domingo, novembro 30, 2014

Argumentos

Argumentar é exprimir um raciocínio e, qualquer que seja o tema, do direito à ciência ou da astrologia aos raptos por extraterrestres, sempre que alguém quer mostrar como se chega a uma conclusão tem de argumentar. Por exemplo, o Mats argumenta que a teoria da evolução é incompatível com a ciência, propondo que «A ciência pressupõe que o universo é lógico e ordenado» e que só se pode assumir isto porque «Deus fez todas as coisas», «impôs ordem no universo» e «a Bíblia ensina que Deus sustém todas as coisas através do Seu Poder». O argumento pode ser válido. Se a ciência assumir algo que exige as premissas do criacionismo, então a teoria da evolução será incompatível com a ciência. Mas isto não basta para aceitar a conclusão.

Um argumento finito tem necessariamente de começar por premissas, implícitas ou explícitas, que assume sem justificar. Portanto, para avaliar um argumento é preciso também considerar se as premissas são aceitáveis. O argumento do Mats falha nisto, logo na primeira premissa, porque a ciência não presume que «o universo é lógico e ordenado, e que ele obedece a leis matemáticas que são consistentes ao longo do tempo e do espaço.» A ciência pergunta se, e em que condições, é que isto pode ocorrer. A distância a que o berlinde cai depende da velocidade e ângulo com que o atiramos, consistentemente e de forma previsível. Esta é uma regularidade que podemos aproveitar. Um átomo de urânio 238 transforma-se em tório 234 sem causa alguma nem qualquer indício prévio. Neste caso, não se pode estimar mais do que uma probabilidade de decaimento em função do tempo. E assim por diante.

Mas há ainda outro aspecto da avaliação de um argumento, muitas vezes descurado. Cada argumento parte de premissas escolhidas por quem o formulou e estas não são necessariamente todas as premissas relevantes. O Mats assume que a regularidade do universo se deve ao deus do cristão evangélico, deixando de parte uma imensidão de alternativas que inclui todas as outras religiões e todas explicações naturais para as regularidades observadas.

Em ciência há dois truques para que não se descure estes aspectos. O primeiro é a secção “materiais e métodos”, na generalidade dos artigos científicos, onde se descreve em detalhe como se aferiu a verdade das premissas. O que se mediu, experimentou e observou. Isto não só reduz o risco de se partir de premissas falsas como também facilita a verificação independente daquilo que foi assumido no argumento. A teologia é um bom exemplo de como a dedicação exclusiva ao rigor lógico dos argumentos, descurando a validação das premissas, resulta em resmas de papel com inferências detalhadas ligando pressupostos sem fundamento a conclusões ridículas. Admito que há argumentos interessantes cujas premissas não podem ser testadas à parte mas, nesses casos, há que reconhecer que isso fragiliza muito o argumento. O segundo truque da ciência é chamar a qualquer argumento “uma hipótese”. Isto salienta que se trata apenas de uma entre muitas possibilidades, focando somente um sub-conjunto da informação que possa ser relevante, e que não deve ser avaliada sem ser confrontada com hipóteses alternativas.

Descurar alternativas é um erro comum não só na teologia e outras tretas mas até na filosofia da religião, talvez pela ênfase na análise minuciosa de cada argumento. Por exemplo, é comum a ideia de que basta haver argumentos “sérios” em favor de uma conclusão para ser racional aceitá-la como verdadeira. Isto é um erro porque o racional será optar pelo melhor argumento, assente no conjunto mais abrangente de premissas independentemente verificáveis. Não é racional aceitar uma conclusão com base num argumento descurando outro melhor que aponta o contrário. O exemplo mais saliente é a tese da criação do universo por parte de um ser inteligente e sobrenatural. Há vários argumentos a favor dela, mas todos exigem uma selecção tendenciosa e muito limitada das premissas. Quando consideramos todos os dados disponíveis, não só as várias crenças religiosas mas também o que sabemos da física da formação do universo e da psicologia e sociologia das religiões, a melhor explicação para tudo isto é a de que a hipótese de criação sobrenatural não passa de uma ficção humana, uma ficção comum e bem ilustrada pelas teses que o Mats defende.

