sábado, junho 28, 2008

Treta da Semana: A Escola Bíblica Maná.

Sem inspiração para esta semana, andava à cata de borras no fundo da Internet quando encontrei a Escola Bíblica Maná (EBM), «um departamento da Igreja Maná, que tem como objectivo ensinar os alunos a edificar a sua vida em Jesus e a vencer o mundo o diabo e as circunstâncias adversas.»(1) Um curso para vencer o mundo, tirado em casa pela Internet e por apenas 600€ é um bom negócio.

O corpo docente é liderado pelo Apóstolo Jorge Tadeu, um engenheiro civil que «Conheceu Jesus Cristo na África do Sul»(2), mas a directora da EBM é a Bispo Gisela Rodrigues, licenciada em educação física e «pastora da Igreja do Tojal juntamente com o seu esposo, o Bispo José Manuel Rodrigues,» esposo este que também lecciona na EBM. Juntamente com a Pastora Christel Tadeu, apresentada apenas como "Esposa do Apóstolo Jorge Tadeu", com aspas no original. Que coincidência, tantos casais com o mesmo tacho. Digo, profissão. Como o mundo é pequeno. Mas isto seria uma treta corriqueira não fosse o protocolo entre a EBM e a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia:

«Os alunos da Escola Bíblica Maná com o 12º ano de Escolaridade completo e o curso da Escola Bíblica entram directamente para o terceiro ano universitário do Curso de Licenciatura em Ciências das Religiões, nos termos do protocolo estabelecido entre estas duas entidades. O Curso consta de quatro anos. Destes, os alunos farão apenas os dois últimos, o 3º e 4º.»(3)

Esta informação parece estar desactualizada porque licenciatura agora é um primeiro ciclo de Bolonha e dura 3 anos. A página na Lusófona também não menciona o acordo com a EBM, e «a única licenciatura laica sobre o fenómeno religioso» tem um corpo docente bastante mais qualificado, com alguns doutorados e estudantes de doutoramento em história e sociologia (4). O estudo cientifico das religiões é um tema interessante, se bem que me pareça mais apropriado para um mestrado ou doutoramento onde os alunos já tenham uma formação científica de base. A presença no corpo docente de um pastor evangélico «Especialista em questões relativas ao Pensamento Contemporâneo», «Empresário da área da Comunicação Social» e apenas com o grau de licenciado levanta-me algumas dúvidas, mas a licenciatura foi aprovada pela DGES (5), pelo que confio que esteja ao nível do ensino superior privado em Portugal.

Mas parece-me que o corpo docente da EBM não garante o mesmo nível, e preocupa-me se for verdade o que está na página da Igreja Maná. Mais até do que se for aldrabice. Um curso por Internet ministrado pelo Apóstolo Jorge Tadeu dar aos alunos a equivalência a dois terços de uma licenciatura demonstra o espírito empreendedor do Apóstolo mas não abona em favor do ensino superior português.

1- Escola Bíblica Maná, Valor do Curso.
2- Escola Bíblica Maná, Corpo Docente.
3- Escola Bíblica Maná, Protocolo Universidade.
4- Universidade Lusófona, Ciência das Religiões
5- Direcção Geral do Ensino Superior, Oferta Formativa

quinta-feira, junho 26, 2008

Estão a ver?

A propósito da conversa sobre vigilância e privacidade, recomendo este artigo do Bruce Schneier no Guardian, sobre os efeitos e consequências dos sistemas de video-vigilância:

CCTV doesn't keep us safe, yet the cameras are everywhere

Além de não reduzirem o crime que era suposto reduzirem, têm um custo de oportunidade pelo investimento ineficaz que podia ser usado para ter mais polícias e melhor preparados, e ainda dá azo a mais crimes (por exemplo, Peeping tom CCTV workers jailed) e abusos que a lei nem contempla como ilícitos (como este, `Caught In The Act' In Britain Means Millions May See You).

Infelizmente, muita gente pensa que os criminosos se reformam ao ver uma câmara ou que os terroristas desistem com medo que lhes registem as chamadas. Mas para estes é trivial estragar a câmara, mandar uma pedrada no candeeiro, usar uma máscara, telefonar com um telemóvel roubado ou ligar-se à Internet pela rede de outra pessoa. Vigiar toda a gente em vez de se concentrarem nos suspeitos só penaliza o resto das pessoas.

(Via Shneier on Security)

quarta-feira, junho 25, 2008

Como definirias “ateísmo”?

O Helder passou-me um questionário com dez perguntas (1), mas esta interessa-me mais que as outras. À letra, parece perguntar o que eu faria se decidisse como definir “ateísmo”. Não definia. A palavra “sinistrado” é útil mas não precisamos de uma palavra para quem não teve um acidente. Da mesma forma, basta conceitos como cristianismo, budismo e hinduismo para designar o atropelamento por uma dessas religiões. Não é preciso um termo para quem se safa.

Mas a palavra já foi definida pelos crentes e carrega séculos de preconceitos. A questão agora é explicar o que é que “ateísmo” tem a ver comigo, visto que já não me safo da etiqueta. Para os gregos, o ateu estava privado de deuses, coitado, e na idade média o ateísmo era a ruptura deliberada da relação com Deus. Não admira que até ao século XVII, “ateu” fosse sempre uma acusação que se fazia aos outros e nunca algo que se assumisse. Até porque seria arriscado. Do século XVIII para cá a convivência de muitas culturas e a liberalização de algumas sociedades mudou a situação mas permanece o problema de acharem que o ateísmo é um ismo acerca de deuses (2). Foi uma palavra mal escolhida e enviesada à partida.

Um ismo fundamenta-se numa premissa saliente, que considera inegável, mas que é disputada por outros ismos. Cristianismo, judaísmo, budismo, marxismo, e assim por diante. Por isso não é de estranhar que julguem que o ateísmo se fundamenta na premissa que deus não existe. Mas a inexistência de deuses não é premissa nem fundamento do ateísmo. O fundamento do ateísmo é a distinção clara entre o que é, o que julgamos ser, e o que gostaríamos que fosse. O resto é consequência de compreender que estes três conceitos são distintos. Se acham que isto é tão banal que não merece um nome, muito menos um ismo, estou de acordo. É como ter uma palavra para quem não foi atropelado. Mas as consequências desta distinção são significativas.

Porque a realidade e o que penso dela são coisas diferentes posso exigir que toda a afirmação de factos tenha um fundamento empírico. Alguns interpretam esta exigência como dizendo que só o observável é real, mas não é isso. Admito a possibilidade de haver coisas que não podemos observar. Simplesmente não devemos afirmar que alguma dessas coisas exista porque isso é especular sem fundamento. Isto é consensual para unicórnios invisíveis ou extraterrestres de outras dimensões. Podem existir, mas se não se observam não se justifica afirmar que existem. Só que alguns chamam-me ateu porque aplico o mesmo critério ao que me dizem dos seus deuses.

Porque distingo o que julgo ser verdade daquilo que gostaria que fosse a minha confiança em cada hipótese depende das evidências que a destacam das alternativas. Por isso rejeito a astrologia e acho o criacionismo um disparate. E é também por isso que não tenho fé. A fé faz do desejo uma opinião na qual se confia mais do que merece. Os que professam uma religião focam este detalhe e chamam-me ateu por não partilhar a fé deles.

E a distinção entre realidade e desejo deixa-me insatisfeito com mistérios. Para pôr a realidade como eu quero tenho que perceber primeiro como ela funciona. Por isso não gasto dinheiro no professor Bambo e prefiro ciência em vez de bruxaria. E muitos crentes concordam com isto. Mas chamam-me ateu porque também rejeito o hocus-pocus na hóstia, os milagres a as missas.

A palavra já está definida mas, infelizmente, foca uma parte insignificante daquilo que refere. Sim, discordo que haja deuses. Mas mudava de ideias se o Sol nunca nascesse quando o faraó fizesse greve ou se em cada trovoada visse um tipo de toga a atirar raios cá para baixo. Não é isso que importa. A questão da existência de alguns deuses só vem à baila por causa dos que insistem que o seu é que é verdadeiro. Há imensos deuses que se pode rejeitar sem ninguém achar nada de estranho.

Por isso, a quem quiser perceber o ateísmo recomendo que esqueça a parte dos deuses. Esqueça até a palavra, que só engana. Ateísmo é só usar o bom senso que todos têm, mas sem abrir excepções para a religião que saiu na rifa.

1- Helder Sanches, 15-6-08, O Meme Ateísta
2- Wikipedia, Atheist

terça-feira, junho 24, 2008

Mais um exemplo

dedicado aos apologistas do deixem recolher a informação que a lei protege-nos. O Reino Unido tem uma rede extensa de vigilância electrónica, não só das comunicações mas também com mais de quatro milhões de câmaras espalhadas pelas ruas (1). Para proteger os cidadãos tem o Regulation of Investigatory Powers Act (RIPA), que permite o uso destes dados apenas em casos de crime.

