segunda-feira, agosto 18, 2008

Actos e expressão 2: a propriedade intelectual.

Hoje podemos representar muita coisa com sequências de números que espalhamos num instante por todo o mundo. E a comunicação em massa já não está sob o controlo de alguns agentes económicos ou governos que agora querem regular a informação que partilhamos. O desabafo anterior foi por aplicarem á comunicação pessoal regras próprias de actividades comerciais ou profissionais (1). Faz sentido um código deontológico para o jornalismo mas não para conversas de café. E não importa se o café é virtual ou se tem milhões de pessoas. Como já ameacei, agora refilo pela regulação da criatividade com regras adequadas a uma tecnologia ultrapassada. Porque aplicadas ao meio digital estas têm um efeito contrário ao pretendido e limitam a nossa liberdade de expressão, pelo que mesmo que funcionassem seria demasiado a pagar por discos ou cinemas.

As patentes de software ilustram o problema. Quando um inventor tem uma boa ideia não queremos que a guarde para si. Porque as ideias são mais úteis quando são partilhadas, concedemos-lhe um monopólio temporário sobre a aplicação da ideia em troca da descrição detalhada dessa ideia. Mas as patentes de software consideram que o programa, mesmo o código fonte, é a aplicação da ideia. Na verdade, o programa é uma descrição detalhada da ideia, escrita numa linguagem que o computador interpreta, e a aplicação seria executar o programa. Porque é mais fácil regular a distribuição que a utilização dos programas, a sociedade acaba por conceder um monopólio sobre a própria informação que esta concessão pretendia comprar. É pagar ao merceeiro para que ele fique com as nossas compras. E além de ser mau negócio proíbe a comunicação da ideia.

O copyright tem o mesmo problema. A intenção era incentivar o investimento na industria; os direitos de autor vieram mais tarde para equilibrar um pouco a negociação entre estes e os impressores. Mas a industria da cópia teve sempre a fatia maior, o que era razoável porque custa mais convencer investidores a pagar uma fábrica de livros do que convencer poetas a escrever poesia. E como este monopólio não tinha impacto na vida privada era um preço aceitável para garantir a distribuição das obras.

A transposição cega deste sistema para o meio digital é asneira porque dificulta a distribuição, restringe o acesso às obras, afecta a vida pessoal e mistura a regulação de actos concretos com a proibição de trocar informação em abstracto. O Mário Miguel mencionou a notícia de um “pirata” condenado a pagar setecentas mil libras à Symantec por vender, sem autorização, trinta e cinco mil cópias do PC Anywhere (2). “Pirata” agora tanto é quem monta uma empresa para vender cópias ilegalmente como quem partilha ficheiros em casa sem cobrar nada. É como considerar que cantar no duche é o mesmo que fazer milhões com concertos ao vivo.

Contrariando a tendência recente, procuradorias de vários estados federais alemães declararam que vão ignorar processos movidos contra quem partilhar menos de 3000 euros de conteúdos, cerca de 3000 músicas ou 200 filmes (3). É um passo na direcção certa por tentar distinguir actos com impacto comercial de actos pessoais. Infelizmente, não é legislação feita por representantes eleitos, visa principalmente reduzir os encargos com os processos movidos pelas editoras e ignora o problema principal.

É razoável regular certas actividades económicas para manter o mercado saudável apenas se o que se ganha com a regulação compensar o que se perde por causa das regras. Obrigar quem vende material digital a pagar uma percentagem aos detentores de direitos seria uma regra razoável. O direito de proibir a venda sem licença já tem mais custos que benefícios por limitar a distribuição e exigir mais policiamento. Dar controlo sobre obras derivadas ou sobre a utilização da ideia noutros contextos é um exagero porque além dos custos para a sociedade inibe a inovação, precisamente o contrário do que se quer. E proibir que as pessoas liguem os seus computadores e troquem sequências de números é pôr o disco de plástico à frente dos direitos humanos.

Em suma, a regulação das comunicações digitais deve considerar que já não é preciso pagar a distribuição de ideias e conteúdos, pelo que se justifica reduzir os privilégios que concedemos a quem o faz. E que este é um meio de comunicação pessoal merecedor da mesma protecção que outros como telefones ou cartas. Neste post foquei apenas a distribuição mas parte do argumento aplica-se também ao incentivo da criatividade. A liberdade de expressão é valiosa demais para que se pague com ela músicas ou filmes. Além disso, esta tecnologia estimula mais a criatividade se permitirmos a troca livre de informação do que se a licenciarmos à cobrança. Mas isso fica para a o último episódio da série.

