A incongruência faz mal.
O Alfredo Dinis escreveu vários posts intitulados «O desconhecimento faz mal»(1) com o intuito de refutar a ideia de que a religião é má. Para isso, apresenta «coisas boas que se fazem em nome da religião» e que, pelo título, deve presumir serem desconhecidas dos críticos da religião. São exemplos de trabalho voluntário como o do “Serviço Jesuíta aos Refugiados”, acompanhamento de crianças, apoio a toxicodependentes e assim por diante. São realmente coisas boas e são praticadas por alguns religiosos, mas parece-me que o esforço do Alfredo tem o efeito contrário ao pretendido.
A cardiologia é uma coisa boa. Se alguém me pedir para justificar porquê direi que é boa por ser bom compreender, prevenir e tratar problemas cardíacos. Ou seja, a cardiologia é boa porque é bom aquilo que é essencial na cardiologia. Mas se, em vez desta justificação, eu dissesse que a cardiologia é boa porque há cardiologistas que fazem voluntariado em programas de acção social, cuidam de crianças nas férias e dão apoio a refugiados seria justo perguntar como é que isso faz da cardiologia uma coisa boa. É que nem é preciso ser cardiologista para fazer isso nem é preciso fazer disso para ser cardiologista. São coisas independentes.
Os próprios apologistas da religião invocam esta independência sempre que os religiosos fazem algo reprovável. Por exemplo, a propósito da violência dos muçulmanos por causa do filme e das caricaturas, o Miguel Panão escreveu que isto não indica que a religião seja má porque «Não foi a religião que praticou o ato terrorista, nem sequer se tratou de ato religioso»(2). Apesar desta violência dos muçulmanos cumprir o critério do Alfredo Dinis, de coisas «que se fazem em nome da religião – institucionalmente, e não apenas com base nos sentimentos religiosos subjectivos», concordo com o Miguel Panão. Não é por isto que se pode concluir que a religião é má porque nem é preciso ser religioso para praticar estes actos violentos nem é preciso praticar destes actos violentos para ser religioso. Mesmo que a religião seja usada para levar pessoas a cometer actos violentos, esta violência é apenas um aspecto mau da forma como alguns usam a religião e não algo essencial na religião.
Mas o mesmo se aplica a todos os exemplos do Alfredo. Ajudar as crianças, os pobres, os enfermos e os refugiados são aspectos bons da forma como alguns usam a religião. Mas não são aspectos essenciais da religião. É possível ser-se religioso sem fazer nada disto e é possível fazer estas coisas sem se ser religioso. Na verdade, em sociedades como a nossa o principal agente deste tipo de acções é o Estado. Os serviços de saúde, as escolas públicas, os planos nacionais de pensões e os fundos de desenvolvimento regional fazem muito mais por muito mais gente do que as caridades religiosas. E sem ser preciso religião.
Para avaliar se a religião é uma coisa boa ou má temos de ver se são boas ou más as suas características intrínsecas. E essas o Alfredo evita sequer mencionar, razão pela qual me parece que os exemplos dele indicam o contrário do que ele gostaria que indicassem. Uma destas características é a crença firme em alegações factuais acerca de entidades sobrenaturais, alegações para as quais não há quaisquer evidências. A reencarnação, a origem divina do corão, a alma, a vida eterna e assim por diante. Outra característica das religiões é que estas crenças são justificadas pela autoridade de fontes que, em rigor, não sabem mais acerca disto do que qualquer outra pessoa. Os sacerdotes que interpretam os livros sagrados, os gurus infalíveis, os representantes dos deuses e essa malta toda sabem exactamente zero acerca das entidades sobrenaturais de que se dizem peritos. Finalmente, é parte essencial da religião associar este tipo de crença um forte valor moral. Não se crê em Deus apenas por julgar que ele existe, tal como se crê que a Lua tem uma parte que não vemos daqui da Terra. Crê-se em Deus, principalmente, porque é imoral duvidar da sua existência.
Estar convencido de coisas sem fundamento pela falsa autoridade de quem não sabe nada do assunto e, ainda por cima, julgar que é virtude ter tais crenças e imoral livrar-se delas é uma coisa má por si. É um erro, uma confusão entre factos e valores e uma oportunidade perdida para pensar nas coisas de forma adequada. É verdade que estes erros podem ter consequências graves para todos quando estas pessoas são levadas a fazer coisas como queimar embaixadas. No entanto, isso é um factor extrínseco à religião. Não é por isso que eu digo que a religião é uma coisa má. Também é verdade que se pode usar estas convicções para levar as pessoas a fazer coisas boas mas, tal como com as coisas más, isso também não é parte essencial da religião. Não é por isso que se pode dizer que a religião é uma coisa boa.
A cardiologia é boa pelo mérito das suas características essenciais. Continuaria a ser boa mesmo que alguns cardiologistas queimassem embaixadas e não seria melhor do que é só por alguns cardiologistas ajudarem a cuidar de crianças pobres durante as férias. Da mesma forma, a religião é má pelo demérito das suas características essenciais. Não é intrinsecamente pior só porque alguns religiosos matam em nome da sua religião, mas continua a ser má mesmo que alguns religiosos ajudem os pobrezinhos em nome da sua religião. Os exemplos do Alfredo Dinis não contribuem nada para determinar se a religião é intrinsecamente boa ou má. Esta incongruência mais parece uma admissão de que aquilo que faz uma religião ser religião não tem nada de bom.
1- Alfredo Dinis, o desconhecimento faz mal (5), o desconhecimento faz mal (4), , 3, 2 e 1.
2- Miguel Panão, Pessoas mal formadas, não que a religião seja má.
Ludwig,
ResponderEliminar"Ajudar as crianças, os pobres, os enfermos e os refugiados são aspectos bons da forma como alguns usam a religião. Mas não são aspectos essenciais da religião"
"Para avaliar se a religião é uma coisa boa ou má temos de ver se são boas ou más as suas características intrínsecas...Uma destas características é a crença firme em alegações factuais"
Este´é o equívoco fundamental do Ludwig (e de muita gente): Julgar que a Fé tem mais a ver com palavras do que com obras. O ferramental linguístico e narrativo com que é trabalhada a angústia da morte e as tentativas de extracçao de sentido da existência variam e divergem com a geografia e com a história. As práticas que lhes dão consequência e concretizam são convergentes a um fundo humano comum, válido hoje e há 5000 anos, aqui e na China. A mente brilhante do Ludwig e dos seus companheiros rema no sentido contrário: procura uniformizar as linguagens e relativizar as acções. Perda de tempo.
este homem escreve
ResponderEliminarNuno Gaspar:
ResponderEliminarSó se achas que as pessoas não têm o direito de receber um bocado mais que aquilo a que vossa caridade dispensa. E se achas bem que para completar a insuficiência da caridade se dê um bocadinho de placebo para ajudar.
A caridade é uma coisa muito bonita porque é melhor que nada, mas já se percebeu que quando cada um dá o que quer apenas, não chega para nada. Porque como ninguém é obrigado, cada um acha que qualquer migalha é mais que a sua obrigação.
A pobreza e a desigualdade têm de ser combatidas com politicas sociais, e o dinheiro envolvido tem de ser bem medido e o direito de quem o recebe bem estabelecido. Isto a vossa obra não faz.
Na prática a vossa obra apenas legitima a insuficiência de politicas para acabar com a pobreza já que deus os há de ajudar e depois vão para o céu.
Ludwig:
ResponderEliminarTens aí uns bons trechos.
" Crê-se em Deus, principalmente, porque é imoral duvidar da sua existência. "
É um bom insight. Mas eu acho que o medo também leva à crença com tanta importancia.
Eu não creio em Deus porque é imoral duvidar da sua existência. Eu sei que Ele existe. Também não tenho medo de duvidar da sua existência... Aliás, são as minhas dúvidas diárias que tornam a minha fé mais sólida...
EliminarNão sei onde vão buscar essas ideias. Talvez seja a vossa análise, mas não é o que a maioria dos religiosos pensa e sente!
Cumprimentos,
Francisco
Bom dia,
ResponderEliminarPara além do seu carácter brincalhão o Sr. Ludwig tem algumas crenças, como a da inexistência de Deus, ou a de que a religião é má.
Quanto à sua crença na inexistência de Deus, o Sr. Ludwig sabe tão bem como eu que a ciência não consegue provar a essa inexistência, até agora quando muito pode alimentar essa ilusão (e nessa ilusão vive o Sr. Ludwig). Isso não é problema nenhum, quando muito poderá ser um problema para o Sr. Ludwig. Sobre isto só me resta acrescentar que o tom de gozo que adopta em algumas discussões neste seu site me parece um pouco descabido. Mas essas coisas são consigo, deve ficar contente e isso deve ser agradável (imagino eu).
Quanto à sua crença que a religião é má, podíamos pegar apenas na afirmação “a religião é má” e perguntar se ela poderia ser boa, ou como é que ela podia ser boa. Do seu ponto vista a igreja não pode ser boa (porque segundo o Sr Ludwig assenta numa falácia) e a partir daqui não se pode realmente discutir grande coisa. Mas podemos tentar falar da religião admitindo que se tratam apenas das outras coisas, aquelas “que não dizem respeito a Deus”. Bem vê que não faz qualquer sentido comparar a religião a uma guerra (isto Sr. Ludwig é insultuoso e grosseiro, e não se torna aceitável com o seu bom humor). Quando trata de religiões (nas coisas “que não dizem respeito a Deus”) está-se a falar de instituições que envolvem um grande número de pessoas (parecidas comigo e consigo) que têm uma actividade de milhares de anos. Querendo aferir da bondade destas coisas temos de imaginar, com o que se poderão comparar as religiões e não é fácil. Será que se podem compara com regimes políticos, talvez, também eles envolvem um grande número de pessoas e existiram durante dezenas de anos. Mas continua a não ser fácil, há muitas religiões e muitos regimes (todos envolvendo gente como eu e o Sr. Ludwig).