A BBC revelou que em alguns municípios do sul da Inglaterra o RIPA foi invocado mais de 750 vezes em 2007 e 2008. Apenas um em cada oito casos mereceu acção policial. A vigilância electrónica foi usada para detectar taxis ilegais, pessoas que não apanhavam a bosta do cão, a apanha do berbigão em locais não autorizados e até para vigiar um casal durante duas semanas para ver se estavam mesmo a morar na zona da escola onde tinham a filha (2).

Mas os cidadãos britânicos não têm nada a temer. O Information Commissioner's Office já se mostrou “preocupado” com a situação, e certamente que isto vai resolver o problema. Até parece que estou a ver o Humphrey a dizer “Yes, minister.”

1- BBC, 2-11-06, Britain is 'surveillance society'
2- BBC, 23-6-08, Councils admit using spying laws

segunda-feira, junho 23, 2008

O melhor argumento criacionista.

Privacidade e abusos.

A Försvarets Radioanstalt (FRA) é a agência sueca de análise de sinais e criptografia. Fundada em 1942, trabalha com as forças armadas na defesa nacional. No passado dia 18 a Suécia aprovou uma lei que encarrega esta agência de interceptar e inspeccionar todas as comunicações por cabo que cruzem as fronteiras suecas. Dada a complexidade da Internet isto inclui a maioria das ligações dentro da Suécia e um grande número de comunicações que não têm a ver com a Suécia. E desde Novembro de 2007 que a FRA tem o 5º supercomputador mais poderoso no mundo, sabendo-se que esta agência já há décadas que monitoriza, à margem da lei, comunicações entre a Suécia e outros países, e provavelmente comunicações internas na Suécia (1,2).

No dia 20 o Congresso dos EUA aprovou uma amnistia a todos os fornecedores de serviços de Internet e telecomunicações que auxiliaram a presidência dos EUA a interceptar comunicações sem autorização judicial. É contrário à constituição dos EUA, que garante aos cidadãos a inviolabilidade das suas pessoas, casas, bens e comunicações sem que haja um mandato de busca fundamentado em causa provável (3). O artigo 34º da nossa constituição também estabelece que «O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis» e que é «proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal». Mas apesar de proibida «toda a ingerência das autoridades públicas» nas nossas comunicações poucos se preocupam que o Estado ordene às empresas de comunicações que guardem detalhes acerca do que enviamos uns aos outros.

O artigo 35º da Constituição Portuguesa proíbe «a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.» O Cartão do Cidadão agrega toda a informação associada aos números de contribuinte, BI, segurança social e de saúde. Mas preserva os quatro números diferentes porque senão «violaria a Constituição da República Portuguesa.»(4) Mas não faz sentido que a Constituição nos proteja de um número. Esta proibição só faz sentido para nos proteger do cruzamento indevido da informação que o Estado guarda. O Cartão do Cidadão é uma finta à Constituição. Dizem nas FAQ não haver cruzamento dos dados mas se têm uma base de dados informatizada em que relacionam as chaves das outras a informação está efectivamente cruzada. Se esta informação estiver em papel temos o inconveniente de esperar meia que a senhora da repartição consulte os cadernos quando pedimos um cartão novo. Mas essa meia hora é a única coisa que impede o Estado de bisbilhotar dez milhões de pessoas.

Estes exemplos, entre muitos outros, têm em comum a erosão dos nossos direitos e a indiferença e falta de informação por parte do eleitorado, agravadas pelo carácter imprevisível da tecnologia. Para muitos a retenção da informação acerca do tamanho e destino dos pacotes de dados que trocamos na Internet não levanta problemas. Os sistemas de telefone pela Internet (VoIP, voice over IP), como o Skype, cifram os dados transmitidos pelo que mesmo examinando os pacotes de dados não é possível ouvir a conversa. Saber o tamanho destes pacotes devia dar ainda menos informação. Mas sons complexos como “au” exigem uma amostragem mais fina quando são digitalizados, e mais bits, do que sons simples como os de consoantes “c” ou “t”. Isto permite usar amostragens variáveis reduzindo a largura de banda usada pelo VoIP. O resultado desta compressão é uma correlação entre o tamanho dos pacotes de dados e os fonemas que permite identificar uma boa parte das palavras na conversa (5).

Se a informação é recolhida e armazenada alguém a vai usar, ou alterando a lei quando der jeito ou usando a informação ilegalmente e alterando a lei a seguir para não sofrer consequências. E ninguém prevê que usos se dará à informação recolhida. Os dados que parecem mais inócuos podem revelar mais do que se julga quando cruzados e processados. A única forma de defender o nosso direito de controlar e limitar a informação que guardam acerca de nós é consciencializando as pessoas para estes problemas e impedindo a retenção, processamento e cruzamento de dados pessoais sem autorização dos visados, excepto se estritamente necessário. Mesmo neste caso, como registos médicos, de contribuições ou propriedades, os dados não devem poder ser cruzados. Não se justifica que a DGCI possa aceder ao desempenho escolar dos meus filhos ou ao meu registo médico. E para isso é preciso impedir que seja tecnicamente fazível. Se nem à Constituição ligam não é o que escrevem num papel que nos protege de quem lá escreve o que quiser.

1- Wikipedia, Swedish National Defence Radio Establishment
2- Zeropaid, 18-6-08, Swedish MPs to Vote on Wiretapping Law
3- Zeropaid, 20-6-08, US Congress Approves Warrantless Wiretapping - 293 to 129
4- FAQ do Cartão do Cidadão, Os números de identificação são substituídos por um número único?
5- Compressed web phone calls are easy to bug, via Schneier on Security

domingo, junho 22, 2008

Treta da Semana: Ciência Evangélica.

O leitor Barba Rija criticou-me por dedicar posts inteiros a certos disparates evangélicos, conferindo-lhes «uma dignidade que não compreendo de onde nasceu.» Admito que dou alguma visibilidade a estas coisas, mas 400 visitas diárias não devem fazer muita diferença. E pode ser que seja melhor ignorar e esperar que passe sozinho. Mas eu prefiro enfrentar o disparate, expô-lo e criticá-lo. Porque a treta é como a barata; prefere deixar-se ver só pelo canto do olho. E porque é mais divertido. Barba Rija, se não fosse tanta gente que acredita, estas coisas eram de chorar a rir.

Por isso o prémio desta semana vai para a secção «Observatório-Textos-Ciência» do Portal Evangélico (1). Julgo pelo conteúdo que o segundo “-“ se deve ler “menos”: «Encontrado O Carimbo De Jezabel»; «A Historicidade Do Dilúvio»; «Físico E Pesquisador De Origem Síria Defende Criacionismo E Aponta Erros Do Darwinismo E Do Evolucionismo Teísta» (sim, isto é um título).

Este último ilustra a estratégia criacionista do «se não tens razão repete mentiras até que peguem». O físico e pesquisador de origem síria, qualificações indispensáveis para criticar a biologia moderna, aponta que «Nunca foi constatada evolução de uma espécie para outra», o que é falso (2); «as descobertas de fósseis de elos perdidos são farsas», o que ou é falso (3) ou é disparate, visto que só são perdidos até serem descobertos; «Até hoje nenhum cientista conseguiu simular a origem da vida em laboratório», o que representa de forma enganadora a investigação nesta área (4); e que «Isso nunca será possível, pois a vida não é um fenómeno da natureza, mas um milagre que somente Deus pode operar.» A tese do milagre, presume-se, foi demonstrada cientificamente. Mas não nos explica como.

No texto «A Historicidade do Dilúvio», Claudionor Corrêa de Andrade explica que o «Dilúvio pode ser comprovado tanto histórica quanto cientificamente.» E dá-nos as provas. Primeiro, pela definição etimológica e teológica das palavras. Depois pelo relato no Génesis, corroborado pelo livro de Isaias, o evangelho de Mateus e o livro de Jó. A isto chama «Evidências bíblicas do dilúvio universal». A isto chamo “ouvi dizer”.

Depois vêm as «Evidências científicas e históricas». Dados concretos e sólidos como numa «série de tijolinhos, gravados em caracteres cuneiformes, uma narrativa bastante similar à do dilúvio bíblico», ou «relatos de aviadores, indicando a presença de um grande barco na região de Ararate, onde pousou a Arca de Noé». E este, especialmente engraçado:

«Argumentam ainda alguns pseudo-cientistas que seria impossível cobrir altos montes como o Everest, cujo topo ultrapassa os 7 mil metros. Todavia, a altitude média do planeta é de apenas 800 metros acima do nível do mar, ao passo que a profundidade média dos oceanos é de 4 mil metros.»

