quarta-feira, janeiro 11, 2012

Ciência, ideologia e economia.

A Priscila Rêgo chamou-me a atenção para uma discussão no Douta Ignorância sobre a objectividade (ou falta dela) da ciência e, em particular, da economia (1). A conversa toca vários problemas que costumo trazer para aqui.

Um deles é a divisão “das ciências” em naturais e humanas, como se o objectivo não fosse sempre o de perceber o que se passa. Ciência só há uma. É o processo de gerar, testar, seleccionar e melhorar descrições da realidade pela sua correspondência ao que pretendem descrever. Descrever coisas que não são realidade não é ciência. Deuses, demónios ou o Homem Aranha, por exemplo. Também não é ciência alegar que se descreve a realidade sem aferir se a descrição corresponde ao descrito. É o caso de Lysenko, dos criacionistas e de quem diz saber como são os deuses ou demónios. Mas tentar perceber como as coisas são, tendo o cuidado de testar se são mesmo como julgamos, é ciência, seja com telescópios, medidores de pH ou preços e taxas de juro.

Roubando dois exemplos à Priscila, a lei dos gases perfeitos diz que o produto da pressão pelo volume de um gás é proporcional ao produto da temperatura pelo número de moléculas; e a função de consumo de Keynes diz que o consumo total é igual ao consumo autónomo mais o produto do rendimento pela propensão marginal de consumo. Estas afirmações são ambas científicas. É certo que Keynes assume que os consumidores ignoram expectativas de rendimentos futuros, o que não se ajusta perfeitamente à realidade. Mas a lei dos gases perfeitos também assume que as moléculas de gás são partículas pontuais que não interagem, e isso também não é verdade. Ainda assim, desde que se compreenda as limitações e condições de aplicabilidade destas relações, e não se descure as margens de erro associadas, é tão científico descrever a procura de latas de feijão com a expressão de Keynes como descrever a pressão do pneu com a lei dos gases perfeitos.

Outro problema é ignorar essas condições e margens de erro. Se modelarmos o custo dos transportes públicos considerando apenas o que se paga em bilhetes e impostos, será de prever que a privatização é mais “eficiente”, no sentido de reduzir o total pago pelo mesmo serviço. Se contabilizarmos também o impacto económico da privatização na poluição, mobilidade dos trabalhadores e rendimento disponível, o resultado pode ser diferente e a incerteza aumenta. E se quisermos avaliar custos e benefícios em utilidade em vez de em euros temos de considerar também que o dinheiro não vale o mesmo para todos. É um erro comum assumir que dinheiro e utilidade são a mesma coisa.

Se uma pessoa acha que uma cadeira vale 38 laranjas e outra diz que, para si, vale 29 cenouras, não sabemos quem dá mais valor à cadeira porque não sabemos que valor dão a cenouras e laranjas. Mas se uma avalia a cadeira em 40€ e a outra em 30€, a tendência é de pronunciar que a cadeira vale mais para a primeira pessoa. No entanto, também não sabemos se os 40€ da primeira valem, para si, mais do que os 30€ valem para a outra. Se a primeira ganha 10,000€ por mês, por exemplo, e a outra só 100€, o mais plausível é que a segunda tenha um apreço muito maior pela cadeira, apesar de não poder dar tanto dinheiro.

Enquanto ciência, a economia não ignora estes factores. Já desde Bernoulli que se sabe que a utilidade do dinheiro não corresponde directamente ao valor nominal. Mas se já é difícil quantificar o impacto económico da poluição ou da desigualdade de rendimentos, ainda mais difícil é quantificar a utilidade de algo como viver numa sociedade justa, por exemplo. A tentação é cortar a direito, ignorar estes factores e moldar tudo a uma ideologia. Por exemplo, que é melhor privatizar os transportes públicos porque o sector privado é mais eficiente, e pronto.

