguimos fazer árvores filogenéticas com os objectos que nós criamos, por exemplo, precisamente porque estes não surgem por descendência e modificação e, por isso, não têm estas correlações entre as suas características.

A evolução de estruturas anatómicas está também confirmada nos fósseis, com muitas formas intermédias bem conhecidas e documentadas. Na evolução molecular este registo é muito limitado. Podemos ver como eram os esqueletos de contemporâneos dos antepassados das baleias ou dos cavalos mas sequenciar genes tão antigos será difícil. No entanto, o registo fóssil não é a evidência principal para a evolução. Mesmo sem fósseis seria mais que evidente que somos todos parentes pela comparação de espécies vivas. E a evolução molecular dá-nos duas formas independentes de homologia como evidência.

Os genes da hemoglobina de humanos, chimpanzés e golfinhos são ortólogos. Descendem de um gene ancestral e divergiram porque essa população ancestral se dispersou em linhagens diferentes, cada uma acumulando mutações diferentes. Mas os genes da hemoglobina e da mioglobina humana são parólogos. São diferentes porque a duplicação de genes formou várias linhagens de descendentes do mesmo gene ancestral que persistiram na mesma linhagem de organismos. Por isso a nível molecular temos duas árvores de evolução entrelaçadas pelas duplicações de centenas de milhares de genes e pela dispersão de milhões de populações.

A teoria da evolução é a única explicação que temos para este entrelaçado. Nenhuma outra hipótese consegue explicar em tal detalhe as intrincadas relações entre os genes que observamos nos organismos de hoje. Apesar do que apregoam os proponentes da criação por milagre, nenhuma outra hipótese sequer chega lá perto.

1- Hardison, 1998, Hemoglobins from bacteria to man: evolution of different patterns of gene expression, The Journal of Experimental Biology 201, 1099–1117 (1998).

Editado a 8-7. Obrigado ao Zarolho pelo olho para as gralhas.

sábado, julho 03, 2010

Fé.

“Fé” é um termo que não se consegue definir bem por palavras porque, como “amor”, refere mais do que aquilo que as palavras podem descrever. Quem já sentiu sabe o que a palavra refere mas a quem nunca sentiu o dicionário dará sempre uma ideia incompleta. E este problema é muito apontado como prova do Mistério que estas coisas são; o Amor, a Fé, Deus, etc. Mas este é um problema comum a quase todas as definições fora de sistemas formais como a matemática e a lógica. Passa-se exactamente o mesmo com “salgado”, “verde” ou “cheiro a couves”. Quem já sentiu sabe o que significa e quem nunca sentiu não vai perceber o significado todo. Ainda assim, há aspectos destas coisas que podemos compreender por palavras mesmo que, sem as sentir, fique alguma coisa de fora.

A propósito de um texto do Domingos Faria sobre o ateísmo ser o primeiro passo para a fé (1), perguntei-lhe o que é a fé e para que serve. Não contava com uma definição completa da fé, mas bastava algo que desse uma ideia do seu papel. E a propósito da resposta do Domingos decidi escrever estas minhas impressões acerca da fé e daquilo para que pode servir.

O Domingos respondeu, como responde muita gente, que ter fé é acreditar. Mas não pode ser, por várias razões. A fé é apresentada como razão para crer, e se justificam acreditar porque têm fé a fé tem de ser algo que precede a crença e os leva a acreditar. Além disso, a crença admite facilmente a possibilidade de erro. Muitas vezes até acompanhamos a expressão de uma crença com um “se não me engano”, indicando precisamente que podemos estar enganados naquilo em que acreditamos. Acredito que vai chover ou que a faca do pão está na gaveta, mas se calhar não é verdade. A fé não é assim. É contraditório dizer que se tem fé em algo e ao mesmo tempo admitir que se pode estar enganado, porque tal admissão revelaria falta de fé.

A fé também implica a expressão insistente, e persistente, da crença. Perseverança e fidelidade. Eu acredito que isso dos deuses é treta mas, não tendo fé, se me ameaçarem com a fogueira digo logo que acredito nos deuses que quiserem, como hóstias e invento pecados no confessionário se for preciso. Um grande contraste com a fé dos mártires que optam pela tortura e morte só para persistir na afirmação das suas crenças.