A altitude média é de 800 metros mas para cobrir o Everest é preciso elevar o nível do mar 7 mil metros. Como os oceanos cobrem 70% da superfície da Terra, isto exige mais do dobro da água que agora temos. O problema não é só estas alegadas evidências serem ridículas e as evidências contra um dilúvio universal serem tantas e tão sólidas (5). O maior problema é pôr tanta gente a acreditar que a ciência é esta fantochada. Se a investigação científica assentasse em tijolinhos cuneiformes e relatos de aviadores tínhamos rezas em vez de antibióticos e sacrifícios em vez da meteorologia. Mas é mesmo isso que eles querem...

1- Portal Evangélico, Observatório-Textos-Ciência
2- Joseph Boxhorn, Talkorigins.org, Observed Instances of Speciation
3- Wikipedia, Transitional Fossil
4- Albrecth Moritz, Talkorigins.org, The Origin of Life
5- Mark Isaak, Talkorigins, Problems with a Global Flood

sexta-feira, junho 20, 2008

Afinal foi mesmo.

O jornal Sol confirmou a notícia: «'Upload' de 146 músicas resultou numa pena de 90 dias de prisão [...] Tem 28 anos, é do Algarve e pôs 146 músicas em upload no Kazaa e Limewire»(1). Como não tinha antecedentes criminais a pena pode ser substituída por uma multa de €1160 mais custas judiciais. Mas agora fica com antecedentes criminais...

Infelizmente, não há detalhes sobre o que ele fez de ilegal. Não se consegue determinar quantos uploads fez examinando o computador dele e o disposto no Artº 68º do Código de Direitos de Autor não se devia aplicar a redes P2P. Este artigo exige autorização do autor para «a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, da obra por forma a torná-la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido». Só que colocar «à disposição do público» exige uma infra-estrutura considerável.

Este blog está acessível ao público graças ao equipamento, largura de banda e motores de pesquisa que a Google disponibiliza. Mas se eu puser um ficheiro em partilha a situação é muito diferente. Só quem estiver próximo na rede (mesmo servidor ou a poucos nós de distância em redes distribuídas) é que descobre que eu tenho o ficheiro. A grande maioria dos utilizadores da rede P2P vai encontrar o ficheiro noutros sítios. Além disso a largura de banda e a capacidade do meu computador são muito limitadas. Só uma ou duas pessoas poderão descarregar o ficheiro de cada vez e, mesmo essas, só descarregarão partes do ficheiro. As redes P2P funcionam de forma a que cada um faz, em média, uma cópia para outro. Não há um ponto central que disponibiliza algo a todos. Infelizmente, poucos percebem a diferença.

Outro caso relacionado foi o de um miúdo que «assinou uma declaração de culpa sobre os seus actos»(2):

«Chamo-me N. tenho quinze anos e vivo nos Açores. Por várias vezes, acedi à Internet, onde consultei vários sites e utilizei alguns serviços Peer-to-Peer, como, por exemplo, o Kazaa e o Limewire.
Através desses serviços, fiz downloads de várias músicas, como o "Dei-te quase tudo" e o "Fala-me de Amor".
Depois partilhei-as e disponibilizei-as a outras pessoas na internet. Estes meus actos foram detectados e, no dia 3 de Maio de 2007, a Polícia apareceu em minha casa. Foi ao meu quarto, ao quarto da minha irmã e dos meus pais.
Os polícias correram a minha casa toda e levaram-me o meu computador, bem como os meus CDs e DVDs.»


Isto motivou «um apelo das associações ao endurecimento da legislação aplicável à pirataria.» Revistar casas, tirar computadores a miúdos e condenar a meses de cadeia quem partilha sem sequer se saber com quantas pessoas realmente partilhou é ser muito brando para um crime tão grave como permitir que outros ouçam música sem pagar. Eu prevejo que não vão ficar satisfeitos enquanto a lei não nos obrigar a ir todos os dias à loja deles comprar CDs de bosta musical.

Pois eu aproveito para deixar também dois apelos. Até 2004 o Código de Direitos de Autor não punia ninguém apenas por disponibilizar a obra. Era preciso provar que havia distribuição. A lei foi alterada pela Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu (3) mas, apesar de tornar ilegal algo que milhões de pessoas já faziam por toda a Europa, a alteração à lei foi meramente burocrática. O meu primeiro apelo é para não deixar que os políticos se safem com estas coisas. Se os obrigarmos, eles escolhem os votos em vez do dinheiro.

Como as discográficas preferem o dinheiro o meu segundo apelo é para bater onde lhes dói. Não comprem CDs às editoras e recordem que o Artº 81º autoriza a reprodução «[p]ara uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor». Se alguém perguntar, digam que só prejudicam os exploradores anormais e que é em defesa dos interesses do autor porque andam uns idiotas a pôr os fãs na prisão. O dinheiro que pouparem gastem em concertos que é o que mais ajuda os artistas.

1- Sol, Pirataria digital
2- Sapo-tek, Partilha ilegal de música já teve consequências para dois utilizadores e uma empresa, via Remixtures
3- Disponível no Instituto da Informática

quinta-feira, junho 19, 2008

Português condenado por partilhar músicas?

Recebi a notícia há pouco por email. É estranho que não haja detalhes; a notícia apenas refere a pena, que ainda não transitou em julgado, e que o arguido «terá descarregado música de forma ilícita ("downloads" ilegais) que depois transferiu para outros indivíduos». Isto segundo «fontes do mercado»(1).

Também é estranho que tenham estabelecido que o arguido transferiu ficheiros para outros indivíduos. A menos que tenham interceptado as comunicações, o que normalmente exige crimes mais graves, só poderiam saber que os ficheiros estavam disponíveis e não que ficheiros transmitiu. Mas isto pode ser apenas erro da jornalista e não do juiz. Ao contrário da lei Americana, em Portugal é crime «A colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, da obra por forma a torná-la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido». Não é muito claro se a partilha numa rede P2P faz isto, mas é possível que o tribunal assim o entenda.

No entanto o descarregamento em si não deve ser automaticamente ilícito. O código de direitos de autor consente a reprodução «Para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor, não podendo ser utilizada para quaisquer fins de comunicação pública ou comercialização.»

Era bom saber mais detalhes. Por enquanto partilho as suspeitas do Miguel Caetano (2). Parece-me que isto ou é treta («fontes do mercado»?) ou é mais um caso de ignorância tecnológica. Numa rede P2P cada utilizador transmite pedaços dos ficheiros a alguns outros utilizadores. Em média, cada um faz apenas uma cópia. Condenar um participante numa rede P2P a uns meses de cadeia por partilhar músicas sem fins lucrativos é um exagero. Especialmente quando o Hotel Tivoli fez negócio passando num bar música sem licença e, ao fim de uma data de tempo de tribunais e recursos, é condenado a 5000 euros de indemnização (3). Isso gastam eles numa semana em palitos e Sonasol...

1- Jornal de Negócios, Português condenado por partilhar música na Internet
2- Miguel Caetano, 19-6-08, Procura-se: partilhador português condenado a pena de prisão de 90 dias
3- Portugal Diário, Condenados por piratearem música

A vingança do impotente.

As religiões cristãs e muçulmanas vivem muito do alegado castigo eterno que alguns terão no final da vida. O Jónatas Machado explicou que «A violação das normas de um Deus eterno tem, logicamente, consequências eternas. A violação das normas de um Deus infinito tem, naturalmente, consequências infinitas.»(1)

É tão absurdo como propor que roubar €20 a um rico merece mais castigo que roubar €20 a um pobre. As leis servem para proteger a sociedade e os mais fracos, e os castigos são necessários porque temos que dissuadir o que somos incapazes de prevenir. Mas um deus omnipotente não precisa de protecção e se quer impor uma norma fica imposta e pronto. Qual é o castigo para quem fizer a gravidade decair mais que com o quadrado da distância? Nenhum. Se Ele diz que decai com o quadrado da distância é assim e pronto.

A desculpa da vontade livre não serve. Dizem que Deus quer que os humanos ajam livremente e por isso impõe regras que se pode transgredir. É uma justificação estranha. Por um lado pelas situações a que se aplica. Não somos livres de viver da luz do Sol nem de transformar a faca do assaltante em espaguete, mas somos livres de roubar para comer ou de matar outro à facada. Por outro lado, é liberdade com castigo. Somos livres de decidir com quem temos relações sexuais a vida toda mas depois de morrermos somos condenados ao sofrimento eterno se escolhemos a porta errada. Isto não faz sentido.

Um castigo pode educar e a ameaça pode dissuadir mas o inferno não serve nem para um nem para o outro. O sofrimento eterno não tem valor pedagógico e ameaçar sem evidências castigar depois da morte é ineficaz. O castigo deve imediato, inevitável e evidente. Dêem as voltas que derem, o pagamento hipotético daqui a cinquenta anos pelos pecados de agora não é boa justiça. Vão pensar que Ele recorre aos tribunais portugueses.