Se compreendi bem o/a Unknown.
ResponderEliminar"Eu sei que o Unicórnio Cor-de-rosa existe."
"Será que o Unicórnio Cor-de-rosa existe?"
"Logo o Unicórnio Cor-de-rosa existe."
Se compreendi bem o/a Sonas.
Eliminar"Eu sei que o Unicórnio Cor-de-rosa não existe."
"Será que o Unicórnio Cor-de-rosa não existe?"
"Logo o Unicórnio Cor-de-rosa não existe."
Fenix
O sonas não escreveu "são as minhas dúvidas diárias que tornam a minha fé mais sólida..."...
EliminarEssa resposta perde portanto a razão de ser.
Olá Sonas,
ResponderEliminarEu não queria provar a existência de Deus. Porque é que Deus existe e se de facto existe não é para aqui chamado. Quero apenas frisar que acredito em Deus e não porque tenho medo ou ache imoral não acreditar.
Cumprimentos,
Francisco
Nuno Gaspar,
ResponderEliminarA fé pode ser o que cada um quiser, porque é uma atitude pessoal. Não tem mais razão quem julga que a fé é palavras do que quem julga que é obras ou bonecos. Nem me pronuncio sobre isso.
A religião é um bicho diferente. É um conjunto de normas e alegações factuais que pretende uniformizar as fés individuais de forma a canalizar recursos para uns poucos (auto)-eleitos representantes da verdadeira fé. E isso é crucialmente dependente de muito palavredo. Vê, por exemplo, a teologia, que tem de compensar com muitas palavras a total ausência de objecto de estudo.
"Não tem mais razão quem julga que a fé é palavras do que quem julga que é obras ou bonecos. Nem me pronuncio sobre isso."
EliminarErrado. Esse é um dos temas centrais da atitude religiosa.
"Tiago 2:14 - “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras? Porventura a fé pode salvá-lo?”"
"A religião... É um conjunto de normas e alegações factuais que pretende uniformizar as fés individuais de forma a canalizar recursos para uns poucos (auto)-eleitos representantes da verdadeira fé"
Isso é uma grande treta. A religião não é nada disso. E tu devias experimentar sustentar-te com os recursos canalizados para muitos "representantes da fé". Talvez ficasses com vontade de desistir desta algaraviada.
Francisco,
ResponderEliminar«Eu não creio em Deus porque é imoral duvidar da sua existência. Eu sei que Ele existe.»
Como é que se sabe uma coisa dessas?
«Não sei onde vão buscar essas ideias.»
Ao que as religiões dizem. Que só os fiéis serão salvos. Que os apóstatas merecem castigo. Que quem nega a existência de Deus ou do Espírito Santo comete um pecado imperdoável. E assim por diante.
Vasco Gama,
ResponderEliminarNão percebi bem onde quer chegar, mas, resumindo, acho que tudo o que os religiosos fazem de bom pode ser feito sem enganar as pessoas. Por exemplo, evitando dizer-lhes que o corão foi ditado a Maomé por Allah, que o faraó faz o Sol nascer, que o Papa é infalível em matérias de dogma cristão, que Jesus era a encarnação do criador do universo e coisas afins.
Que isso é prática que já dura há milhares de anos sei bem. Mas não é por isso que se vai dizer que enganar as pessoas é uma coisa boa.
Sr. Ludwig,
EliminarEu quero chegar onde cheguei,mas posso tentar repetir-me um pouco usando outras palavras (talvez fique mais claro). Todos nós temos como certas uma série de crenças, e eu referi-me a duas às quais dedica muita paixão. Uma tem a ver com “inexistência de Deus”, e nesta, aparentemente, tem a esperança que a ciência mais cedo ou mais tarde vai encontrar provas que comprovem a sua crença. Esta crença não a discuto, acho que se a tem, deve mantê-la e acarinha-la.
Já a crença de que “a religião é má”, pode ser discutida, separando o assunta do que decorre da sua primeira crença. E talvez seja bom enquadrar a questão da bondade ou maldade das religiões, como é que se infere da bondade de uma coisa (com a sua ausência) ou comparando com coisas parecidas ou vagamente parecidas. É que me parece que não fez nada disso, apenas comparou a religião com coisas absurdas (a guerra, a cardiologia,…), (se calhar está a brincar?).
Também fala na possibilidade ou no facto de as religiões enganarem as pessoas. A mim não me parece que queiram enganar as pessoas. Sim as religiões incluem algumas coisas, onde admitem que não conseguem explicar às pessoas e assim pedem acto de fé. Eu não tenho qualquer problema com isso (digamos que as pessoas são livres de as aceitarem), nem vejo que a aceitação traga algum mal ao mundo. E é de bondade ou maldade da religião que se trata.
Francisco,
ResponderEliminar«Porque é que Deus existe e se de facto existe não é para aqui chamado. Quero apenas frisar que acredito em Deus e não porque tenho medo ou ache imoral não acreditar.»
Se «Porque é que Deus existe e se de facto existe» é irrelevante para a tua crença, então o que é que te leva a acreditar?
Parece-me uma afirmação absurda... é como dizer “Se há ou não há vida em Marte não é para aqui chamado, apenas quero frisar que acredito que há vida em Marte.” Então acredita porquê? Pancada?
Pancada é dizer que outros acreditam na existência ou acreditam na inexistência de vida em Marte porque têm medo ou acham imoral não acreditar.
EliminarSubscrevo!
EliminarCumprimentos,
Francisco
Olá Ludwig!
ResponderEliminarPenso que é um pouco mais inteligente e menos absurdo do que acabou de escrever! Da última vez que me olhei ai espelho acho que não tinha nenhum galo e nenhuma pancada. de qualquer das formas vou consultar um especialista!
Obviamente que as razões que me levam a acreditar são importantíssimas... Contudo para a afirmação: " Crê-se em Deus, principalmente, porque é imoral duvidar da sua existência." são irrelevantes
Como disse e volto a dizer: Eu não acredito em Deus porque tenha medo ou ache imoral. Acredito por outras e variadíssimas razões. E aposto (embora não o possa comprovar) que muitos outros crentes também sentem algo semelhante
Cumprimentos e boa discussão!
Francisco
Ludwig (dscpa nao responder sobre o proprio comentario, por alguma razão nao esta a dar),
ResponderEliminarParece-me que o Francisco, quando diz a frase:
«Porque é que Deus existe e se de facto existe não é para aqui chamado.»
Não está a dizer que é irrelevante para a crença dele. Está a dizer é que não é chamado para discussão, um pouco mais especifica, que estava decorrendo, sobre se os crentes acreditavam por medo de serem imorais e tal...
Por isso quando tu, Ludwig, dizes:
«Se «Porque é que Deus existe e se de facto existe» é irrelevante para a tua crença» e depois pintas a afirmação do francisco como absurda «Parece-me uma afirmação absurda... », no fundo o que te parece absurdo é a construção que fizeste com uma parte da frase do Francisco e com um pequeno (pequenino) acrescento teu.
A discutir assim ainda acaba tudo com mais "Pancada" do que no principio...
Cumprimentos.
Ludwig, os teus comentários, argumentações e pensamentos estão cada vez mais infantis... É lamentável...
ResponderEliminarContinuas com um (vários) enorme(s) espantalho(s) na tua cabeça acerca do que é a fé, as crenças, a religião, etc.. Depreendo que não tens tido tempo, coragem, determinação ou sequer interesse em ler alguma coisa de jeito, informares-te, falar com pessoas cultas, estudares o assunto e no fundo, verificares as tuas teorias e hipóteses, como aposto que escrupulosamente fazes com a tua amada ciência.
Em relação a esta salganhada ridícula e ignorante, só vou fazer o seguinte comentário:
"A cardiologia é uma coisa boa. Se alguém me pedir para justificar porquê direi que é boa por ser bom compreender, prevenir e tratar problemas cardíacos. Ou seja, a cardiologia é boa porque é bom aquilo que é essencial na cardiologia."
Isto é para rir, não? Tás a reinar? Então não vês que isto é completamente estapafúrdio e incongruente com as tuas próprias crenças?
Sim, porque um dia vais ter de aceitar (se alguma vez estudares lógica) que de acordo com as tuas teorias do acaso de tudo, nada pode ter valor intrínseco. Tudo é um acidente cósmico.
Portanto se gostas de cardiologia e te justificas com essa parvoíce de ser bom porque é, então estás-te a querer fazer passar por alguma espécie de ditador de moral.
Estás fora...
Ludwig,
ResponderEliminarComentando agora o teu post directamente e especificamente sobre o argumento que usas com a frase(e o que a precede...):
«É que nem é preciso ser cardiologista para fazer isso nem é preciso fazer disso para ser cardiologista. São coisas independentes.»
Então seguindo essa lógica, a javardice que a inquisição realizou por cá tb é independente da religião. Não é preciso ser religioso para fazer javardices daquelas...portanto não se deve imputar isso à religião?
Há exemplos nitidos de javardices realizadas por não religiosos...
Achas que a tua lógica da independencia entre o religioso e o que ele faz tambem se aplica a este caso dos autos da fé e companhia?
Cumprimentos.
leao pancada,
ResponderEliminar«Então seguindo essa lógica, a javardice que a inquisição realizou por cá tb é independente da religião. Não é preciso ser religioso para fazer javardices daquelas...portanto não se deve imputar isso à religião?»
Sim e não. O problema aqui é distinguir entre uma religião específica – por exemplo, a variante de catolicismo que se entreteve com a inquisição – e a religião como categoria genérica, daquilo que há de comum entre todas as religiões.
Penso que se pode, e deve, imputar os crimes da inquisição àquela religião católica desses séculos. Tal como se pode e deve imputar a ocultação e encobrimento dos crimes de pedofilia à Igreja Católica das últimas décadas.
Mas não me parece correcto dizer que a religião, enquanto categoria genérica, é má por causa disto. Isso seria como dizer que os homens são maus porque muitos violadores são homens, ou coisa do género.