É verdade que a tendência humana para inventar deuses não prova que os deuses não existem. Da mesma forma como as pessoas que alegam terem sido raptadas por extraterrestres serem mais susceptíveis à criação de memórias falsas não prova que não ande aí algum ET a raptar gente (2). No entanto, estes dados apoiam melhor explicações alternativas que não exigem seres sobrenaturais ou extraterrestres raptores. Racionalmente, essas são as conclusões preferíveis. Para compreender isto é preciso ir além da análise de cada argumento. Não basta aferir se o argumento é válido, assumindo as premissas, e se é sólido, com premissas que se pode admitir serem verdadeiras. É preciso também determinar se não há alternativas melhores, com premissas mais fundamentadas e que não deixem de fora dados relevantes. O criacionismo é um exemplo extremo do erro de olhar para cada coisa com palas a tapar o resto, mas há outros casos. Alguns disfarçam melhor pela diligência com que examinam cada argumento mas descuram à mesma a natureza hipotética da argumentação. Quando se avalia um argumento é importante ter em conta que um argumento não aponta a verdade. Aponta apenas uma hipótese possível se as premissas forem verdadeiras e não houver outros indícios contraditórios. É como hipótese que qualquer argumento deve ser avaliado, e sempre no contexto das outras hipóteses com as quais concorre.

1- Mats, Evolução: a teoria anti-científica
2. Clancy et al, Memory distortion in people reporting abduction by aliens., J Abnorm Psychol. 2002 Aug;111(3):455-61.

7 comentários:

  1. Ludwig,

    «Quando consideramos todos os dados disponíveis, não só as várias crenças religiosas mas também o que sabemos da física da formação do universo e da psicologia e sociologia das religiões, a melhor explicação para tudo isto é a de que a hipótese de criação sobrenatural não passa de uma ficção humana»

    Tens sempre muita pressa em chegar a esta conclusão. Já me habituaste a esperar este "veredicto".
    Não me parece que tenhas razão, nem quanto ao fundo do problema, da origem sobrenatural, que continua em aberto para a ciência (a matéria é eterna? É infinita? É viva? É ordem? É caos? Quanto mede/pesa? Tudo é massa? Tudo é energia? Infinita?) nem quanto à forma da tua argumentação, que supõe que o problema está resolvido.
    A origem sobrenatural, começa por ser um problema de origem. E do significado de as coisas existirem como existem, incluindo estes nossos arrazoados.
    O sobrenatural é a resposta, ou é uma resposta, porque não temos outra. Assim sendo, a questão das hipóteses alternativas, está ultrapassada.
    Podemos não acreditar nisso, não saber o que é o sobrenatural ou não concordar com as propostas que nos são apresentadas acerca do sobrenatural.
    Mas podemos acreditar e há quem acredite e continue a viver em função disso, daí extraindo não apenas uma teologia, mas também um sistema coerente de valores, uma ética e uma moral e, sobretudo razão e sentido íntimo para a vida e a morte, para os próprios valores e para a própria ética.

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  3. PORQUE O DEUS DA BÍBLIA É O CRIADOR E NÃO OUTRA QUALQUER “DIVINDADE”

    Para os antigos mitos cosmogónicos, tudo era o resultado da luta entre divindades monstruosas ou era criado pelo Sol ou pela Lua, ou por deuses arbitrários e caprichosos no Olimpo.

    As filosofias da Grécia antiga, diziam que tudo vinha da terra, do ar, da água, do fogo ou de uma quinta-essência.

    Os modernos mitos dizem que tudo veio do nada que explodiu!

    A Bíblia pretende revelar um Criador espiritual, eterno, infinito, racional, pessoal e moral, autoapresentado como LOGOS.

    Se ela for verdade, não admira que o Universo esteja sujeito às leis da lógica e da matemática, válidas em todos os tempos e lugares, que são precisamente expressões da natura racional, eterna e omnipresente de Deus.