Em suma, o inferno não faz sentido como pedagogia, dissuasão ou retribuição. Não há mal que possamos fazer a um ser eterno e omnipotente que justifique um castigo destes. É pior que torturar uma criança só porque me pisou um pé. Mas o Jónatas Machado dá uma pista para compreender o fenómeno: «A gravidade das consequências é proporcional à dignidade e autoridade das normas violadas.» (1)

É verdade. Bater num polícia em serviço ou desobedecer à sua ordem para parar o carro têm consequências mais graves do que se fosse com outra pessoa qualquer. Mas o Jónatas inverte a relação causal. A desobediência não é mais grave porque o polícia tem mais autoridade. É o contrário. O polícia tem mais autoridade porque a lei pune mais severamente quem lhe desobedece. É a lei que dá autoridade ao cargo e não o cargo que dá autoridade à lei*.

Nos lobos o chefe é chefe porque é o mais forte. A posição deriva da sua autoridade inata. Nos chimpanzés e em tribos humanas pequenas, o chefe é chefe em grande parte pela sua autoridade mas também pela autoridade que lhe concedem. Tem que ter aliados e amigos para se aguentar como chefe. Conforme o grupo cresce aumenta o contributo da convenção. Certamente que a maior parte da autoridade de quem liderou a construção de Stonehenge, Ur ou da Grande Pirâmide lhe foi concedida pelo cargo e não o contrário, e numa sociedade moderna isto é mais evidente que nunca. José Sócrates tem autoridade por ser o Primeiro Ministro. Não é o Primeiro Ministro que tem autoridade por ser o José Sócrates.

Em paralelo com esta inversão de poder veio a burocratização e os intermediários. O chefe da tribo era o mais forte ou carismático e presidia aos julgamentos, arbitrava conflitos e até dava uns sopapos quando era preciso. Agora temos tribunais, advogados, julgamentos que duram anos, leis, parlamento para fazer as leis, ASAE para confiscar bolas de Berlim e assim por diante. E padres. A religião é o culminar deste processo. Na religião o cargo supremo é pura convenção. Nem há lá ninguém.

Se Deus existisse primeiro explicava-me pessoalmente o que eu devia fazer. Um deus omnipotente não precisa de burocratas ou intermediários. E dava-me um carolo cada vez que eu escrevesse uma heresia ou tivesse um pensamento lascivo. Tau! Era logo. À força das mazelas fazia-me santo em poucos meses. Bem... poucos anos. Mas isto de serem os padres a dizer o que Deus quer, de um castigo que só vem sabe-se lá quando e que tem que ser terrível para proteger a dignidade do cargo só me sugere uma coisa. É tudo treta.

*O que dá autoridade à lei é a pistola do polícia e a convenção, não o cargo.

1- Em comentários ao post ”Mete medo...”, sob o pseudónimo de Perspectiva.

terça-feira, junho 17, 2008

Mete medo...

Vi este vídeo no blog do Mats, Darwinismo. A mensagem, para quem não tiver paciência, é que os cristãos devem impingir a sua religião aos outros porque se não o fizerem os outros vão para o inferno.



O vídeo tenta ser assustador mas acaba por não ser o vídeo que assusta. O estilo tragico-patético destas coisas não impressiona. O que assusta é haver gente que pensa ser justo torturar alguém por toda a eternidade só porque se esqueceram de lhe falar de Jesus.

E depois dizem que o ateísmo é imoral...

segunda-feira, junho 16, 2008

Evolução: Imprinting.

O primeiro post desta série foi sobre a forma como a selecção natural obriga os genes a colaborar, mesmo quando em espécies diferentes (1). Os genes para a velocidade da gazela propagaram-se graças aos genes para a velocidade da chita e vice-versa. Mas os exemplos mais extremos de colaboração entre genes são os organismos. Neste momento, as cópias dos genes que eu tenho contribuem igualmente para o meu sucesso reprodutivo. Só assim têm conseguido passar pelas gerações dos meus antepassados durante milhões de anos. Isto fez desta equipa de genes colaboradores natos. Pelo menos agora que sou adulto. Mas durante os primeiros nove meses da minha vida não foi bem assim.

As equipas de genes nos meus antepassados femininos, da minha mãe aos primeiros mamíferos, foram pressionadas pela competição para controlar o tamanho do feto. Um bebé enfezado tem menos probabilidade de sobreviver, mas se cresce demais tira demasiados nutrientes à mãe e reduz-lhe a possibilidade de ter mais descendentes. Em contraste, os genes nos meus antepassados masculinos tinham vantagem em fetos maiores. A mãe não poder ter mais filhos não os afectava porque o pai podia à mesma. E filhos maiores têm mais probabilidade de sobreviver, favorecendo a propagação dos genes do pai. O resultado é que nos primeiros nove meses da minha vida alguns dos meus genes estavam a “tentar” fazer-me crescer mais do que aquilo que outros dos meus genes “queriam”*.

Um problema é que os genes estão misturados no zigoto e os do pai até podem ser cópias idênticas aos da mãe. A pressão selectiva para que actuassem de formas diferentes no embrião originou o imprinting, uma modificação química selectiva que altera ligeiramente o ADN naqueles genes conforme vem do pai ou da mãe. Quase todos os genes afectados intervêm no crescimento embrionário e na formação da placenta.

Por exemplo, um factor de crescimento semelhante à insulina (IGF2, de insulin-like growth factor 2) é produzido em grandes quantidades por genes que vêm do pai enquanto os seus homólogos herdados da mãe ficam inactivos. Por outro lado, o repressor IGF2R, que se liga ao IGF2 e o inactiva, é produzido em grandes quantidades apenas pelos genes herdados da mãe. O resultado foi uma guerra aberta entre os genes dos meus pais durante o meu desenvolvimento embrionário. E se um dos lados se descuidasse eu tinha morrido ou ficado seriamente deformado**.

O imprinting genómico ilustra vários pontos importantes. Mostra que não podemos levar à letra a metáfora do ADN como código ou linguagem. Ao contrário das palavras escritas ou faladas, no ADN conta a caligrafia e a pronúncia. São moléculas, reagem, e mesmo que os genes tenham a mesma sequência pequenas alterações químicas fazem diferença. Mostra também como a competição entre genes nas populações dá origem a redes complexas de relações de colaboração e competição entre organismos e até dentro de cada organismo, com equipas de genes a mudar alianças mesmo durante a vida de um indivíduo.

E é um bom exemplo da capacidade da teoria da evolução para explicar e prever observações. A hipótese que o conflito entre os genes dos progenitores dá origem a esta marcação do ADN prevê que haja imprinting nos organismos em que o embrião consegue afectar os nutrientes que recebe da progenitora. Isto acontece nos mamíferos e nas plantas que produzem sementes, e em ambos os casos há imprinting de genes que regulam o desenvolvimento embrionário (2). Prevê também que não haja imprinting destes genes nas aves. Como o ovo já está formado quando o embrião se começa a desenvolver a quantidade de nutrientes que a progenitora investe é controlada exclusivamente pelos genes que estão na progenitora. O embrião não tem voto na matéria, por isso não é preciso distinguir de onde vêm os genes que regulam o seu crescimento. Essa previsão também foi confirmada (3).

Os criacionistas podem vasculhar a Bíblia de ponta a ponta que não vão encontrar explicação para as guerras de genes dentro dos embriões. Dirão que é o pecado mas isso serve para tudo. Não é explicação; é desculpa. E nem num mês de Domingos com missas de manhã à noite se vão inspirar para prever detalhes destes. Para ideias vagas e confusas o criacionismo parece ser adequado. Mas para perceber os detalhes é preciso a teoria da evolução

* Como mencionei no segundo post desta série, estas perspectivas intencionais ou de design propositado dão explicações confortáveis. Mas para que não vá um criacionista rechaçar a explicação e converter este blog em criacionismo deixo esta nota para esclarecer. Os genes não fazem de propósito. É apenas o resultado de só terem sobrado os que o faziam enquanto os outros ficaram pelo caminho.
** A barriga que tenho agora, admito, é culpa minha.

1- Evolução: A selecção natural.
2- Wikipedia, Genomic Imprinting
3- Nolan CM, Killian JK, Petitte JN, Jirtle RL, Imprint status of M6P/IGF2R and IGF2 in chickens. Dev Genes Evol. 2001 Apr;211(4):179-83. Sumário

domingo, junho 15, 2008

Ooops...

Alguns leitores defenderam que não há problema que os fornecedores de serviços de telecomunicações guardem informação acerca da duração, hora, origem e destino de cada telefonema, email ou página que vemos na Web. Desde que a informação não seja mal usada não há problema, defendem.

Mesmo que fosse verdade. Mesmo que eu não tivesse direito de contratar um serviço de telefone que me garantisse não registar cada telefonema que eu faço para a minha mulher, para o meu médico ou advogado. Mesmo assim, casos como este mostram que não podemos ter confiança que não haverá abusos a menos que a informação seja apagada: Secret terror files left on train. Esta passagem é especialmente reveladora:

« Police are investigating a "serious" security breach after a civil servant lost top-secret documents containing the latest intelligence on al-Qaeda.