Há religiosos, e organizações religiosas, que não rebentam embaixadas, não torturam, não encobrem a pedofilia nem nada disso. Mesmo que não houvesse, poderia haver religiões inocentes desses crimes. Se estamos a criticar uma das religiões culpadas, pois é correcto imputar-lhe esses defeitos. Mas se estamos a criticar a religião em geral, temos de apontar é os defeitos inerentes a essa prática e não os defeitos contingentes por algumas variantes serem mais assim ou assado.
Olá mais uma vez,
EliminarPenso que nem ao catolicismo da época podemos imputar seja o que for em relação à inquisição (Ou a qualquer outra atrocidade do género). Penso também ser importante compreender que a inquisição mais do que um instrumento religioso foi um instrumento político e social.
Não podemos imputar a inquisição ao catolicismo da época porque ao fazê-lo estamos a imputar ao catolicismo actual. Não houve grandes alterações nos principais dogmas e objectivos do Catolicismo. Como tal, ao imputar estas atrocidades ao Catolicismo da época , estamos também a imputar ao catolicismo actual, no qual eu me incluo! E digo já aqui, que não tenho a intensão de ingressar nas fileiras do santo fício e queimar Judeus na fogueira...
Acho que o mais justo é afirmar que as atrocidades da inquisição podem ser imputadas aos homens e apenas aos homens que na época usufruiam de poder para tal... Assim sendo, apesar de ser algo comum até finais do século XVIII, a violência proclamada em nome de Deus e do Catolicismo, não era mais do que uma interpretação errónea do que é Deus e o Catolicismo.
Por esta razão, concordo integralmente com o post o Miguel Panão!
Cumprimentos,
Francisco
Anacoreta,
ResponderEliminar«Ludwig, os teus comentários, argumentações e pensamentos estão cada vez mais infantis... É lamentável...»
Não é lamentável. É irrelevante. Afirmações dessas não contribuem nada de produtivo para esta discussão.
«Em relação a esta salganhada ridícula e ignorante, só vou fazer o seguinte comentário:»
Teria sido mais proveitoso, e menos inconsistente, teres começado logo por aí e omitido os primeiros três parágrafos.
«de acordo com as tuas teorias do acaso de tudo, nada pode ter valor intrínseco.»
Pode sim. Eu surgi por acaso. O meu pai produziu muitos milhões de espermatozóides, a minha mãe tinha milhares de óvulos e o mesmo para os meus avós, bisavós, etc. Ter saído exactamente eu foi um acontecimento extremamente improvável. No entanto, a minha vida tem valor intrínseco. Também tem valor instrumental, na medida em que me sirvo de estar vivo para fazer algumas coisas de que gosto. E tem valores extrínsecos, espero eu, para outras pessoas e como parte de uma família, comunidade e assim por diante. Mas, além disto, tem um valor intrínseco. Vale por si. Mesmo que ninguém gostasse de mim e mesmo que não me servisse da vida como um instrumento para os meus propósitos, só existir penso que já valia alguma coisa. Podia ser pouco, mas era melhor que nada.
Não preciso da ilusão de que alguém juntou de propósito todos os nucleótidos do meu ADN e todas as células do meu corpo para julgar que a minha vida tem valor. Calhou assim, e agora aproveito.
"Não preciso da ilusão de que alguém juntou de propósito todos os nucleótidos do meu ADN e todas as células do meu corpo para julgar que a minha vida tem valor. Calhou assim, e agora aproveito."
EliminarOlá Ludwig,
Realmente o modo como colocas a questão influencia tremendamente a conclusão...
Para um religioso ou mesmo um filósofo, achar que a vida tem ou não valor intrínseco , não é o pensamento "Eh pá... Alguém juntou os nucleótidos do meu ADN, agora sim sinto que a minha vida tem valor" que se sobrepõe sobre os demais (peço desculpa pelo tamanho da frase).
Penso que o valor de uma vida vai muito para além de "simples" códigos genéticos. Como tal, sinto que não surgi por acaso. Se a minha existência se deve ao acaso então o acaso ditará as minhas acções futuras!
Cumprimentos,
Francisco
Ludwig,
EliminarNão está respondido. Não, a tua vida não tem valor intrínseco se é um acidente cósmico. Ou melhor, tem um valor qualquer que tu lhe queiras dar sem possibilidade objetiva nenhuma de lhe julgares um valor bom ou mau ou assim-assim.
Não podes fazer esse julgamento se tudo é um acidente cósmico porque é sempre um julgamento subjetivo e portanto, dessa perpetiva, egocêntrico.
Tu sabes lá o que as outras pessoas pensam da tua vida. E para o resto do universo de acidentes cósmicos, tu interages com uma ínfima, mas muito ínfima parte deles (ao que conhecemos das dimensões do Universo) e portanto que valor tens tu no meio disso tudo e do que poderá haver por aí que nem sonhas?
Não tens base nenhuma para fazeres as afirmações positivistas que fazes.
Só uso de da linguagem que uso porque é precisa e exata em relação aos teus comentários e afirmações: são ridículos, incongroentes, e reveladores de ignorância.
Se não percebes isso, corroboras precisamente com a crítica que faço.
Bom fim-de-semana.
Caro Ludwig,
ResponderEliminarAfirmas: “Ajudar as crianças, os pobres, os enfermos e os refugiados são aspectos bons da forma como alguns usam a religião. Mas não são aspectos essenciais da religião. É possível ser-se religioso sem fazer nada disto.”
O teu post, como aliás os que publicas sobre religião, está profundamente equivocado porque parte desta premissa errada. Para os crentes, as actividades como as que refiro no blogue Companhia dos Filosofos não são opcionais, elas fazem parte da essência da religião, como se pode ver das seguintes passagens bíblicas:
Parábola do juízo final: “Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, bem ditos de meu Pai; recebei como herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me’. Então os justos Lhe dirão: Senhor, quando é que Te vimos com fome e Te demos de comer, ou com sede e Te demos de beber? Quando é que Te vimos peregrino e te recolhemos, ou sem roupa e Te vestimos? Quando é que Te vimos doente ou na prisão e Te fomos ver?’ E o Rei lhes responderá: Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes.” (Mt 25, 34-40)
E ainda: “a verdadeira religião, aos olhos de Deus, pura e sem falhas, consiste em amparar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações.(Tiago 1, 27)
O cardiologista poderá ignorar completamente as necessidades das pessoas para lá do seu gabinete de médico e ainda assim continuar a ser um bom cardiologista. Mas o cristão não poderá dizer-se cristão se ignorar as pessoas que passam necessidade e de quem ele se pode aproximar. Um não cristão poderá comprometer-se ou não em projectos de desenvolvimento em favor dos mais necessitados, mas o cristão não será cristão se não o fizer, cada um segundo as suas possibilidades. Esta atitude faz parte intergrante e fundamental da sua crença religiosa.
A tua concepção de religião vai numa linha que corresponde a um lugar comum: “o cristão praticante é o que vai à missa ao domingo”. Não é. Por outro lado, não são as verdades fundamentais da fé cristã que tornam sejam quem for mau, nem são elas que tornam o cristianismo mau. Acreditar que Jesus é Deus, que nasceu de uma mulher, que ressuscitou, que realizou milagres, etc., não torna o cristianismo mau. Continuar a defender o contrário não tem qualquer fundamento e baseia-se num enorme equívoco.
Saudações.
Francisco (e leao pancada),
ResponderEliminar«Obviamente que as razões que me levam a acreditar são importantíssimas... Contudo para a afirmação: " Crê-se em Deus, principalmente, porque é imoral duvidar da sua existência." são irrelevantes»
Era esta contradição que eu queria que ficasse explícita. Nestes diálogos tenho encontrado muitas vezes um certo zig-zag argumentativo que serpenteia assim. Primeiro diz-se que se sabe que Deus existe. Depois, quando se pede evidências disso, diz-se que não há evidências, que o importante é a fé. Quando se aponta que a fé não dá para saber se existe ou não, dizem então que têm fé porque sabem que existe, e anda-se nisto. Penso que já conseguimos sair desse ciclo vicioso (ou talvez não, a ver como isto progride).
A minha proposta é que uma razão importante para acreditar que o deus de certa religião existe (o deus, ou deuses, variam de religião para religião) é que as religiões defendem como virtuosa essa crença (quem tem fé será salvo, recompensado, etc, porque está a fazer algo louvável) e a descrença como pecado, digno de punição. Em certos sítios os apóstatas até são condenados à morte pelo crime de descrer.
Francisco, se tu propões que estou enganado, que isto não é uma razão para acreditar que o teu deus existe, então é muito relevante discutir que razões então te levam a acreditar que o teu deus existe. Não podes dizer que isso não interessa porque é precisamente isso que estamos a discutir.
Ora tu começaste por dizer que, no teu caso, sabes que o teu deus existe. Isso seria uma boa razão para acreditar, admito, mas levanta a questão de como é que sabes que o teu deus existe. É que para saber algo não basta ter fé nem simplesmente dizer que sabes.
Já agora, também para o Nuno Gaspar, o que me leva a suspeitar que em muitos casos a crença num certo deus é motivada pela noção de que se deve acreditar e que é pecado não acreditar é uma combinação de dois conjuntos de dados. Por um lado, vejo em todas as religiões esse juízo de valor. A distinção entre fiel e infiel, a dívida para com os sacrifícios ou benesses divinas, os castigos para quem não amocha, etc. Por outro lado, vejo sempre nestas discussões com os crentes o que parece ser uma tentativa de evitar explicar exactamente porque é que acreditam que Jesus é a encarnação do criador do universo, o Espírito Santo é um ser real, Allah é o autor do corão ou coisa do género. Acaba por ser sempre um «Acredito por outras e variadíssimas razões», ou equivalente, mas quando se tenta olhar para os detalhes nunca surge nada que justifique acreditar no que acreditam. Muito menos dizerem que sabem que é assim...
Olá Ludwig,
EliminarPenso que não compreendeste o meu raciocínio inicial...