O problema não é a ideologia, até porque não se pode ter valores sem ideologia e, sem valores, não se pode tomar decisões. O problema é baralhar a descrição de como as coisas são com a expressão de como queremos que sejam. Porque, enquanto que aceitar ou rejeitar uma descrição da realidade deve depender dos dados e não de opiniões, exigindo conhecimentos sobre a matéria em causa, uma ideologia pode ser legitimamente rejeitada apenas em função dos valores de cada um. A aldrabice que se faz com a economia, especialmente na política, é apresentar premissas ideológicas como se fossem factos económicos, dando a impressão de que só os entendidos as podem avaliar. Por exemplo, as medidas de austeridade são apresentadas como uma necessidade económica objectiva quando, na realidade, derivam apenas da opção de poupar os ricos sacrificando os pobres. Economicamente, seria possível resolver os problemas da dívida pública distribuindo o esforço de forma mais equitativa. Mas se a opção ideológica por trás da austeridade fosse declarada de forma clara enfrentaria a objecção imediata da maioria dos eleitores. Daí a necessidade da aldrabice.

A economia é ciência. O que acontece é que, nas mãos dos políticos, deixa de ser uma forma objectiva de esclarecer aspectos da realidade e torna-se num truque para esconder juízos de valor questionáveis e motivações egoístas.

1- Comentários no post Ciência e Ideologia.

20 comentários:

  1. Gosto do post, mas discordo disto:

    «Se modelarmos o custo dos transportes públicos considerando apenas o que se paga em bilhetes e impostos, será de prever que a privatização é mais "eficiente", no sentido de reduzir o total pago pelo mesmo serviço. »


    Não creio que seja verdade.
    Grande parte dos transportes públicos corresponde a «monopólios naturais» (a rede de metro ou comboio, por exemplo) e nestes, mesmo no sentido mais restritivo, existe ineficiência se o detentor, monopolista, procurar maximizar o seu lucro. A ineficiência própria dos monopólios.

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  2. 1) Dizer que economia é ciência vale pouco diante das correntes económicas, mercantilistas, clássicas, neo-clássicas, marxistas, keynesianas, hayekianas, schumpeterianas, neo-keynesianas, neo-marxistas, coaseanas, marginalistas, monetaristas, monetaristas de mercado, austríacas, etc., etc., Todos os economistas têm os mesmos dados económicos disponíveis. E no entanto, interpretam-nos de forma diferente.


    2) A evolução também não é ciência, pelos critérios do Ludwig, porque pretende descrever a origem acidental da vida e a transformação de espécies menos complexas noutras diferentes e mais complexas, sendo que nem uma nem outra foram observadas no terreno ou em laboratório.

    Qual é então problema aqui? Curiosamente, a resposta é dada pelo Ludwig: "o problema é baralhar a descrição de como as coisas são (v.g. gaivotas dão gaivotas) com a expressão de como queremos que sejam (v.g. bactérias dão bacterologistas)"

    O Ludwig até sabe umas coisas. Só erra na aplicação prática.

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  3. João Vasco,

    Sim, em alguns tipos de transporte colectivo há monopólios naturais, e aí a coisa é diferente. Mas noutros, como autocarros e barcos, já pode haver mais concorrência. Mas o importante aqui não era discutir os detalhes do modelo descritivo mas apontar que, para a decisão, os valores também são fundamentais. Infelizmente, o que se faz com a economia é esconder esses valores atrás dos detalhes do modelo que se escolheu.

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  4. Jónatas,

    Esse "interpretar" dos dados consiste em criar modelos que descrevam o sistema e se adeqúem aos dados. Não há mal nenhum em criar muitos modelos diferentes. Isso até é bom. O que a ciência exige é que depois se avalie os modelos pela sua adequação aos dados. No caso da economia, muitas vezes é difícil escolher porque os dados são insuficientes para determinar quais os modelos mais correctos. Mas no caso da teoria da evolução e as superstições criacionistas os dados são mais que suficientes para ver que estas últimas são treta.