The unnamed Cabinet Office employee apparently breached strict security rules when he left the papers on the seat of a train.»


Aparentemente, deixar documentos secretos no assento do combóio é uma violação das normas de segurança. Aparentemente, claro. Nisto não há certezas, tal como o uso que darão à informação que recolhem acerca de nós.

Via Schneier on Security.

sábado, junho 14, 2008

Treta da Semana: Procurar pela negativa.

Na homilia do Domingo passado, em Fátima, o bispo Serafim Ferreira e Silva comentou a constituição da Associação Ateísta Portuguesa (AAP). Concedeu que «até sob o aspecto constitucional, pode ser legítimo». Tem razão; é legítimo. Mas comentou que «por paradoxal que pareça, esta possível associação acaba por procurar Deus. Pela negativa, quer declarar que Ele não existe, mas, cria-se um vazio, e, pelo aspecto filosófico, a reflexão humana, nós quase que precisamos de descobrir alguém que seja o criador, o salvador, o Senhor Deus» (1).

A “procura pela negativa” não faz sentido. É como dizer que quem não gosta de apanhar sol procura bronzear-se pela negativa. Mas dou ao bispo o benefício da dúvida e interpreto-o como dizendo que os ateus também falam de Deus. Não que o procurem mas que o consideram, mesmo estando contra. Assim, em vez de descartar a afirmação do bispo como mera demagogia, sempre tenho desculpa para discutir esta confusão. Nem sempre os ateus consideram Deus. Nem mesmo pela negativa. Mas vou começar por uma expressão do Alfredo Dinis que já foi debatida aqui nos comentários e que ilustra este problema.

«A omnipotência divina só pode ser bem entendida se for contextualizada numa realidade feita de relações interpessoais no interior das quais Deus pode criar seres dotados de tanta autonomia e responsabilidade quanto lhe permitir a sua natureza. É neste Deus que acredito.»(2)

A primeira frase é só o contexto; os atributos que enumera podem variar de crença para crença. É a segunda que interessa, onde diz «neste Deus que acredito» em vez de “acredito que Deus é assim”. Apresenta Deus como um dado adquirido enquanto que “acredito que Deus é assim” admitiria a possibilidade de ele ser de outra forma ou mesmo nem existir. Existir um deus no qual alguns acreditam é diferente de alguns acreditarem num deus que pode nem existir. E dificulta o diálogo que crentes falem duma quando os ateus se referem à outra. Como Serafim Ferreira e Silva demonstra a seguir:

«Nós os cristãos temos uma ajuda, que é a chamada Revelação, a Bíblia ou Sagrada Escritura. E constatamos que, no âmago, no interior de cada um de nós, há um chamamento. E também verificamos, sendo crentes e praticantes, na coerência, (que) podemos ser mais irmãos, na justiça e na verdade. Procuremos Deus, o Senhor. [...S]e quisermos buscar a verdade, praticar a justiça, fazer o perdão, [se] seguirmos o caminho da rectidão, encontraremos Deus, o Salvador» (1).

Quando se questiona estas afirmações, o bispo, como muitos crentes, assume que estamos a rejeitar a Revelação, o Deus e o chamamento. Mas apesar do ateísmo rejeitar estas hipóteses em abstracto, neste caso concreto o que está em causa nem chega a ser o deus da religião, o poder mágico dos rituais ou o acesso especial à revelação divina. O que o ateísmo questiona primeiro é a crença nestas coisas. Se o deus do bispo existe ou não é uma questão interessante mas a crítica é que não se justifica acreditar nele.

Eu não procuro Deus nem me preocupo com Deus, Shiva ou o Pai Natal. Não existem, não me chateiam. Preocupa-me é crenças infundadas e procuro crenças com mais fundamento que as do bispo Ferreira e Silva. Em vez de me fiar na Revelação conto com a dúvida para corrigir os erros que vou cometendo. Se sinto um chamamento no meu âmago não concluo que veio de fora do meu âmago. E pelo que observo parece-me que quem busca a verdade, pratica a justiça, faz o perdão e segue o caminho da rectidão pode muito bem acabar com uma religião diferente da do bispo Ferreira da Silva. Ou até sem religião nenhuma. Isto não é uma crítica aos deuses; é uma crítica às crenças.

Em suma, o ateísmo não se obtém pelo simétrico da crença religiosa, mantendo o deus mas trocando “existe” por “não existe”. O ateísmo vem de perceber que quando alguém afirma “Deus é” diz apenas “acredito que seja” sem justificar a crença. Quando rejeitamos crenças injustificadas, neste universo, ficamos ateus.

1- Agência Ecclesia, Bispo Emérito de Leiria-Fátima comenta constituição de associação ateísta
2- Num comentário a este post no Portal Ateu.

sexta-feira, junho 13, 2008

Evolução: Como se fosse de propósito.

William Paley propôs a famosa analogia do relojoeiro. Se encontramos um relógio inferimos que foi criado por um relojoeiro porque algo tão complexo só pode resultar de um projecto inteligente executado de propósito. Pela mesma razão, argumentou Paley, o universo tem que ter um criador inteligente que planeou isto tudo. Antes de olhar para os problemas da analogia quero salientar que esta visão teleológica pode ser útil.

Podemos descobrir muito acerca de algo sem conhecer detalhes se o imaginarmos como criado de propósito para desempenhar uma função, o que o Daniel Dennett chama design stance. Obviamente, funciona melhor quando é verdade. Usamos computadores, torradeiras, televisões e automóveis sem nos preocuparmos com os detalhes da maquinaria ou da física porque sabemos que propósito servem. Para usar um despertador basta saber para que serve e inferir daí que tem que ter algo que indique as horas, algo para as acertar e algo para marcar a hora de despertar.

Mas o truque funciona mesmo quando não há propósito. Sabendo que asas servem para voar, mesmo sem saber aerodinâmica posso inferir que o pássaro voa. Sabendo que o pêlo dos animais serve para os aquecer penso num casaco de peles. Os nossos antepassados descobriram como usar sementes, domesticar animais, processar alimentos e tratar feridas sem conhecer os detalhes. Só com o truque de imaginar que cada coisa servia um propósito, ou até de imaginá-las com propósitos próprios*. É uma forma simples de lidar com coisas complexas. Talvez por isso muitos julgam que a complexidade só vem da criação propositada, mesmo sendo óbvia a contradição quando constatamos que o relojoeiro é ainda mais complexo que o relógio. Mas há outra maneira de gerar complexidade funcional e uma maneira melhor de distinguir o que é feito de propósito.

Sabemos que o relógio é feito de propósito porque sabemos que há relojoeiros que fazem relógios para servir aos relojoeiros. Mas não se justifica inferir que o tronco de uma árvore foi feito de propósito apesar de ser fácil imaginar que o tronco foi concebido para segurar a copa lá em cima e imaginar que alguém criou o tronco para esse fim. A analogia é errada porque não temos indícios que alguém faça troncos de árvore com inteligência e propósito. Pior ainda, o tronco não faz sentido como propósito de um análogo do relojoeiro.

Os relógios servem os propósitos dos relojoeiros mas se o tronco serve algum propósito é um propósito da árvore e não de um hipotético criador, sendo alto e forte para que a árvore não fique à sombra das outras. E a árvore só precisa de um tronco alto e forte porque as outras árvores também têm troncos altos e fortes. Numa floresta tropical as árvores têm 30 a 35 metros de altura, dez andares de tronco só porque as árvores que têm menos morrem á sombra das outras. A função do tronco é competir num conflito que não sugere qualquer inteligência. Um engenheiro inteligente impunha um limite razoável de meia dúzia de metros para os troncos. Todas as árvores tinham sol à mesma e poupava-se imenso em custos metabólicos. Não só não há vestígios do relojoeiro como não há vestígio de um propósito inteligente para troncos de 30 metros.

A alternativa faz mais sentido. As árvores têm troncos com dez andares porque é o máximo que compensa ter pesando o tempo de crescimento, a resistência da madeira e a competição por um lugar ao sol. Não resulta de um plano deliberado mas da eliminação natural das árvores atarracadas, de crescimento lento ou que se partem ao primeiro vendaval. O resultado é semelhante a algo feito de propósito por um criador inteligente, e isto explica a utilidade do truque. É um truque tão bom que até os biólogos aproveitam. Dizem que a lisozima serve para atacar a parede celular de algumas bactérias e que as bactérias gram-negativas têm a parede celular coberta de lipopolissacarídeos para resistir à lisozima.