Afinal estamos a discutir se Deus existe? Penso que incialmente não era isso que se pretendia. Se sim, então posso iniciar um rol de respostas que no meu entender podem ser válidas, mas penso que vamos enveredar numa discussão interminável...
Se não, então não tenho de te explicar porque acredito em Deus. Para ti basta saberes que eu acredito veemente em Deus.
Quando dizem :
" Crê-se em Deus, principalmente, porque é imoral duvidar da sua existência. "
É um bom insight. Mas eu acho que o medo também leva à crença com tanta importancia."
Penso que não estão necessariamente a afirmar a inexistência de Deus, mas apenas a razão pela qual as pessoas acreditam em Deus. Ora, como não concordo com essa razão afirmo mais uma vez: Eu não creio em Deus porque é imoral duvidar da sua existência ou porque tenha medo. Repito aqui mais uma vez e em caps NÃO TENHO MEDO NEM ACHO IMORAL NÃO ACREDITAR EM DEUS. Penso que a maioria dos crentes também não se identificam com essa afirmação
Cumprimentos,
Francisco
Nuno Gaspar,
ResponderEliminar«Pancada é dizer que outros acreditam na existência ou acreditam na inexistência de vida em Marte porque têm medo ou acham imoral não acreditar.»
Não se notasses que quem acreditava nisso nunca explicava ao certo porque acreditava (a fé, variadissimas razões, etc, mas nada que justificasse concluir que há vida em Marte) e, além disso, seguia religiões que diziam lá sempre que era pecado, merecedor de castigo, rejeitar o dogma da vida em Marte. Nesse caso penso que não seria tanta pancada achar que estavam a defender esta crença por julgarem que tinham obrigação disso.
"seguia religiões que diziam lá sempre que era pecado, merecedor de castigo, rejeitar o dogma da vida em Marte"
EliminarQue burrice, Ludwig. Esse debate do fora da Igreja não há salvação já morreu há tanto tempo. A tua conversa seria oportuna em discussões há 100 ou 200 anos atrás.
Ludwig:
ResponderEliminar«Mas se estamos a criticar a religião em geral, temos de apontar é os defeitos inerentes a essa prática e não os defeitos contingentes por algumas variantes serem mais assim ou assado.»
E tu limitas-te a esta máxima nas tuas ferozes criticas à religião do ktreta?
Parece-me que costumas começar com a noticia de uma javardice qualquer, realizada por um religioso qualquer, e depois discorres sobre quão má é a religião por isto e por aquilo...
Talvez até to poderia conceder, que respeites a tua máxima de avaliar o valor intrinseco da religião,
mas o que noto é que dás imenso importancia ao "valor intrinseco" da religião quando as noticias são de actos positivos de pessoas religiosas e quando são actos negativos, alegremente noticias aqui no teu blog com todo o alarido possível. Se esses actos fossem assim tão irrelevantes para o valor intrinsico da religião, porque lhes dás tanta importancia? e porque só lhes dás importancia de forma selectiva?
O que parece, e lanço a minha suspeita pessoal, é que gostas de realizar a tua pequena propaganda pessoal para influenciar a percepção que os outros tÊm do "valor intrinseco" da religião, por forma a apróximá-lo mais da tua própria percepção, e quando os outros se defendem da mesma maneira vens gritar "aqui del Rei que: há inconguencias".
Acho por isso que estas a ser incongruente no teu apontar das incongruencias dos outros...quem sabe tambem eu o estarei...e quem me criticar esta bela critica, tenha cuidado em não ser incongruente ou nunca mais daqui sairemos...
Cumprimentos
Alfredo,
ResponderEliminar«O teu post, como aliás os que publicas sobre religião, está profundamente equivocado porque parte desta premissa errada. Para os crentes, as actividades como as que refiro no blogue Companhia dos Filosofos não são opcionais, elas fazem parte da essência da religião,»
Para algumas pessoas, é verdade que ajudar os pobres, etc, faz parte da forma como vivem a sua religião. Mas não é isto que define a categoria “religião”. Se fosse, então o Estado português seria a maior religião do nosso país.
Também confundes a categoria “cristianismo católico” com a categoria “religião” quando escolhes uma passagem da bíblia interpretada pela tua vertente religiosa particular. A religião é muito mais do que isso. Mesmo restringindo-nos à bíblia, tens também exemplos como
«Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que näo obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mäe, e, castigando-o eles, lhes näo der ouvidos, Entäo seu pai e sua mäe pegaräo nele, e o levaräo aos anciäos da sua cidade, e à porta do seu lugar; E diräo aos anciäos da cidade: Este nosso filho é rebelde e contumaz, näo dá ouvidos à nossa voz; é um comiläo e um beberräo. Entäo todos os homens da sua cidade o apedrejaräo, até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e temerá.»
Umas religiões levam isto mais à letra do que outras, e outras ainda nem ligam nada a este livro. Se queres discutir uma religião em particular, então tens de ver como interpretam isto e que passagens escolhem. Mas se estamos a falar da religião em geral, daquilo que caracteriza todas as religiões como religiões, não podes dizer que é a Parábola do juízo final ou o Tiago 1:27. Isso é da tua religião, interpretada à maneira da tua religião, e nada mais do que isso.
«A tua concepção de religião vai numa linha que corresponde a um lugar comum: “o cristão praticante é o que vai à missa ao domingo”.»
Não. A mim não me rala nada se o cristão vai à missa ao domingo, se dá esmola aos pobres ou até se acredita no espírito santo. Para avaliar a religião, em geral, não podemos estar a olhar para os detalhes que variam de religioso para religioso e de religião para religião. Temos de considerar os pontos comuns, aqueles aspectos transversais a todas as religiões e que distinguem essas várias ideologias de tudo o resto que não consideramos ser religião. Coisas como a crença em elementos sobrenaturais e alegações factuais impossíveis de testar, a autoridade de sacerdotes que alegam saber, por processos misteriosos, mais do que o comum dos mortais sobre estes assuntos e o juízo de valor acerca dessas crenças factuais.
O resto são detalhes que podes apontar na tua religião, como se pode apontar outros menos positivos, mas que nada contribuem para avaliar a religião enquanto categoria genérica.
Discordo deste teu post Ludwig.
ResponderEliminarEm primeiro lugar a incongruência que apresentas é flagrante numa avaliação superficial, mas menos flagrante se pensarmos um pouco melhor sobre o assunto.
A religião tem algum impacto nas acções das pessoas, mas muitas vezes as acções das pessoas seriam aquelas e a religião é usada como justificação. E muitas vezes existem interacções mais complexas entre estas duas possíveis direcções.
Como ambos os efeitos ocorrem em maior ou menor grau, estabelecer o efeito determinante, se existir, não é simples.
E precisamente porque estes efeitos e o grau em que ocorrem dependem do acto em causa, há quem possa acreditar que as pessoas ajudam os outros porque são decentes e atribuem um significado religioso a essa generosidade porque aprenderam essa associação, mas que não se espetariam contra as torres gémeas sem religião sem ser incongruente; ou, pelo contrário, que vão visitar os prisioneiros porque foi isso que Jesus ensinou, e sem o exemplo de Jesus não o fariam, mas claro que rebentar uma bomba para matar uns tantos protestantes em nome do catolicismo na Irlanda é tudo ao contrário do Amor que a Bíblia prega, e portanto se trata de alguém cheio de ódio no coração que resolveu instrumentalizar a religião. Ambas estas asserções não são incongruentes: basta que as pessoas acreditem que a influência que religião tem nas pessoas deve ser avaliada caso a caso, e apresentem argumentos específicos para defender que nuns casos é de uma forma e noutros é de outra (claro que depois podemos discordar desses argumentos específicos, mas aí a incongruência não é a que apontas).
O segundo ponto em que discordo é quando separas as consequências da religião "na prática" de uma avaliação dos seus méritos. Como consequencialista, discordo profundamente.
É verdade que nem todas as religiões têm as mesmas consequências. Ser Quaker não é a mesma coisa que ser Xiita ou Católico. Mas quando pensamos nas consequências da religião podemos ponderar as diferentes popularidades, e as condições que diferentes religiões têm para se tornarem populares na sua interacção com a natureza humana.
Se o cristianismo tivesse excelentes efeitos: ao nível de aumentar a generosidade, a empatia, a decência das pessoas (como os muitos cristãos acreditam que tem); se não fosse promotor de conflitos mas de paz; se não tivesse um efeito perverso no pensamento crítico (como acredito que tem); ou não encorajasse a aceitação da autoridade (como acredito que encoraja); não seria óbvio que fosse pernicioso, mesmo sendo falso.
Na verdade, a minha perspectiva vai no sentido contrário: porque é falso tenho boas razões para acreditar que o balanço do seu efeito social é negativo. Os frutos de uma falsidade geralmente o são.
Mas é pelos "frutos" que a religião deve ser avaliada. Discordo completamente que isso seja uma questão irrelevante: é a questão fundamental.
João Vasco,
ResponderEliminarO valor intrínseco de uma religião não pode de forma nenhuma ser avaliado por aquilo que as pessoas fazem independentemente da religião. Sinceramente não percebi muito bem o teu comentário.
Até porque «se pensarmos um pouco melhor sobre o assunto» verificamos que as boas acções em nome da religião (nos termos que o Alfredo Dinis considera assinaláveis) são residuais no conjunto das acções em nome da religião. Eu até diria que esta incongruência é maior do que aquela que o Ludwig escolheu.
«Os sacerdotes que interpretam os livros sagrados, os gurus infalíveis, os representantes dos deuses e essa malta toda sabem exactamente zero acerca das entidades sobrenaturais de que se dizem peritos.»
ResponderEliminarA propósito disto, recordo o Alfredo Dinis no programa Prós e Contras a suscitar com "humildade" um desejo seu (vou citá-lo de memória): «Não me façam perguntas difíceis sobre Deus porque eu não sei responder».