Outra diferença entre acreditar e ter fé é que acreditar faz parte de compreender mas a compreensão exclui a fé. Eu compreendo porque é que o interruptor faz acender a luz, e para compreender isso tenho de acreditar em várias proposições acerca desse circuito eléctrico. Mas uma vez que compreendo não há espaço para ter fé. Se acende sei porquê, e se não acende é um disjuntor desligado ou uma lâmpada fundida. Não é uma crise de fé.

Finalmente, a fé é proposta como uma virtude. Ter fé é ser fiel a uma crença. É moralmente bom, digno e virtuoso. E rejeitar essa crença é mau. É uma falha, uma traição, uma imoralidade. Coisa de quem não é de fiar. O que não se passa com as crenças em geral. Sem a fé, acreditar ou deixar de acreditar são actos moralmente neutros. Não é virtude acreditar que o autocarro vem à hora indicada no horário nem é defeito de carácter deixar de acreditar quando a hora passa e o autocarro não veio.

E não só é virtude ter fé como é defeito de carácter criticar o que acreditam pela fé. Todos reconhecemos que, em geral, as crenças estão sujeitas a críticas e discussão. Mas às crenças motivadas pela fé é dá-se um estatuto especial, com pressões sociais contra a dissensão aberta e muitas vezes até leis que punem quem as criticar demasiado.

Há mais coisas que se poderia dizer acerca da fé e mais coisas que não se consegue pôr em palavras, que só quem tem fé é que pode sentir. Mas estas características da fé já dão uma ideia da sua função. Daquilo para que serve a fé. Serve para manipular as pessoas.

Os requisitos de um mecanismo psicológico para fazer as pessoas acreditar no que quisermos são exactamente estas características da fé. Algo que dê a sensação de justificar a crença em coisas que não se compreende. Que faça sentir essa crença como uma virtude, a descrença como um defeito e a crítica como uma ofensa. Que torne desconfortável admitir a possibilidade de erro. E que motive o crente a defender e propagar a crença mesmo com grande sacrifício pessoal.

Por isso a fé é um excelente vector de clonagem de crenças*. Basta inserir a crença que se quer propagar, infectar alguns hospedeiros e a fé trata de a espalhar pela população. E dá para muitas crenças. Que certas pessoas têm um canal especial de comunicação com um deus, são lideradas por um chefe infalível e não fazem mal às crianças. Que este livro é sagrado. Ou aquele, ou o outro. E não é só com deuses. Dá para produzir católicos e criacionistas, mas também cientólogos, raelianos e sistemas de governo liderados por um morto.

E, ao contrário do que escreveu o Domingos, o ateísmo não é o primeiro passo para a fé. É uma das manifestações da vacina contra esse agente infeccioso.

* É uma analogia um pouco técnica, mas pareceu-me boa demais para deixar passar. De qualquer forma, com a Wikipedia qualquer um pode saber biologia molecular: Cloning vector.

1-Domingos Faria, Ateísmo – um primeiro passo para a Fé.

quinta-feira, julho 01, 2010

Treta da semana: copiar CDs é pior que a droga.

No passado dia 28 o programa Falar Global da SIC Notícias foi sobre a pirataria informática. Ou, melhor, foi sobre o que os revendedores dizem da pirataria. Começou logo com o apresentador a dizer que iam “dar rosto às vítimas da pirataria”. E depois de uma curta peça de propaganda disfarçada de reportagem passaram à entrevista com o Manuel Cerqueira, presidente da Associação Portuguesa de Software (ASSOFT). Um senhor distinto e com um aspecto bem mais próspero do que seria de esperar de uma vítima de piratas. Mas estou a adiantar-me.