Mas nada disto surgiu “para” seja o que for. Tal como o tronco das árvores, estas características propagaram-se a posteriori por conferir vantagens à sua propagação. Não foram concebidas a priori com o intuito de cumprir uma finalidade. O truque de imaginar um propósito é útil mas às vezes por ser verdade e outras porque a evolução cria algo parecido. O primeiro caso identifica-se pelos indícios independentes de criação inteligente e pelo ajuste do propósito aparente com os objectivos do criador. Os relojoeiros, que sabemos que existem, fazem relógios para ver as horas, que é o propósito aparente do relógio. O segundo revela-se pela ausência de um criador e por uma aparêhcia de propósito que não faz sentido como propósito inteligente mas só como o resultado de competir pela reprodução.

* A ideia que os frutos foram criados de propósito para nos alimentar parece justificar porque mudam de cor quando estão maduros, por exemplo. Atribuir essa intenção à árvore em vez de a atribuir a um criador da árvore é diferente mas parece estar no mesmo contínuo de possibilidades. Ver este artigo sobre a classificação que Dennet dá e, já gora, o post anterior.

quarta-feira, junho 11, 2008

Conspiração, religião, e intenção.

O nosso cérebro é enorme. Com quase quilo e meio, usa cerca de um quinto das calorias que consumimos em repouso. Mas não recebemos esta herança por ter ajudado os nossos antepassados a fugir de predadores ou encontrar alimento. Outros animais fazem-no com recursos mais modestos. Nem foi pela tecnologia, que veio mais tarde. O sucesso do nosso cérebro veio da vantagem em prever o que vai em cérebros semelhantes, um truque que ajudou os nossos antepassados a deixar mais descendentes que os seus contemporâneos.

E é um órgão especializado. Um computador pode calcular a trajectória de cada um dos flocos de cereais despejados para uma taça. O nosso cérebro não dá para isso. Mas basta olhar para alguém a despejar os cereais para percebermos, pelo contexto, se prepara o seu pequeno almoço, o dos filhos ou se os despeja porque o pacote se rasgou. Estamos longe de pôr um computador a fazer isso e mais longe ainda de o programar para perceber o enredo de uma novela ou de inferir algo do vizinho do sexto sair da casa da vizinha do quarto apertando o cinto das calças.

Mas não há bela sem senão. Com um martelo tão sofisticado é inevitável procurarmos pregos em todo o lado. O propósito da nossa existência, a razão para a criação do universo, o plano para isto tudo. Para o nosso cérebro, moldado durante milhões de anos de evolução para modelar actos inteligentes, custa aceitar que algo simplesmente aconteça. Do criacionismo às teorias da conspiração, muitos disparates vivem desta tendência. Uma sombra estranha na fotografia de um astronauta pode ser o reflexo de um aparelho fora da imagem, um defeito no filme ou algo igualmente acidental. Kennedy e Connally podem ter sido atingidos pela mesma bala se estavam, por acaso, alinhados na sua trajectória. Mas o nosso cérebro percebe melhor a relação entre os familiares no jantar de Natal do que a trajectória das bolas de snooker. Mesmo que esta última seja muito mais simples de modelar. E uma conspiração com fotografias forjadas, atiradores escondidos e falsas informações, se bem que mais complexa e irrealista, está mesmo à medida do nosso apetite enredos de intenções.

A religião vai beber à mesma fonte. Do bispo católico ao shaman tribal vemos a tentativa de lidar com a natureza como lidamos uns com os outros. Com promessas, alianças, pedidos, negociações e alguma bajulação. Sempre a procurar o propósito inteligente por trás de cada acontecimento. A insistência da teologia cristã numa relação pessoal com Deus é outra consequência desta especialização do nosso cérebro, tal como a procura de um propósito para a nossa existência e de um sentido transcendente para isto tudo.

É inegável que este truque do nosso cérebro é útil e precioso. É a base da sociedade, da política, literatura, das histórias, da linguagem. De ser humano. Mas as tempestades, as doenças, as florestas e até o nosso nascimento e morte não são parte de um plano cósmico. Isto não é um conto épico ou uma telenovela. Fora da minúscula fatia onde nos damos uns com os outros há um enorme universo que não conspira contra nós, que não ouve as nossas preces e que não tem propósito nem intenção. Para o compreender temos que usar o cérebro de uma forma desconfortável e contra-intuitiva mas que vale bem o esforço. Porque mesmo que a oração nos faça sentir mais seguros durante a trovoada é o pára-raios que nos protege.

terça-feira, junho 10, 2008

Treta da Semana (passada): Ninguém foi à Lua.

Alguns leitores sugeriram que abordasse este clássico das teorias da conspiração. Em traços largos, há quem defenda que a NASA falsificou filmes, fotografias, rochas, dados de telemetria e tudo o resto para nos enganar a todos. Os argumentos variam nos detalhes mas têm em comum uma ligação ténue ao mundo real, desde alegar que a tripulação da Apolo 11 filmou a Terra afastando a objectiva da escotilha para parecer que estavam longe (1) até argumentar, por «princípios Védicos», que a Lua é feita de material reflectivo e por isso não podia ter sombras (2). A tese da conspiração já foi discutida, dissecada e refutada em detalhe (3), mas o problema de saber que já esteve alguém na Lua mostra duas formas de descarrilar o raciocínio para chegar a conclusões absurdas.

Em parte sabemos por livros, relatos, fotografias ou até páginas na Wikipedia. Por um apelo à autoridade. Consideramos mais fiáveis as fontes autoritárias e reconhecemos mais autoridade a um astrónomo do que a um ovniólogo ou o conspiraçólogo. Aqui pode-se descarrilar vendo a confiança num livro de astronomia como análoga à confiança na Bíblia ou no livro de Mórmon. Mas o conteúdo do primeiro é autoritário porque deu provas, enquanto os últimos são vistos como provas porque os consideram autoritários à partida. Parecem casos semelhantes mas são o oposto.

A tese que a ida à Lua foi uma fraude depende de apelos à autoridade do segundo tipo. A opinião de um «produtor de televisão premiado, fotógrafo profissional e membro da Royal Photographic Society»(1) não é apresentada como autoritária por estar devidamente fundamentada. Pelo contrário, é proposta como implicitamente fundamentada em virtude da alegada autoridade, o que é ilegítimo. A autoridade tem que derivar de uma interpretação fundamentada dos dados. O que nos traz à outra curva perigosa.

O argumento da interpretação é um favorito de muitos, do criacionismo às medicinas alternativas. Segundo este, todas as provas, todos os testes e evidências, dependem de como interpretamos as observações. Para uns o colibri é evidência de evolução e para outros é evidência do poder criador de Deus. É verdade que a mesma observação pode ser interpretada de formas diferentes, mas neste caso é aldrabice.

Não há uma fronteira fixa entre interpretação e observação. Por exemplo, no avistamento de um OVNI à noite pode-se interpretar a percepção do estímulo visual na retina como evidência de uma luz. Ou assumir a luz como um dado que indica algo luminoso no céu. Ou considerar que se observa algo luminoso no céu e inferir que está a alguns quilómetros de altura e tem o tamanho de um campo de futebol*. Podemos separar dados e interpretação em qualquer ponto deste contínuo traçando a fronteira entre aquilo que aceitamos e aquilo que questionamos. O argumento da interpretação descarrila o raciocínio mudando sorrateiramente a fronteira.

Aceitamos que os organismos estão adaptados ao seu meio e questionamos o processo que os adaptou. É nesta fronteira que inferimos a teoria da evolução e as várias alternativas acerca de como se formaram estas características. O criacionismo apresenta-se como uma interpretação alternativa para estes dados, mas não é. Acrescenta disfarçadamente o “dado” que o processo foi guiado por um ser inteligente e muda a fronteira. Em vez de interpretar os dados originais interpreta estes “dados” assumidos e conclui apenas acerca do hipotético autor. Nas teorias de conspiração o truque é semelhante: nunca considerar a conspiração como uma hipótese a testar, como parte da interpretação, mas assumi-la como um dos dados a interpretar.

Sabemos que esteve gente na Lua porque é a hipótese que melhor encaixa nos dados que dispomos. Não por confiarmos na autoridade de quem o defende mas por reconhecer autoridade às posições mais fundamentadas. E para ter fundamento cada passo do raciocínio deve confrontar interpretações alternativas para o que se assume ser os dados. Mas há que assegurar que as alternativas assumem os mesmos dados porque senão não são interpretações da mesma coisa. O apelo indevido à autoridade e a petição de princípio são dois dos muitos atalhos para a treta.

* Normalmente os OVNIs têm o tamanho de um campo de futebol.

1- Dave Cosnette, The Faked Apollo Landings.
2- Wikipedia, Apollo Moon Landing hoax conspiracy theories.
3- Robert A. Braeunig, Did We Land On The Moon?; Wikipedia, Independent evidence for Apollo Moon landings; Phil Plait, Yes, We Really Did Go to the Moon!

domingo, junho 08, 2008

No Portal Ateu

publiquei hoje uma resposta a este post do Alfredo Dinis. Como temos conversado aqui os dois sobre estas coisas achei que pudesse interessar aalguns leitores deste blog. Aqui fica o link:

Males maiores.