Tem ficado aqui demonstrado muitas vezes que o Alfredo Dinis também não consegue responder às perguntas simples sobre Deus, mas esqueceu-se de o dizer na TV... Não pude evitar encontrar desonestidade nesta pequena omissão. Ficam por isso as minhas desculpas.
O valor intrínseco de uma religião não pode de forma nenhuma ser avaliado por aquilo que as pessoas fazem independentemente da religião. Sinceramente não percebi muito bem o teu comentário."
ResponderEliminarSim, existiu algum problema de comunicação pois não foi isso que quis dizer.
O que eu disse é que a religião influencia as acções das pessoas. É complicado saber em que medida: uns dizem que as influencia a serem mais altruístas mas não a rebentarem-se contra as torres gémeas, outros dirão que as influencia no sentido de aceitar melhor a autoridade, mas não tanto no sentido de serem mais misericordiosas, etc...
Mas, na medida em que as influenciar, isso é relevante para aferir se a religião é perniciosa ou benéfica. Tentar compreender a influência da religião "na prática" é o mais importante para responder a essa questão.
O comentário anterior era dirigido ao Bruce.
ResponderEliminarJoão Vasco,
ResponderEliminarNão concordo que o valor da religião seja o valor dos seus frutos, pela mesma razão que não concordo que o valor da física seja o valor dos seus frutos. Por exemplo, não me parece que a decisão de Truman de largar uma bomba nuclear em Hiroshima dê ou tire valor à física enquanto metodologia e corpo de conhecimento. O valor dos frutos é o valor da forma como a religião e a ciência são aplicadas para obter resultados em algum empreendimento. Esse valor instrumental é diferente do seu valor intrínseco. Penso que compreender a realidade tem valor mesmo que se decida não usar esse conhecimento para algum fim, por exemplo.
Além disso, uma coisa é cada religião específica e outra, bem diferente, é a religião enquanto categoria que separa todas as religiões de todas as actividades e ideologias que não são religião. O valor instrumental de uma religião em particular não te diz muito sobre o valor intrínseco da religião em geral, da mesma forma que o valor instrumental do bombardeamento de Dresden ou do programa Apollo não te diz nada sobre o valor intrínseco da ciência.
Em terceiro lugar, a incongruência que refiro não é considerar que ajudar os pobres por razões religiosas indica que a religião é boa enquanto que matar pessoas por razões religiosas não indica que a religião é má. Isso seria, no máximo, uma inconsistência. A incongruência é a inadequação de algo para um fim, e a que refiro aqui é que os actos bons ou maus que cada pessoa faz pensando que isso faz parte da sua religião em particular não são adequados para a finalidade de aferir se aqueles atributos que distinguem algo como religião, em geral, são uma coisa boa ou má. Por exemplo, será incongruente dizer que a termodinâmica é má por causa dos atropelamentos ou boa por causa do ar condicionado. Essas coisas que se faz com esse conhecimento não determinam o valor do conhecimento em si.
Basicamente, o problema é este. Para cada coisa do género de atentados bombistas, esmolas, voluntariado, cruzadas, inquisição, caridade e isso tudo, tens pessoas religiosas que as fazem, pessoas religiosas que não as fazem e nada disso serve para distinguir entre o que é religião e não é religião. Se bem que estas coisas possam servir para avaliar certas aplicações da religião, e mesmo assim com uma grande margem de erro (dizer que os terroristas rebentam coisas porque são muçulmanos é uma simplificação grosseira do que se passa), não servem para avaliar a religião em si.
Finalmente, também sou consequencialista no sentido em que não considero justificável proibir algo que seja inconsequente, mas não no sentido de julgar que o valor de algo só é determinado pelas suas consequências. Penso que isso é um mau uso do consequencialismo :)
João Vasco,
ResponderEliminar«O que eu disse é que a religião influencia as acções das pessoas.»
Sim. E isso pode ser tido em conta. Mas nota que a religião é uma categoria que engloba todas as religiões e não é cada uma das religiões em particular. Portanto, é falso dizer que a religião influencia as pessoas a matar. Algumas religiões podem influenciar assim, mas outras não, e isto seria uma afirmação tão falsa como dizer que as aves são pretas. Algumas são, outras não, mas essa cor não é algo que caracteriza as aves. O mesmo para a caridade, o voluntariado, a tortura, etc.
Mas podes dizer que a religião visa subordinar crenças e actos das pessoas a uma autoridade que se diz superior por intervenção ou ligação com seres sobrenaturais. Isso já é algo característico da religião, seja qual for, do budismo ao shamanismo e ao cristianismo evangélico. O valor disso já será algo que serve para avaliar a religião, enquanto categoria.
"Não concordo que o valor da religião seja o valor dos seus frutos, pela mesma razão que não concordo que o valor da física seja o valor dos seus frutos. Por exemplo, não me parece que a decisão de Truman de largar uma bomba nuclear em Hiroshima dê ou tire valor à física enquanto metodologia e corpo de conhecimento. "
ResponderEliminarPor acaso parece-me relevante.
A ciência tem trazido muito progresso, um enorme aumento da esperança média de vida, um enorme declínio da violência e da probabilidade de morrer às mãos de outro homem. Mesmo com as duas guerras mundiais, o século XX foi o século mais pacífico que a humanidade experimento (sem contar com o XXI), tanto quanto sabemos, se pensarmos na probabilidade de cada pessoa morrer às mãos de outra (nem que seja com uma bomba atómica largada na sua cidade).
Nesse sentido, a "bomba atómica" torna-se quase irrelevante quando comparada com outros efeitos da ciência. E nem sequer mencionei o aumento do conforto, da prosperidade, das possibilidades culturais, etc...
A Ciência tem o efeito de dar mais poder. Seria preciso sermos colectivamente muito estúpidos para que esse maior poder fosse no geral mais pernicioso que benéfico.
O conhecimento liberta, nesse sentido, já que a Liberdade é algo de positivo, será de esperar que o conhecimento seja benéfico.
Mas discordo que a Ciência e o aumento conhecimento devessem ser vistos como positivos se as suas consequências fossem desastrosas.
Eu penso que saber mais é bom, independentemente da avaliação das consequências desse conhecimento específico, porque uso uma heurística. Há tão boas razões para acreditar que saber mais é benéfico, que nós podemos olhar para o conhecimento como se tivesse valor intrínseco.
Mas se tivermos imaginação e pensarmos num mundo em que o conhecimento traria miséria, opressão e sofrimento às pessoas, facilmente percebemos que essa heurística seria desadequada. Em tal universo, seria a ignorância que aparentaria ter valor intrínseco. Seria uma bênção, individual ou colectivamente falando.
"Além disso, uma coisa é cada religião específica e outra, bem diferente, é a religião enquanto categoria que separa todas as religiões de todas as actividades e ideologias que não são religião."
O problema aqui é que se quiseres ficar com o conceito mais abstracto possível daquilo que pode ser uma religião ficas sem nada. As fronteiras são tão ténues, que ou olhas para o que a religião é "na prática" ou não tens nada.
Pega numa definição que seja aceite por todos do que é a religião ("Religion is a collection of belief systems, cultural systems, and worldviews that relate humanity to spirituality and, sometimes, to moral values", por exemplo) e tenta conceber uma religião que seja moralmente neutra.
Certamente conseguirás.
Depois, pela tua lógica terás de concluir que a religião é moralmente neutra.
Parece-me que para aferir a moralidade da religião não basta ver a sua instanciação na prática - concordo que temos de olhar para o que poderia ser, além de olhar para o que é, mas é um "que poderia ser" realista, para o qual "o que é" dá indicações muito importantes.
Como escrevi acima "É verdade que nem todas as religiões têm as mesmas consequências. Ser Quaker não é a mesma coisa que ser Xiita ou Católico. Mas quando pensamos nas consequências da religião podemos ponderar as diferentes popularidades, e as condições que diferentes religiões têm para se tornarem populares na sua interacção com a natureza humana."
(continua)
Infelizmente, João, o que vejo por mera observação é que as religiões mais populares são aquelas que «toleram» um comportamento que não seja muito diferente do que as pessoas já têm — ambição, inveja, materialismo, competitividade — mas que justamente por isso o seu efeito nos indivíduos e na sociedade que e resultante disso não é fundamentalmente diferente.
EliminarComo dizes e muito bem, exemplos como os Quakers, que propõem métodos muito diferentes e valores muito diferentes não são populares. Quanto mais uma religião ou filosofia tiver uma proposta radicalmente diferente do modelo da sociedade em que está inserida, menos popular será.
No entanto, é curioso de ver que, apesar de tudo, as nossas sociedades modernas — supostamente ateias e laicas — acabam por «imitar» alguns valores propostos pela maioria das religiões mais populares, e usam métodos semelhantes para atingir os mesmos fins, descartando apenas tudo aquilo que seja «sobrenatural», e, regra geral, não se têm dado muito mal...
P.S. Não sou Quaker, mas já frequentei algumas reuniões de Quakers :) embora pessoalmente não me reveja nos seus métodos — a «espontaneidade» anunciada como sendo «de inspiração divina», em quase todos os casos a que assisti, tinha uma origem puramente egoista e materialista, mesmo que até acreditasse na boa vontade das pessoas que estavam presentes. Mas não posso elaborar muito sobre o método dos Quakers, porque o conheço bastante mal. Posso, isso sim, confirmar que é muito diferente do cristianismo mainstream e que, por isso mesmo, será sempre pouco popular. E penso que estatisticamente se possa afirmar que dá melhores resultados, pelo menos nos poucos casos que conheço, do que os métodos propostos por outras denominações cristãs.
EliminarDe acordo :)
Eliminar"tens pessoas religiosas que as fazem, pessoas religiosas que não as fazem "
ResponderEliminarMas não nas mesmas proporções... E essa é que é a questão.
"Mas podes dizer que a religião visa subordinar crenças e actos das pessoas a uma autoridade que se diz superior por intervenção ou ligação com seres sobrenaturais."
Tu podes pegar nalgumas comunidades Quakers e não ver lá nada disso.