    Se a vida foi criada pelo LOGOS, não admira que ela dependa de códigos e informação codificada, em quantidade, qualidade, densidade e miniaturização que transcende toda a capacidade científica e tecnológica humana.

    Não surpreende, de resto, que os maiores avanços da tecnologia ocorram sempre que o ser humano pretende imitar o design que se vê na natureza.

    Génesis 1 e 2 apresenta uma criação racional, moral, sistemática e ordenada, a única compatível com um Universo que obedece às leis da lógica e da matemática e a regularidades físicas e químicas e com um Deus de vida e não de morte.

    A Bíblia ensina que o homem foi dotado de racionalidade e moralidade, porque criado à imagem de Deus. Atentar contra o ser humano é atentar contra o Criador.

    No entanto, ele também explica que Deus, como Ser moral, incorporou a moralidade no seu próprio Universo, como uma realidade metafísica objetiva, fortemente ligada à dimensão física.

    Ela ensina que por causa do pecado humano, Deus amaldiçoou toda a sua criação, sujeitando-a ao decaimento e à morte.

    O DNA tem um sistema de correção automática que corrobora que a vida foi pensada permanecer para sempre.

    No entanto, por causa do pecado, as mutações, a crueldade predatória e a seleção natural são expressão de corrupção, decaimento e morte, como a literatura médica amplamente confirma, e não de evolução e progresso, como os evolucionistas gostam de especular.

    A Bíblia ensina que por causa da acumulação do pecado Deus enviou um dilúvio global, que é corroborado pelo facto de 2/3 da Terra estarem cobertos de água e o restante ser constituído por camadas intercontinentais de rochas sedimentares com triliões de fósseis, alguns deles ainda com tecidos moles e DNA de dinossauros.

    A Bíblia ensina que Jesus Cristo, nascido de Israel, e por sinal a figura de longe mais influente na história universal, é Deus connosco, tendo levado sobre si o castigo dos nossos pecados, para permitir vida eterna com Ele a quem aceitar a sua salvação.

    Jesus veio resolver o problema fundamental da humanidade, a morte!

    Esta entrou no mundo por causa do pecado do homem e só pode ser removida pelo perdão e pela salvação de Deus numa criação restaurada.

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    1. “Se a vida foi criada pelo LOGOS”
      É interessante que use o termo “logos” para se referir a Deus. Primeiro, porque é uma palavra que vêm da filosofia grega que parece tanto desprezar, afinal, é a origem da ciência que tanto parece combater, embora goste de usufruir dos seus frutos, senão como tinha computador, internet e tudo o resto?
      Depois, é também interessante que use esse termo que aparece no evangelho mais obscuro e iniciático de todo o novo testamento. O evangelho de S. João está pejado de conceitos gregos da filosofia neoplatónica e das vertentes gnósticas. Uma das vertentes cristãs (e até pré-cristã) mais controversas da História.

      “Génesis 1 e 2 apresenta uma criação racional, moral, sistemática e ordenada”
      Qual das versões do génesis é a mais correcta? A que apresenta primeiro a luz antes de haver estrelas (Gén. 3 e Gén. 14), ou seja, só ao 4º dia? E que criou as plantas no 3º dia e o Homem ao 6º dia? Ou será que é mais correcta a versão de Gén. 2, 4-9, em que primeiro cria o Homem e depois as plantas?
      Ou será que nenhuma das versões nos diz o que quer que seja sobre como é que a vida começou?

      “O DNA tem um sistema de correção automática que corrobora que a vida foi pensada permanecer para sempre.”
      Deve ser por isso que as células parecem ter morte programada: a apoptose. O “arquitecto” concebeu tão bem, que até deixou pontas soltas…

      “No entanto, por causa do pecado”
      Ao menos sabe qual é o conceito de pecado? Sabe que para as religiões orientais o conceito de pecado é tão estranho como é estranho para o cristianismo o conceito de karma?
      Originalmente, antes do contacto entre os judeus e a religião zoroastriana, antes do conceito de bem e de mal, já a religião judaica tinha o conceito de pecado: não fazer o que YWHW pede. Só isso. Nada de pecado original, nada de decaimento e de corrupção. Todos esses conceitos foram inventados por St. Agostinho, um padre da igreja católica com fortes influências da filosofia grega, em especial platónica, e que antes de se converter era um maniqueísta, ou seja, defendia que tudo no mundo é mau.