Já agora, aproveito para fazer publicidade ao Planeta Ateu, um agregador de blogs de, para ou sobre ateus.

sábado, junho 07, 2008

Jornalismo de investigação.

Os jornalistas da Onion News Network testam a segurança dos aeroportos, mesmo com grande sacrifício pessoal.




Reporters Expose Airport Security Lapses By Blowing Up Plane

Por falar em segurança, John McCain tenciona prescindir da protecção dos Serviços Secretos caso seja eleito.




McCain Vows To Replace Secret Service With His Own Bare Fists

E, por falar em eleições, mais um escândalo. A Diebold, a empresa que fornece as máquinas electrónicas para registo de votos, inadvertidamente revelou os resultados das eleições presidenciais de 2008 meses antes da data prevista.




Diebold Accidentally Leaks Results Of 2008 Election Early

Mais notícias em www.theonion.com.

Via Schneier on Security.

sexta-feira, junho 06, 2008

Um, dó, li, tá.

Um estudo na Universidade de Washington revelou detalhes interessantes sobre a forma como empresas contratadas pela RIAA e MPAA investigam a partilha de ficheiros na rede Bittorrent. Esta rede depende de servidores (trackers) que mantêm as listas de quem está a partilhar ficheiros. Para obter ficheiros em partilha o cliente Bittorrent pede aos trackers endereços onde pode encontrar os ficheiros desejados e, sempre que recebe um destes pedidos, o tracker acrescenta esse endereço à lista.

Durante uma análise da rede Bittorrent em 2007 estes investigadores receberam vários avisos legais para retirar ficheiros de partilha. Na altura viram isto como um mero inconveniente mas acharam curioso porque não partilharam qualquer ficheiro. Limitavam-se a pedir aos trackers as listas de endereços. O que acontecia é que, devido a estes pedidos, os seus endereços ficavam listados no tracker e isto bastava para que os “inspectores” contratados pela RIAA e MPAA assumissem uma violação de copyright.

Para testar se entretanto o método de detecção tinha sido aperfeiçoado repetiram a experiência, mas desta vez com um pormenor adicional. Alguns trackers permitem registar um endereço diferente daquele de onde origina o pedido, para permitir a partilha a quem usa algum reencaminhamento. Nesses experimentaram dar outros endereços, incluindo os de três impressoras do departamento que receberam um total de nove notificações para retirar ficheiros de partilha (1).

A conclusão é que as empresas que fiscalizam a rede Bittorrent e enviam as notificações não verificam se o notificado está mesmo a partilhar o ficheiro. Limitam-se a pedir as listas de endereços e notificam quem quer que os tenhas nessa altura. Infelizmente, a maioria dos serviços comerciais de acesso atribui endereços dinamicamente. É possível que uma pessoa partilhe um ficheiro e desligue o computador sem que o tracker seja notificado, ficando o endereço na lista durante minutos ou mesmo horas. Alguém a quem seja atribuído o mesmo endereço a seguir sujeita-se à notificação por estar ligado quando os fiscais pedem a lista. Pior ainda, é possível fornecer aos trackers endereços arbitrários e incriminar qualquer outro utilizador. Nem as impressoras se escapam.

O artigo (2) é interessante porque discute também as dificuldades práticas de uma fiscalização mais correcta e a tendência preocupante para automatizar estas notificações legais sem uma verificação adequada. Especialmente face a propostas como a francesa, de cortar o acesso à Internet a quem for acusado várias vezes de violação de copyright (3). Dada a fiabilidade da fiscalização, o sistema juntará o poder dissuasor do totoloto à justiça da roleta russa.


1- Tracking the trackers
2- Michael Piatek, Tadayoshi Kohno, Arvind Krishnamurthy, Challenges and Directions for Monitoring P2P File Sharing Networks –or– Why My Printer Received a DMCA Takedown Notice
3- EDRI, 23-4-08, Will France Introduce the Digital Guillotine in Europe?

quinta-feira, junho 05, 2008

Com todo o respeito que merece (e há que dizê-lo com frontalidade)

Na homilia de Natal, o cardeal de Lisboa José Policarpo disse que «Todas as expressões de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade»(1). Hoje, em resposta à carta que a AAP dirigiu à Conferência Episcopal Portuguesa (2), assegurou «que a Igreja respeita os ateus e espera o mesmo respeito por parte destes»(3).

Tenho ouvido muitos apelos ao respeito quando converso com pessoas religiosas. Continuo sem perceber o que querem dizer com o termo. A maioria dos significados no dicionário está fora de questão. Reverência, deferência, apreço, importância e submissão não parecem atitudes da Igreja para com os ateus. Temor talvez ande mais perto da realidade mas não será coisa que admitam ou da qual peçam reciprocidade. Sobra consideração. A julgar pelas palavras de José Policarpo a Igreja considera-nos o «maior drama da humanidade»

Não posso prometer o mesmo respeito. Considero a Igreja Católica um inconveniente, mas está muito longe das piores religiões e nem sequer me parece que a religião em si seja o maior drama da humanidade. E a consideração e estima que sinto é pelas pessoas, não por dogmas, doutrinas ou organizações.

1- DN, 16-12-07, Cardeal diz que maior drama é a negação de Deus
2- Carta da AAP ao Presidente da CEP
3- Agência Ecclesia, Igreja respeita ateus e espera ser respeitada.

quarta-feira, junho 04, 2008

Liberdade ou medo.

No passado dia 31 o movimento alemão «Stoppt Die Vorratsdatenspeicherung»* organizou uma demonstração contra a lei alemã de retenção de dados (1). Esta lei transpõe a directiva 2006/24 do Parlamento Europeu (2) que obriga os fornecedores de serviços de comunicação electrónica ou telefónica a reter durante pelo menos seis meses os «dados de tráfego e [os] dados de localização relativos quer a pessoas singulares quer a pessoas colectivas, bem como [os] dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado.» A directiva não contempla o conteúdo das comunicações mas inclui informação como a das células de origem e destino de chamadas em redes móveis. O objectivo é «garantir a disponibilidade desses dados para efeitos de investigação, de detecção e de repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro.»

Esta legislação é preocupante por várias razões. É contrária a direitos importantes de privacidade e liberdade de expressão e à presunção de inocência. Querem registar todas as nossas comunicações para se um dia cometermos um crime quando deviam fazê-lo apenas com suspeita fundamentada e de acordo com o devido processo legal.

Economicamente é prejudicial. Os custos da retenção de dados não vão sair do bolso dos legisladores e a lei vai afectar profissões que exigem sigilo ou descrição, como as de advogados, médicos e jornalistas. Tem também um custo de oportunidade significativo. Em 2009, por causa desta lei, serviços anónimos de comunicação serão proibidos na Alemanha. Também tornará impossível instalar redes abertas em zonas comerciais. Com a queda nos preços de acesso uma rede wireless aberta seria uma boa forma de atrair clientes, como ter casas de banho ou estacionamento gratuito. Mas com esta legislação isso terá que ser ilegal.

Mais grave é juntar esta informação nas mãos dos fornecedores. As corporações são pouco escrupulosas no uso destes dados e a lei é pouco dissuasora. Por exemplo, foi recentemente revelado que a Deutsche Telekom monitorizou centenas de milhares de chamadas feitas por empregados e jornalistas para tentar descobrir fugas de informação (3).

Pior ainda é a solução Britânica de reunir tudo num sistema controlado pela burocracia. Em 2000 o Reino Unido legislou para autorizar nove organizações governamentais a aceder aos dados de tráfego dos ISPs, alegadamente para perseguir criminosos. Hoje essa autorização estende-se a 792 organizações e até já foi usada para verificar se uma criança habitava na área da sua escola (4). Além da tendência da burocracia para abusar há também o problema da sua competência. Em 2007 perderam CDs com 25 milhões de registos de abonos de família. Estes incluíam nomes e moradas das crianças, números de segurança social e números das contas bancárias dos pais (5).

Mas o mais grave é legislar na direcção errada. A tendência para guardar informação acerca de tudo e todos está a ameaçar liberdades individuais. Por exemplo, um sistema de antenas que localiza telemóveis por triangulação para seguir os movimentos dos clientes em centros comerciais (6) é claramente intrusivo, especialmente porque a informação pode ser cruzada com dados de compras para identificar a pessoa. A legislação devia ser no sentido de proteger o indivíduo e restringir a recolha e cruzamento de dados por agentes comerciais ou pelo governo.

Não só por uma questão de liberdades mas, ironicamente, também por uma questão de segurança. A ideia que esta lei nos dá mais segurança assenta na premissa duvidosa que os criminosos não vão usar telemóveis roubados. Por outro lado, uma base de dados com os registos de todas as comunicações, localização e identificação das pessoas é um alvo apetecível para quem quiser usurpar identidades, burlar, extorquir ou até praticar crimes como assaltos e raptos. Esta lei faz-nos pagar para ficar com menos liberdades e dar aos criminosos informação que podem usar contra nós.