Claro que por essas e outras razões, não é uma religião que tenha a popularidade que outras têm. E por isso faz sentido falar na influência do Islão ou do Cristianismo, ou seja de que ideia for, olhando para a forma como essas ideias influenciam as pessoas "na prática". Só em abstracto, nestes casos é difícil ir a algum lado, pois as categorias são vagas, mal definidas, e abrangem quase tudo e o seu contrário.
Não posso concordar com a visão de que «a religião visa subordinar crenças e actos das pessoas a uma autoridade que se diz superior por intervenção ou ligação com seres sobrenaturais». Se isso for apresentado como uma consequência de facto do que acontece em muitas das religiões mais populares, então não poderei contestar o facto. Mas a definição da Wikipedia avançada pelo João Vasco, Religion is a collection of belief systems, cultural systems, and worldviews that relate humanity to spirituality and, sometimes, to moral values. é mais neutra e identifica mais precisamente o que a religião é, sem apontar as suas consequências. Essa são para os historiadores, sociólogos, antropologistas, etc. depois destrinçarem em pormenor.
ResponderEliminarDa mesma forma, não concordar que «[...] o valor da religião seja o valor dos seus frutos» significa partir de um dogma a priori — a religião não tem qualquer valor» — para depois sistematicamente ir acrescentar razões pela qual o dogma deve ser aceite :) Ora não me parece um bom ponto de partida para argumentar, mas se calhar sou só eu a dizê-lo. É que o exemplo da bomba atómica é meramente um exemplo paroquial — sim, é verdade que ocasionalmente a ciência pode causar desgraças (e se não fosse a ciência, não haviam armas sofisticadas), mas, regra geral, os «valores» da ciência não são os de criar métodos para matar mais gente mais depressa, mas sim meramente fazer uma recolha sistemática de conhecimento que depois possa ser empregue para melhorar as vidas das pessoas. Nesse sentido, a ciência tem valor, e é de facto o valor dos seus frutos.
No caso das religiões, obviamente que concordo que nem tudo deve ser colocado no mesmo saco :) No entanto, é justamente ao observar as suas visões que podemos avaliar, primeiro, se os frutos estão de acordo com as suas visões; e segundo, se estão, se estes são benéficos para a população ou não; se não estão, perguntar porque é que propõem uma visão quando seguem outra linha de pensamento :) É assim que qualquer pessoa racional que queira estudar uma religião devia prosseguir.
Vou dar dois exemplos, sem pretender, de todo, querer denegrir nenhuma religião ou os seus simpatizantes, mas apenas mostrar onde quero chegar.
EliminarVamos começar pelo Islão. Tem como visão a progressiva expansão da Casa da Guerra, no seio da qual só existem fiéis a um deus, alargando-a a todo o mundo. Esta expansão faz-se de qualquer forma (todos os meios justificam o fim), e a conclusão é uma sociedade pacífica, quando deixarem de existir infiéis. Se analisarmos esta proposta de worldview, podemos ver que os muçulmanos mais fanáticos a seguem escrupulosamente. Aqueles que se dizem «moderados» (e o são de facto) na realidade estão a abandonar a sua visão: ou seja, aparentemente reconhecem que a visão, em si, não está correcta, e adoptam, por uma questão de ter uma sociedade mais pacífica, uma visão diluída, que, no entanto, é mais funcional socialmente. Devemos dizer, pois, que o dito «islamismo moderado» já não é «Islão» e que há uma discrepância entre a visão e os frutos. Devemos igualmente constatar que a visão estrita do Islão não conduz a sociedades pacíficas — mas obriga a uma «guerra» constante; estão sempre a nascer infiéis, e entre os fiéis, a heresia surge espontaneamente, forçando os fiéis a combatê-los primeiro — pelo que teremos de a rejeitar como uma visão válida: não é uma proposta que esteja de acordo com os pressupostos.
Agora se formos mauzinhos podemos olhar para a visão do catolicismo mediterrânico :) A visão estrita do catolicismo propõe a criação do Reino de Deus na Terra: uma sociedade utópica (mas atenção: as democracias também são utópicas, o que não quer dizer que sejam realizaveis) onde todos desenvolvem uma forte dose de altruismo, reconhecendo que é mais importante o bem-estar dos vizinhos do que o bem-estar próprio, existindo um método simples para atingir este estado: rezar até que isto aconteça. A «recompensa» pela criação do Reino de Deus na Terra é deixar de haver diferença entre a Terra e o Céu, e de não ser preciso morrer primeiro para atingir essa sociedade utópica.
EliminarOra isto é realizável. De facto, podemos alegar que, do ponto de vista histórico, as sociedades cada vez mais democráticas e mais livres, apesar de não serem perfeitas, cada vez se aproximam mais desse «ideal utópico». Se compararmos a opressão no Império Romano, onde o cristianismo surgiu, com a opressão dos dias de hoje, vemos que em dois mil anos as coisas melhoraram (poder-se-á argumentar que não foi graças à religião que isso aconteceu, mas é inegável que os valores humanistas na Europa de hoje foram inspirados nos valores cristãos do passado, despojados do seu misticismo religioso — houve uma «inspiração», por exemplo, em frases como «todos somos iguais perante Deus» que foi transformado em «todos somos iguais perante o Estado, nos direitos e deveres que temos», etc.).
Nesse sentido, podemos dizer que o cristianismo propôs valores que fazem parte da sua visão e que estão, de facto, a ser implementados na prática. Só que a verdade é que não é à custa dos praticantes! O cristianismo, por exemplo, é uma das raras (senão a única) religião em que se pode ser «não praticante», o que é um absurdo e uma contradição. No entanto, é graças aos «não praticantes», que no entanto são contabilizados como tal para efeitos de estatísticas, que a sociedade efectivamente evoluiu para um modelo melhor! Ou seja: estamos no caso de uma situação interessante em que a visão e os valores estão de facto alinhados, mas não é graças aos seguidores dessa visão — embora certamente tenha sido pela sua inspiração. Por outras palavras: a concretização do «Reino de Deus na Terra» pode ter sido efectivamente inspirada na visão cristã, mas não dependeu, de todo, dos cristãos praticantes para ser colocada em prática!
Poderia ir mais longe, é claro, mas penso que ficou claro qual o meu ponto aqui: pode-se efectivamente «estudar» as religiões, analisando as suas visões e verificando se os seus frutos estão, de facto, de acordo com a visão, e ver em que medida é que a prática proposta para atingir essa visão de facto teve alguma relevância. E, sendo assim, pode-se efectivamente analisar em que medida é que as religiões podem ou não ter contribuições positivas para a sociedade em geral.
Mas alego que o mesmo se pode fazer relativamente a qualquer filosofia, ideologia, ou mesmo a algumas ciências. O que é de colocar em questão então é ver em que medida é que as características distintivas das religiões contribuem para uma sociedade melhor, comparativamente a métodos alternativos que dispensam essas mesmas características.
Vamos pegar num exemplo estúpido mas ilustrativo: a crença no sobrenatural constrói uma sociedade melhor ou pior? Se olharmos apenas factualmente para a sociedade que temos e compararmos com as sociedades do passado, que podemos concluir? As sociedade modernas que dispensam a crença no sobrenatural na realidade apresentam-se bastante mais próximas do ideal utópico proposto pelas religiões. Correlação não é causação, mas pode-se fazer um argumento bastante sólido de que a «crença no sobrenatural» teve pouca influência na forma como as sociedades evoluiram, e, à medida que essa crença se começou a desvanecer na Europa do séc. XVIII, as sociedades evoluiram mais depressa no sentido de serem mais justas, mais tolerantes, mais egualitárias. Pelo menos até ao limite a que chegámos hoje. Mas em termos de argumentação, penso que é legítimo dizer que uma democracia moderna — por exemplo, a Islândia! — está mais próxima do ideal cristão do «Reino de Deus» do que a sociedade feudal da Idade Média, em que toda a gente era praticante cristão (menos na Islândia, que ainda tem religiões pagãs como religiões oficiais :) ). Sendo assim, o papel da «crença no sobrenatural» pode e deve ser questionado: serve, afinal de contas, para alguma coisa? Os factos apontam para um «não».
EliminarPodemos (e devemos) no entanto aceitar o argumento de que certas religiões (ou apologistas das mesmas) poderão dizer que a visão final para a sociedade como um todo é muito bonita, mas que, até lá se chegar, deveremos olhar para os resultados individuais. Por outras palavras, analisar as diferenças de comportamento entre os seguidores de certa religião, comparando-os com os restantes.
ResponderEliminarRegra geral, o que podemos ver é que pelo menos entre os «não praticantes» (que compõem a maioria dos cristãos na Europa — cerca de 90%), não há uma substancial diferença. Não são mais ricos, nem mais bonitos que os outros. Mas mais importante do que isso, têm também depressões como os outros, perdem os empregos tal como os outros, chateiam-se com a família e com os amigos como os outros, e apesar de «pregarem» a tolerância pelo próximo, têm tanto prazer a embirrar com os vizinhos como os não crentes. Se pegarmos no exemplo muçulmano ainda vemos mais diferenças: quanto menos «moderados» forem, menos funcionais são em termos de sociedade, tendo ódio contra tudo e todos, sendo incapazes de manter um emprego ou uma família, etc. Entre os islâmicos moderados também se vê gente com depressões, frustrações, desgraças, e embirrações com vizinhos. Há diferença? Se há, não é tangível.