      “Jesus veio resolver o problema fundamental da humanidade, a morte!”
      A morte que Jesus veio resolver é metafísica, não é uma morte no sentido de que as pessoas deixam de morrer fisicamente. Essa, e até prova em contrário, parece continuar a existir no mundo. Basta olhar à volta e ver, mais nada.

      Finalmente, de tudo o que escreveu, o que se aproveita para o debate? Mais uma vez um grande zero!

      Aproveito para perguntar: a sua Bíblia já evoluiu? Já ensina a distinguir as aves dos mamíferos, em especial os morcegos (Lv. 11, 13-19)? E já tem a correcção de quantas pernas tem um insecto (Lv. 11, 22-23)? Talvez deva considerar um corrupção na sua génese e assim permitir uma mutação evolutiva. Para um livro com 2 mil anos, até nem está assim tão mal, vá lá....

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  4. Carlos,

    «O sobrenatural é a resposta, ou é uma resposta, porque não temos outra.»

    Aqui penso que acertaste no alvo. O sobrenatural sempre foi assim. Só é resposta quando não há outra. Ou melhor, quando não há nenhuma, porque “sobrenatural” não é sequer resposta. É apenas uma coisa que as pessoas inventam para ter menos medo do desconhecido. Se não sabem porque troveja, rezam, pedem ajuda aos santinhos, sacrificam animais ou assim. Quando sabem porque troveja instalam pára-raios e pronto.

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    1. Ludwig,

      a tua omnisciência não me interessa. Se calhar as pessoas inventam tudo. Pelo que sei, não há notícia de alguém ter inventado o sobrenatural. Ninguém reclamou a autoria. De qualquer modo, em minha modesta opinião, a ideia de sobrenatural, de divino, Deus, a bíblia, a Igreja, a cultura judaico-cristã, se foram inventados, então, foram a grande invenção da história e ainda merecem mais a minha admiração e respeito e eu seria a última pessoa a vituperar e a enxovalhar e a desprezar valores que são, no fim de contas, os valores da civilização.
      Que diferença faz para um ateu que seja inventado ou não? O teu problema contra as invenções é um problema de incapacidade para tratar dos assuntos com imparcialidade e espírito científico.
      Preferes acreditar em ridicularias como o medo dos trovões é que faz acreditar que são os santinhos...
      Continua Ludwig, que vais no bom caminho (aplausos).

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  5. Há um livro com um título que diz muito sobre o sentido da ciência: "Ciência, curiosidade e maldição" de Jorge Dias de Deus.

    Creio que a ideia moderna de ciência é essencialmente isso, com mais um extra: os factores sobrenaturais têm de ficar de fora. Porquê? Porque se aceitamos um argumento a dizer que o deus A fez assim, porque não haveremos de aceitar que fez tudo o resto?

    A solução fácil de resposta rápida não é a que melhor nos serve enquanto humanidade.

    A ciência, tem também os seu lado negro: a tal maldição. Eu, tal como muitas outras pessoas, considero que o balanço geral da ciência é favorável ainda que a ciência tenha produzido monstros verdadeiramente atrozes. Nesse aspecto, se compararmos com as personagens das religiões (e não só do Cristianismo), podemos ver que até nesse ponto a ciência fica a ganhar.

    Eu sou 100% contra o obscurantismo que advém de leituras fundamentalistas de textos religiosos, cujos pressupostos há séculos que estão dessincronizados com a real sociedade que temos. Pensar que o que era bom há 2 mil anos é ainda bom é um erro colossal, basta ver o quanto a sociedade evoluiu nos últimos 100 anos...

    Para terminar, achei ainda curiosa a referência a ETs. Sobre este tema gosto de citar Carl Sagan: "Para grandes afirmações, precisamos de grandes provas", e a prova do milhão de dólares ainda está por aparecer. Porque será?

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