* Não me responsabilizo por quaisquer lesões que resultem de tentar ler isto em voz alta.

1- 5-minute overview: German Data Retention Law
2- Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006
3- Germany shocked by new privacy invasion scandal
4- EDRI, UK Government will store all phone, Internet traffic data
5- BBC, Brown apologises for records loss
6- Times Online, Shops track customers via mobile phone

Via EFF, ZeroPaid e Shneier on Security

terça-feira, junho 03, 2008

Explorando a origem da vida.

A quem se interessar pela investigação acerca da origem da vida recomendo uma visita ao «Exploring Life’s Origins». Cientificamente está muito bom e graficamente está espectacular.

Via Panda’s Thumb.

segunda-feira, junho 02, 2008

Contas.

A Science desta semana publicou um artigo alegando uma correlação inversa entre o desempenho académico das raparigas relativo ao dos rapazes e a discriminação sexual na sua sociedade. Especificamente, entre os dados do Programme for International Student Assessment (PISA) 2003 e o Gender Gap Index (GGI) do World Economic Forum. Segundo os autores os dados mostram que a vantagem das raparigas na leitura aumenta com a redução na discriminação sexual, de 20 pontos na Turquia até 60 pontos na Islândia, e que a desvantagem na matemática inverte-se, de -20 pontos na Turquia a +10 na Islândia. A conclusão é que as raparigas são por natureza melhores na leitura, como já era aceite, e que, ao contrário do que se julgava, também são naturalmente melhores na matemática. O que baixa o seu desempenho em relação ao dos rapazes é apenas a discriminação sexual porque esta diferença, alegam, desaparece nos países com menos discriminação.

O Desidério criticou este artigo como «ciência ideológica, ciência politicamente correcta, ciência baseada numa mentira política.»(1) A minha primeira reacção foi responder que isso é irrelevante porque o que importa são os dados. Se há realmente uma correlação tanto faz a ideologia ou a política. A menos que tenham aldrabado. Por isso fui ver o artigo (2) e os dados. Achei estranho num artigo de 2008 usarem os dados do PISA 2003 quando temos o PISA 2006 (3). Também estranhei mostrarem um gráfico bonito com dez países quando os dados cobrem quase cinquenta. Finalmente, usarem uma análise estatística rebuscada quando o que afirmam é simplesmente a correlação de dois valores: desempenho académico e índice de discriminação. Cheirou-me a treta.

Depois de olhar para o material suplementar que acompanha o artigo, e cujos gráficos são bastante menos impressionantes por incluírem mais que os dez países escolhidos a dedo, decidi cruzar o PISA 2006 (3) com o GGI 2007 (4) a ver o que dava. O gráfico abaixo mostra no eixo horizontal o GGI, com valores maiores indicando sociedades mais igualitárias, e no eixo vertical a diferença entre o desempenho na matemática dos jovens do sexo masculino e feminino, com números menores indicando menor vantagem dos rapazes e valores negativos indicando vantagem para as raparigas.

Cartaz Jornadas

Considerando os dados não me parece razoável a afirmação dos autores que «the gender gap in math scores disappears in countries with a more gender-equal culture.» Até porque os países em que as raparigas superam os rapazes na matemática são Islândia, Azerbaijão, Bulgária, Jordânia, Catar e Tailândia.

Não concluo daqui que a diferença seja biológica, até porque é uma questão difícil de formular de forma a fazer sentido. Mas concluo que o artigo é treta. Não é nada claro que a discriminação sexual explique as diferenças no desempenho académico. Concordo com o Desidério que a publicação deste artigo deveu mais à politiquice que à ciência e que isto é preocupante. Sugere que muitos julgam que se justifica combater a discriminação porque, em média, os sexos são iguais ou as raparigas são melhores que os rapazes. É um disparate nefasto porque devemos combater a discriminação precisamente para que não se julgue indivíduos pela média do grupo a que pertencem, seja qual for o grupo ou a média.

1- Desidério Murcho, 31-5-08, Pontapés na ciência
2- Guiso, Monte, Sapienza, Zingales, DIVERSITY: Culture, Gender, and Math, Science, Vol. 320. no. 5880, pp. 1164 – 1165 (só para assinantes, mas o material suplementar parece ser de acesso livre).
3- PISA 2006 (xls)
4 The Global Gender Gap Index 2007 (pdf)

domingo, junho 01, 2008

Treta da Semana: «Os Perigos da Internet».

A SIC poupou-me trabalho esta semana com o programa «Aqui e Agora» do dia 29, «Os Perigos da Internet»(1). A legenda numa das reportagens resume bem o tom do programa: «Os perigos da Internet: a blogoesfera ajudou a denunciar abusos de regimes totalitários». É só coisas más. O Francisco Moita Flores explicou que o pior de tudo são os «blogs terroristas» e o «branqueamento de capitais, tráfico de armas e explosivos» que se fazem «através de mensagens cifradas» em blogs. Mas disse logo à partida de onde lhe veio esta ideia. É que ele “nem abre” a Internet. Talvez com medo que lhe caia uma bazuca no colo.

Surgiu várias vezes a ameaça à democracia. O Francisco Moita flores avisou que «A democracia, em nome dos valores da democracia, expõe-se à sua auto destruição». Uma reportagem afirmava que a Internet «pode ser uma arma da democracia» mas também podia ser usada contra a democracia. O Miguel Sousa Tavares defende que o «acesso à Internet» deve depender de «uma pré-identificação junto ao servidor». Isto porque alguém o acusou de plágio num blog anónimo. Para que ninguém ofenda o Miguel é imprescindível que todos que tenham «acesso à Internet» sejam devidamente identificados. E esperemos que o Miguel nunca descubra que alguém o ofendeu por telefone, por carta ou a falar na rua. Senão temos que mostrar o BI cada vez que abrimos a boca.

A Internet não é uma arma da democracia nem um perigo para a democracia. A Internet é uma tecnologia que permite a cada um comunicar com quem o queira ouvir e a liberdade de comunicar não ameaça a democracia. É a democracia. Ameaça é restringir este direito, uma ideia popular entre “figuras públicas” de meia idade mas que é contrária à democracia e fruto de uma distinção ultrapassada entre privado, pessoal e público.

Antes da Internet o pessoal e o privado eram o mesmo. Era aquilo que se fazia fora do olhar público. O que se publicava era impessoal, de natureza comercial ou profissional. Jornais, discursos, documentários e assim por diante. Os diários eram pessoais e privados. Neste contexto fazia sentido regular a expressão pública como acto profissional distinto do âmbito pessoal. Códigos deontológicos, estatuto de jornalista, penas agravadas para a calúnia ou devassa pública da vida privada e assim por diante.

Mas hoje temos que distinguir estes três aspectos de forma diferente. O privado guardamos para nós ou para aqueles que nos são mais chegados. No que é público há umas coisas de natureza comercial ou profissional e outras de natureza pessoal. Muitos blogs, por exemplo. Apesar de acessíveis ao público, textos como este não têm fins comerciais ou profissionais. Servem apenas o exercício da minha liberdade pessoal de expressão. Não faz sentido regular um blog pessoal como um jornal ou canal de televisão porque escrever um blog é um acto pessoal. Mesmo que seja acessível ao público. Por muita gente que me visite ou que eu deixe cá entrar a minha casa será sempre um espaço pessoal. Aqui o Estado tem menos autoridade legal que num lugar de negócio.

Por isso é treta que se deva legislar para impedir expressões pessoais difamatórias ou ofensivas. Faz algum sentido quando se ofende ou difama por dinheiro, e há muitos blogs que são negócios e devem ser tratados como negócios. Mas não faz sentido pôr a lei a perseguir quem ofende a título pessoal. Nesses casos a lei só devia intervir se houvesse dano material e não apenas porque o queixoso se ofendeu. Se perdeu o emprego por causa de uma calúnia merece ser indemnizado. Se amuou porque os meninos na escola lhe chamaram nomes, azar. Cresça que vai ver que passa.

É preciso mudar a mentalidade. Não de quem escreve, mas de quem lê e ouve. Tal como ninguém ligaria a um anónimo que, berrando na rua, acusasse de plágio o Miguel Sousa Tavares, ninguém, nem sequer o Miguel, deveria ligar quando um anónimo escreve essa acusação num blog. O problema é assumir que o que é publicado ou vem de “figuras públicas” tem autoridade por muito infundado ou disparatado que seja. É uma premissa falsa e assim que maioria perceber que afirmações infundadas não merecem confiança, venham de onde vierem, resolve-se o problema dos insultos e das calúnias na Internet.

Infelizmente esta solução não interessa às “figuras públicas” que ficariam sem emprego se tivessem que fundamentar o que proferem como opinadores profissionais.

1, SIC, via De Rerum Natura