Pode-se aqui argumentar que lá porque isto seja verdade para uma maioria que se diz crente, na realidade, são «crentes não praticantes», e isso significa que «não contam». Deve-se, isso sim, analisar os crentes praticantes e ver em que medida é que são socialmente mais funcionais que os crentes não-praticantes e os não-crentes. Bem, é difícil de dizer, pois são poucos :) Pelo tipo de discussões ferozes que aqui vejo, só posso assumir que os que se auto-denominam «crentes» não são praticantes — porque se o fossem, seguiam as indicações dos ensinamentos de Cristo (ou de qualquer outro doutor da igreja) com convicção profunda, e não andavam a insultar ferozmente os não-crentes. Pelo contrário, o que vejo é que, regra geral, são os não-crentes que são um pouco mais moderados e mais controlados e mais funcionais. É evidente que este blogue é apenas uma «amostra» e porventura não será estatisticamente significativa. Da mesma forma, se olhar para a minha lista de amigos pessoais — outra amostra estatisticamente não significativa — com raríssimas excepções que se contam pelos dedos, encontram-se entre os «crentes» (praticantes ou não) as pessoas mais intolerantes, menos altruistas, mais frustradas, mais raivosas, menos controladas que conheço, e não só não têm vergonha nenhuma disso, como usam frequentemente citações de livros sagrados para justificar o seu comportamento. É legítimo, pois, questionar em que é que acreditam. Se (como muitos afirmam) acreditam realmente em Jesus de Nazaré, então porque não colocam os seus sagrados ensinamentos em prática? É um mistério :-) Mas é legítimo de lhes fazer essa pergunta. Normalmente, quando admiramos alguém e os seus valores, é normal que o queiramos imitar. Estranhamente não é isso que fazem a maioria das pessoas que conheço que dizem que, mais do que admirar, veneram Jesus de Nazaré. Mas depois estão-se positivamente nas tintas para o que Jesus de Nazaré propôs como ética e orientação para um comportamento adequado.
Depois deste looooongo parêntesis, volto então ao ponto essencial. «Julgar» o comportamento de X ou Y porque se auto-intitula de «religioso» ou «crente» é pouco significativo, de ponto de vista de amostra estatística. Tanto do campo dos crentes (Torquemada, Khomeini) como dos não-crentes (Hitler, Stalin, Pol Pot) existem indivíduos que se contam entre aqueles que perpetuaram as maiores atrocidades contra a Humanidade. Mas também no campo dos crentes (Francisco de Assis, Madre Teresa de Calcutá, Gandhi) como no dos não-crentes (aqui a lista é muuuuito longa...) se encontram exemplos de pessoas que elevaram o nível da sociedade, através do seu exemplo, tornando-a mais próxima do ideal que defendiam (seja este um ideal religioso, seja este um ideal ateu). Não é a observar os casos individuais que se chega a alguma conclusão.
EliminarJá a análise histórica, numa perspectiva um pouco mais tolstoiana (que bem sei que tem visões erradas quanto à história), mostra que aparentemente o caminho para sociedades que defendam justiça, altruismo, igualdade, tolerância, etc. tem passado por descartar as crenças no sobrenatural, mesmo que seja perfeitamente argumentável que tenham sido «inspiradas» pela visão que certas religiões propuseram para um modelo de sociedade ideal. Estranhamente é ao descartar a crença no sobrenatural, mas ao preservar a essência desse modelo, que se tem chegado a bons resultados. É legítimo perguntar também porquê.
E uma resposta é, infelizmente, ambígua mas compreensível. As religiões com maior sucesso são aquelas que se institucionalizaram, porque a institucionalidade permite, de uma forma mais sistemática, a preservação e conservação dos ensinamentos que se propõem a fazer dos crentes boas pessoas, e da sua sociedade um local mais aprazível para se viver. As religiões que não apostam nas instituições tendem a desaparecer. As religiões mais «ricas» tendem a oferecer um equilíbrio entre os extremos: por exemplo, Jesus de Nazaré é claro quando veio dizer que não queria fundar nenhuma religião, mas que vinha justamente sacudir as fundações da religião institucionalizada do judaísmo dos seus tempos. No entanto, foram as primeiras comunidades cristãs que se auto-organizaram que mantiveram melhor os textos sagrados, e, por isso, resistiram até aos dias de hoje. Periodicamente na história da cristandade surgem «profetas» — no sentido arcaico da palavra, que significava alguém que estava «de fora» da instituição e que a «sacudia» quando se estava a afundar em perversidade e a abandonar os princípios fundamentais. Mas depois os seguidores desses mesmos «profetas» institucionalizaram-se. O exemplo de Francisco de Assis é um exemplo notório: rompeu com a «institucionalização» da Igreja no seu tempo, propondo a ideia radical do voto de pobreza, e dando com toda a gente em doido quando começou a ter seguidores! Mas uma geração mais tarde, os mosteiros franciscanos passaram a fazer parte da Igreja de Roma. Hoje em dia, temos um padre franciscano que teve "reponsabilidades acima de director-geral" no Montepio Geral e que tem uma reforma de 7450 Euros. Não estou aqui a invejar a boa fortuna dele, que se ganha isso é porque de certeza que o merece, mas apenas a usar como exemplo do que acontece quando se institucionaliza a religião: o que passa a ser importante são a auto-perpetuação da instituição, não os valores que defende (o Padre Vítor Melícias fez voto de pobreza, como todos os franciscanos, mas "não se considera rico", nas suas próprias palavras). Também não é um ataque pessoal ao pobre do Padre Melícias, que muito fez na vida e muito mais irá fazer se puder; haverão casos bem piores, e os piores de todos estão bem longe da ICAR.
EliminarMas, mais uma vez, não são os exemplos individuais que contam. Nem os positivos, nem os negativos. Na mais negativa das sociedades surgirá sempre espontaneamente alguém de bem, e o inverso obviamente é verdade — estamos a falar de anomalias estatísticas, que não devem ser usadas para generalismos. Podem ser usadas meramente como exemplos ilustrativos de como, para muitas pessoas, os valores da «sua» religião de pouco ou nada valem, e que, para além de uma argumentação filosófica, não são de todo colocados em prática, pelo que é legítimo questionar para que servem então.
E para terminar, gostava de citar uma prima minha (não é irmã do Ludwig, mas outra prima que temos em comum :) ), que é agnóstica, naturalista e homeopata, e que uma vez, há muitas décadas atrás, me disse: «Não aceito o cristianismo, porque olho para os padres e as freiras e não os vejo como sendo santos; pelo contrário, são pessoas vulgares como as outras. Se fossem santos, eu acreditava na religião que professem e juntava-me a eles.» Ao que tive de responder, apologista: «São meramente humanos que têm a aspiração de santidade; estão a fazer um esforço para se tornarem em santos; se já fossem todos santos, o trabalho teria terminado!». Ela retorquiu: «Ai é? Mas então devem estar a fazer muito pouco esforço, porque não se nota qualquer diferença para as pessoas que não são crentes...»
EliminarNa altura, lembro-me de ter ficado um bocado frustrado com a resposta dela, contra a qual não pude argumentar. Pois se era certo que conhecia muitos e bons exemplos de padres e freiras que faziam um esforço notável para se tornarem em pessoas melhores de acordo com aquilo em que acreditavam, para cada bom exemplo conhecia pelo menos um mau — estatisticamente, pois, o resultado era nulo. E foi um pouco a partir dessa altura que me interroguei sinceramente porque é que as pessoas que se consideravam «crentes», na sua esmagadora maioria, não praticavam aquilo que era a visão da sua religião em que alegadamente «acreditavam». Haviam, certamente, duas respostas possíveis. A primeira, que eu inocentemente rejeitava, era que era tudo uma hipocrisia :) A segunda, que levou algumas décadas de análise mais profunda, é que os métodos propostos para atingir a visão da sua religião pura e simplesmente não funcionavam, e que, ironicamente, era quando se «distorciam um pouco as regras» que se conseguiam obter melhores resultados (um padre franciscano a decidir para onde deve ir o dinheiro dos lucros do Montepio Geral parece conseguir apoiar muito mais gente a ter uma vida melhor do que se vivesse num mosteiro isolado da sociedade, a mendigar para comer). A dúvida manteve-se durante muitos anos sobre se o problema estava no método ou nas pessoas que o procuravam aplicar de forma genuina.
Claro que cheguei à minha própria conclusão, mas essa não a partilho :) — trata-se de algo que cada um tem de aprender a responder por si próprio.
E por hoje já chega de tanta filosofia barata :) Que o silêncio agora seja avassalador, é isso que desejo :)
Luís Miguel,
ResponderEliminarInterrompo o "silêncio avassalador" para dizer que concordo com muito daquilo que escreveste.
Quero fazer uma pequena observação: não podes por Hitler no grupo dos não-crentes. Ou ele era cristão, como sempre disse publicamente que era, ou, como alguns defendem, rejeitava o cristianismo na privacidade considerando-o uma religião decadente, porque efectivamente era pagão.
Mas não só não era descrente, como considerava que a descrença deveria ser perseguida politicamente.
«Claro que cheguei à minha própria conclusão, mas essa não a partilho :) — trata-se de algo que cada um tem de aprender a responder por si próprio.»
Bem, a partilha não impede ninguém de dar as suas respostas. Mas lá deves ter as tuas razões ;)
No geral, para responder à pergunta "a religião é perniciosa" imagino como seria este mundo sem religião. Não que ela nunca tivesse surgido - existe quem alegue que as instituições mais complexas e avanças que permitiram a evolução (tribalismo) da humanidade não teriam surgido sem religião, e por isso é que até existe alguma predisposição genética para a crença religiosa - mas que se tivesse tornado residual há uns séculos. Este mundo seria melhor ou pior?
Ou, mais relevante ainda: se a religião se tornar mais popular, do que se tornaria naturalmente, o mundo seria melhor ou pior?
Para isto importa o que é que é a religião "em si", mas apenas na medida em que isso altera a interacção que ela tem com o comportamento das pessoas.
Por isso, para avaliar o islamismo a este respeito importa menos avaliar o que Maomet escreveu, mas mais a forma como geralmente é vivenciado aquilo que Maomet escreveu.
Agora, como estas avaliações são muito complicadas, mesmo que mantenha este critério em mente, acabo por seguir outra via. Aquilo que o Ludwig considera que é uma das questões fundamentais - a falsidade das ideias associadas ao sobrenatural - eu vejo como uma heurística útil. Uma instituição que tem algo falso no seu núcleo mais facilmente tem um efeito pernicioso que um efeito benéfico.