1- Actos e expressão 1: da ameaça ao insulto.
2- Wintech, Pirata Condenado a Indemnizar a Symantec
3- O Miguel Caetano tem a notícia no Remixtures, É permitido partilhar até 3000 músicas e 200 filmes na Alemanha. Eu até soube disto uma semana antes, mas foi por “fontes confidenciais” ;)

10 comentários:

  1. Olá.

    É como considerar que cantar no duche é o mesmo que fazer milhões com concertos ao vivo.

    Julgo que sempre que dás este exemplo esqueces que a interpretação é nos concertos metade da autoria. Ver caso das infantas chinesas, que tu mesmo execraste. E vamos ser claros quanto ao seguinte: se cantares assim no duche sem ninguém desconfiar, trazemos os Olímpicos para Portugal.

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  2. Bruce,

    No concerto a interpretação é uma parte e a criação da música foi outra. No duche o mesmo. Mas no concerto paga-se ao autor porque se está a fazer dinheiro com isso.

    Na venda de CDs parte do trabalho foi a criação da obra, outra parte é fazer a cópia e distribui-la. É esta parte que quem partilha ficheiros está a fazer. E, tal como no duche, não está a ganhar dinheiro com isso e está a fazê-lo a títuli pessoal, não como profissão o empreendedorismo.

    (O video vejo quando voltar a casa... estou na terrinha com net por telele, não é bom para youtube)

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  3. Acho que vais achar este site interessante (www.mygazines.com); a crítica (uma das, pelo menos...) aqui

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  4. Caro Ludwig, tem aqui uma notícia que lhe deve interessar:
    http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/
    Tecnologia/Interior.aspx?
    content_id=981669

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  5. Caro Ludwig:

    Peço, por piedade, se possível, me dê um link no qual estejam figuradas as diferenças entre Direitos de Autor e Patentes (explicados a Totós). Se fosse um post era fenomenal. Tipo glossário. Mas é pedir demais. Este pedido tem o intuito de esclarecer um grupo de pessoas da área da música que está a fazer alguma confusão (acho eu) com os conceitos, e que devido a isso tem surgido discussões (fora da Net) de cortar à faca, originadas em alguns posts seus. O que é, de alugam forma, bom.

    Obrigado, mesmo que não me resolva o problema, pois todos os posts sobre o tema já vale o agradecimento.

    Só mais uma coisa. A informação de uma pessoa, depois de morrer, pode ser vasculhada, mesmo se a mesma não quiser, tipo: nome, data de nascimento e dada da morte?

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  6. Caro LFR,

    Um post era uma boa ideia. Se bem que iria repescar coisas que já escrevi aqui, penso que tenho outras para dizer, ou outras formas de as dizer, acerca dessas diferenças.

    Mas entretanto, aqui (pdf) tem o código do direito de autor, que em Portugal refere um conjunto de exclusividades (cópia, difusão, reconhecimento, transformação, etc) e aplica-se a

    «criações intelectuais do domínio literário, científico
    e artístico, por qualquer modo exteriorizadas»


    E aqui tem o código da propriedade industrial que rege as patentes:


    «Podem ser objecto de patente as invenções novas implicando actividade inventiva, se forem susceptíveis de aplicação industrial [e] os processos novos de obtenção de produtos, substâncias ou composições já conhecidos.

    [...]Exceptuam-se [...a]s descobertas, assim como as teorias científicas e os métodos matemáticos; os materiais ou as substâncias já existentes na natureza e as matérias nucleares; as criações estéticas; os projectos, os princípios e métodos do exercício de actividades intelectuais em matéria de jogo ou no domínio das actividades económicas, assim como os programas de computadores, como tais; as apresentações de informação.»


    Resumindo, a diferença principal é que o primeiro foca a expressão da obra em si -- o texto escrito no livro, a música gravada no disco, etc, enquanto o outro foca a aplicação industrial de uma invenção mas a invenção em si passa ao domínio público quando se regista a patente.

    «A informação de uma pessoa, depois de morrer, pode ser vasculhada, mesmo se a mesma não quiser, tipo: nome, data de nascimento e dada da morte?»

    Não sei muito disto, mas tanto quanto percebi daqui em geral são registos públicos a menos que incluam alguns dados confidenciais. Nesse caso o que se pode obter é apenas uma descrição dos outros. Mas data de nascimento, local e data de morte penso que se pode obter sempre, quer a pessoa queira quer não.

    Mas por enquanto é preciso ir à conservatória pedir isso e eles têm que consultar nos livros. Daqui a uns anos, quando tiver tudo informatizado, é dar 100€ e um pendrive à senhora da limpeza e pode obter a base de dados com as informações todas de BI, nascimento, impostos, contribuinte, carta de condução e o que mais for de toda a gente do país...

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