A peça “jornalística” que inicia o programa dura três minutos e meio. Minuto e meio para um vídeo americano de propaganda contra a pirataria de filmes e a ASSOFT a dizer que a pirataria de software faz perder 174 milhões de euros por ano só em Portugal. Depois um minuto dividido entre o presidente da ACAPOR a dizer que tanto o download como o upload são crime e um representante do PPP a dizer que apenas o upload é ilegal porque o que a lei proíbe é a distribuição e não a cópia privada. Entra então a jornalista em voz off e, com a isenção que manda a sua profissão, resolve a questão dizendo que a pirataria informática é um crime com vítimas. O minuto final é sobre os clubes de vídeo estarem a fechar por culpa da Internet, concluindo depois com a pergunta, em tom retórico, se não seremos todos nós os lesados. Eu cá não sou. Um clube de vídeo faz-me menos falta que uma loja de alugar palitos.

Depois vem a entrevista. Um género de Crossfire sem o cross nem o fire. Às tantas, acerca da pirataria, o entrevistador faz uma “pergunta” afirmando que «Estas manobras são, de facto, um atentado à economia mundial. Inclusivamente trazem um rombo significativo». Não querendo ficar atrás, o Manuel Cerqueira responde que a «pirataria de software consegue ser mais gravosa que a própria droga». Não será pelo drama da toxicodependência, as overdoses, os perigos de partilhar seringas, a miséria e a violência estúpida que acompanham a droga. Esses são problemas humanos sem gravidade. A pirataria é pior porque, segundo o chapéu do Manuel Cerqueira, custa mais dinheiro. São cinquenta e quatro mil milhões de dólares por ano em pirataria, que é muito mais do que se gasta em droga.

Bem, na verdade, não é. A ONU estima que o comércio ilícito de drogas movimenta um total de 351 mil milhões de dólares por ano (1), sete vezes mais que o valor inventado para a pirataria de software. E com a agravante de ser dinheiro mesmo em vez de números de fantasia. As contas do Manuel Cerqueira não convenciam nenhum traficante de droga. Nem, em verdade, ninguém com um nível de alcoolemia abaixo do limite legal. Porque as tais bateladas de milhões que a pirataria alegadamente custa resultam de estimar quantas cópias do MsOffice o pessoal usa de borla, assumir que se o usam de borla também pagavam 100€ para não usar o OpenOffice, que é mesmo de borla, e depois chamar “perdas” a esse dinheiro que teriam ganho se vivessem na terra do Nunca-Nunca.

Foi assim que eu perdi 28 milhões de euros a semana passada, quando não ganhei o Euromilhões. E só não foi mais porque não joguei...

Depois disto o resto da entrevista é anti-climático. Um enrolar de disparates e pobreza jornalística já muito abaixo da pirataria de software ser mais gravosa que a droga. Mas queria salientar um momento que me tocou pessoalmente. O Manuel Cerqueira diz que desenvolver software exige pessoas com grande formação e que «a ciência para fazer software não se apanha das árvores. É uma questão que obriga a muito estudo, obriga a mentes brilhantes, e obriga a muito investimento. Portanto alguém tem que ganhar para pagar essa factura.»

Criar software exige muito estudo, investimento e ciência. Mas a factura principal pagamo-la todos. A empresa pode pagar um ou dois anos de salários a uma equipa de programadores para desenvolver o próximo minesweeper, mas só porque esses programadores investiram a sua juventude em estudo e nós todos pagámos essas quase duas décadas de formação. E porque gerações anteriores criaram, ensinaram e partilharam a ciência que permitiu essa formação. Sem Microsofts possivelmente não haveria programas tão bonitos, tão fáceis de usar e tão cheios de bugs e vírus. Mas sem o enorme investimento público em ciência e tecnologia, e sem o investimento pessoal de muita gente que se dedicou a aprender a programar, não havia nem Microsofts, nem Internet, nem sequer computadores. E os associados do Manuel Cerqueira lá teriam de arranjar um trabalho que não fosse a vender o que os outros criam.

O programa está aqui. Obrigado ao Miguel Caetano por, não satisfeito com a azia com que ficou, me ter dado o link para eu ficar mal disposto também.

1- Boston.com, UN report puts world's illicit drug trade at estimated $321b

Editado a 2-7, para trocar um "download" por um "upload". Obrigado ao Nelson Cruz por topar a gralha.