Não é assim sempre. Se os antropólogos que acreditam que nunca teríamos atingido o tribalismo sem o aparecimento de ideias religiosas estiverem certos, há circunstâncias em que esta heurística não se aplica. E o "homem primitivo" é um bom candidato, para uma dessas situações de excepção.
Mas na sociedade actual, creio que a Verdade é uma heurística tão poderosa para perseguir o bem, que quase merece ser vista como "valor fundamental", como parece que o Ludwig a vê.
Mas um cientista talvez esteja enviesado no sentido de fazer associações positivas ao conceito de Verdade ;)
Fica corrigida a minha ignorância relativamente às convicções religiosas de Hitler, obrigado. Só me recordo da altura em que lhe foi proposto a substituição das religiões cristãs por umas maluquices pré-New Age muito esotéricas que o Hitler proibiu terminantemente. No entanto, deveria ter lido este artigo sobre a religiosidade de Hitler antes de escrever o comentário, e não teria dito tantas barbaridades.
EliminarNão queria partilhar a tal «conclusão» porque é meramente fruto de experiência pessoal: os métodos não funcionam porque são incompletos, embora haja possibilidade de os «completar», mas o resultado já não seria aceite teologicamente. Mas esta questão só pode ser resolvida de forma empírica e de forma pessoal. Lá porque eu afirme isto não é minimamente relevante. O meu objectivo era apenas motivar as pessoas a chegarem às suas próprias conclusões. A argumentação «a minha opinião é melhor que a minha porque sou eu que a afirmo» neste caso de nada serve!
Seja como for, é o resto do teu comentário que acho mais relevante: encontrar as heurísticas que permitam determinar responder à questão que tão lucidamente colocas: um mundo sem religião seria diferente? Em que sentido seria diferente? E seria diferente de uma forma positiva ou de uma forma negativa?
A minha hipótese é que não seria muito diferente, seja qual for a heurística que se aplique, porque todas as instituições — sejam elas religiosas, ideológicas, filosóficas, políticas, ou científicas — têm algures «falsidade» no seu núcleo, e se não houvesse religião tal como a conhecemos, seria «outra coisa qualquer» que provocaria essencialmente os mesmos resultados. A sustentação desta hipótese é feita em base na história, em períodos em que a religião foi activamente suprimida da sociedade (ex. ditaduras ditas comunistas) e/ou largamente ignorada (ex. alguns períodos do Império Romano pré-cristianismo, onde a religião, como hoje em dia em muitos círculos, era basicamente uma questão de «moda» mas não era levada a sério). Não foram sociedades «melhores» por terem menos religião institucionalizada. No entanto, o outro extremo é igualmente verdade: em épocas e locais em que havia mais religião institucionalizada, as sociedades também não foram, de todo, «melhores». Mesmo a noção de que «mais tolerância» e «maior abundância de religiões» (dividir para reinar!) conduz a sociedades «melhores» não é inteiramente verdade — podemos outra vez ir buscar o Império Romano como um exemplo em que a tolerância religiosa era garantida legalmente, mas o Império Romano não tinha uma sociedade «melhor» que a nossa actual, onde existe um grau elevado de tolerância religiosa. É legítimo, no entanto, constatar que um aumento da tolerância religiosa — e da tolerância dos não-religiosos! — tende a criar sociedades mais pacíficas, com menos religiosos, e que são relativamente estáveis durante várias décadas (ou séculos), embora tendam a colapsar com uma ausência de valores morais. São essas as lições que podemos tirar da História.
É certo que muitos movimentos humanistas propõem a substituição dos valores morais tradicionalmente religiosos por outros que são «laicos» — como referi, são inspirados pelos primeiros — mas a dúvida que depois coloco é a partir de que ponto é que estes movimentos «laicos» se acabam por constituir em religiões. Não me parece totalmente implausível que daqui por dois séculos tenhamos religiões baseadas na flutuação quântica como fonte da criação do Universo e no Acaso como primus mobile, em que os «crentes» do futuro recitem o Princípio Antrópico como credo. Já hoje se assiste a afirmações vindas de positivistas que são tão dogmáticas como as de religiosos do passado. Um exemplo típico é o de «acreditar» que o Acaso (a ausência de causa e efeito) é o agente principal em tudo que observamos no Universo. Já não me lembro de qual foi a primeira escola nilista na Índia que defendia coisas muito parecidas, mas sei que foi há uns bons dois mil anos atrás ou mais :) Eram tão religiosos como os outros que preferiam em acreditar em agentes sobrenaturais...
EliminarNão gosto nada da Verdade com V maíusculo, especialmente da ideia em que esta se constitui como um «valor fundamental». Mesmo o Ludwig prefere referir a noção de «verdade-como-work-in-progress» que é o papel da aplicação do método científico — ir refinando a ideia que temos de «verdade» (sempre algo temporário e flexível) à medida que acrescentamos mais e mais conhecimento.
Depois temos uma visão de que, ao ir refinando o conceito de «verdade-como-work-in-progress», um dia chegaremos à tal Verdade — uma explicação racional das coisas tal como elas realmente são. Mas enquanto «não chegamos lá» podemos ir tirando ilações que nos são úteis para construir uma sociedade melhor; ou seja, o esforço para lá chegar é, por si só, bastante útil para a sociedade como um todo, no sentido positivo da coisa.
Eu pessoalmente não estou minimamente convencido de que o trabalho sucessivo da busca da «verdade-como-work-in-progress» com o objectivo de atingir a Verdade alguma vez tenha algum sucesso :) Mas também sou o primeiro a defender que os frutos desse trabalho, mesmo que não se chegue a resultado nenhum, são extremamente benéficos e positivos. Numa perspectiva de engenheiro: quero lá saber se há ou não partículas fundamentais, se entretanto o que já sabemos das partículas não-fundamentais que temos neste momento chega e sobra para construirmos hospitais e produzir medicamentos, melhorar a agricultura, e criar melhores condições para que um número maior de pessoas possa ter uma vida melhor.
Luis Miguel:
ResponderEliminar«A minha hipótese é que não seria muito diferente, seja qual for a heurística que se aplique, porque todas as instituições — sejam elas religiosas, ideológicas, filosóficas, políticas, ou científicas — têm algures «falsidade» no seu núcleo»
Este não me parece um argumento forte, visto que de acordo com esta heurística a falsidade seria como o crime: inevitável que exista algum, mas quanto menor, melhor.
Também não quero entrar por vias muito especulativas, mas comparar o Império Romano com o presente não pode esquecer o desenvolvimento científico e político que aconteceu entretanto.
Se a vida nas comunidades que davam pouca importância à religião era pior que o normal para essa época, isso seria um argumento a teu favor. Mas não me parece que seja esse o caso.
Na incerteza, creio que se justifica aceitar a heurística, mais a mais na sociedade actual, que já deverá saber lidar melhor com a Verdade (com maiúscula apesar do enorme equívoco que ela causou!).
«mas a dúvida que depois coloco é a partir de que ponto é que estes movimentos «laicos» se acabam por constituir em religiões»
No sentido que me estou a referir à palavra religião, terá de existir alguma crença sobrenatural. Se for apenas o dogmatismo e uma série de outras coisas que considero más (e que se poderá argumentar não serem intrínsecas à religião) chamaríamos religião a uma série de ideologias políticas e confundiríamos tudo.
«Um exemplo típico é o de «acreditar» que o Acaso (a ausência de causa e efeito) é o agente principal em tudo que observamos no Universo.»
Constantemente vejo crentes religiosos a apontarem tais crenças aos ateus, mas nunca conheci ninguém que as professasse.
«Não gosto nada da Verdade com V maíusculo, especialmente da ideia em que esta se constitui como um «valor fundamental». Mesmo o Ludwig prefere referir a noção de «verdade-como-work-in-progress» que é o papel da aplicação do método científico — ir refinando a ideia que temos de «verdade» (sempre algo temporário e flexível) à medida que acrescentamos mais e mais conhecimento.»
Isto confunde duas questões completamente diferentes - uma ética e uma epistemológica.
Quanto à questão epistemológica estamos todos os três de acordo - não se justificam certezas absolutas. Apenas certezas relativas e revogáveis.
Aquilo que pensamos ser verdade pode sempre ser um equívoco, e a ciência é o «work-in-progress», que nunca pode chegar a uma verdade absoluta e irrevogável.
Isto não quer dizer que a "Verdade" não exista. Nós é que nunca temos um acesso directo, por isso, mesmo que acreditemos em algo verdadeiro, nunca poderemos ter uma certeza absoluta de que é esse o caso.
Aliás, é porque a "Verdade" existe que devemos rejeitar certezas absolutas: de outra forma não haveria mal em abraçar certezas absolutas, pois não correríamos o risco de estar equivocados. Sem uma "Verdade" a sério, não podemos falar em equívocos a sério.
Posto isto, há a questão ética.
É bom conhecer a Verdade?
É fácil conceber situações em que não. Mas a nossa intuição - e se calhar mais ainda a das pessoas que se sentem atraídas pela carreira científica - diz-nos que sim.
A razão para isto, a meu ver, deve-se ao facto da "Verdade" ser uma poderosa heurística para o bem. Geralmente coisas boas resultam de se conhecer a verdade, e mesmo as consequências aparentemente boas da mentira trazem frequentemente associadas consequências negativas mais subtis, mas não menos importantes. A nossa intuição tem uma consciência tão profunda e visceral disto, que muitas vezes pensamos que o conhecer a Verdade é um bem em si, um valor fundamental.
Com isto, discordo.
Até prova em contrário, conhecer a Verdade é bom: mas para cada caso tenho de estar disponível para considerar que tal prova pode surgir.
Isto quer dizer que eu estou disponível para considerar que a religião pode ser benéfica, mesmo que seja baseada em falsidades. Simplesmente nunca encarei argumentos muito persuasivos a este respeito, e conheço uma série de outros indícios em sentido contrário.