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  5. Ludwig:

    Sei que não era esse o ponto fundamental. Com o ponto fundamental concordo, por isso é que me foquei nessa discordância de detalhe, que pelos vistos não o é :)

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  6. O blogger alterou o sistema de comentários... acho que vou ter de actualizar o script. Mas, ano novo vida nova, a ver se o Jónatas agora começa a comentar mais dentro dos tópicos :)

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  8. O problema é confundir-se economia com... 'economia'.

    Uma, a ciência, diz respeito aos modelos que, como o Ludwig diz, se adequam sob determinados pressupostos ou contextos aos dados/observações. Esta validade/adequação é até severamente limitada pois é, no mínimo, complicado, para não dizer impossível, realizar experiências controladas. Valham-nos os dados históricos que vamos adquirindo, algumas experiências no reino animal e experiências idealizadas e de alcance bastante restrito. É um mundo complexo onde as variáveis são aos milhares e as interdependências entre elas um autêntico quebra-cabeças. Também lhe chamam realidade...

    Outra, a política, que se faz passar por científica (porque é que será?) e que nada mais é que uma hierarquização de valores. Estes são uma escolha (maioritariamente ideológica, infelizmente) e de ciência pouco têm.

    No senso comum, economia e 'economia' têm o mesmo sentido, o que só pode dar confusão. Nem é de estranhar que existam tantos políticos que se digam economistas, ou que percebem do assunto, mas que nunca praticaram a primeira nem ideia têm do que é!

    O que é preciso é que as pessoas estejam conscientes da diferença e identificar o uso para não caírem em fatalismos e patranhas.

    Há um livrito que li recentemente que explica isto mais detalhadamente e muito melhor: http://www.ffms.pt/ensaio/40/economia-moral-e-politica

    xovan

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  9. "Também não é ciência alegar que se descreve a realidade sem aferir se a descrição corresponde ao descrito"

    Por exemplo a existência de deuses, que não é auferível logo a teologia não pode ser ciência, se não o é, é aldrabice porque afirma o que não prova!

    Tivesse-mos ficado por aqui e evitava-se muita coisa, uma idade média e muitas mortes e sofrimento pelo meio.

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  10. A Economia, tal como a História, não é uma ciência. Se fosse, não seriam tão discutidos os seus autores como as suas leis.
    E é muito menos perigoso dar como certa a descrição de algo que não é real do que a descrição errada do que o é. Por isso o cepticismo tem que desamparar a loja e dedicar-se ao que interessa - duvidar de quem se reclama porta-voz da ciência.

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  11. Este comentário foi removido pelo autor.

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  12. Nuno Gaspar:

    "A Economia, tal como a História, não é uma ciência. Se fosse, não seriam tão discutidos os seus autores como as suas leis. "

    Na ciência, a discussão aberta é uma das garantes da sua evolução. É mesmo parte do método (revisão por juri, peer-review, verificação independente, etc.) e se te dedicares à procura vais encontrar muitos artigos como resposta a outros e severas criticas a cientistas que não se apresentem na discussão cientifica publica. Não é por aí que vais lá.

    "E é muito menos perigoso dar como certa a descrição de algo que não é real do que a descrição errada do que o é"

    Creio que esta frase é contraditória. Mas se te referes a preferir o erro tipo I a um erro tipo II, pode ser verdade em alguns casos mas não em todos. Tens de escolher isso ad-hoc e justificar para cada caso. Estamos naturalmente inclinados para isso quando se trata da nossa saúde por exemplo. Mas sabemos que o erro tipo I é um maior impecilho no desenvolvimento do conhecimento humano, e umas das coisas que a ciência foi capaz de contornar e que lhe deu tanto sucesso. Primeiro com o verificacionismo e recentemente com o falsificacionismo refinado por Lakatos em campo de investigação.

    "Por isso o cepticismo tem que desamparar a loja e dedicar-se ao que interessa - duvidar de quem se reclama porta-voz da ciência."

    Isso é um bocado redutor para o cepticismo. Mas claro que esses estão incluidos, não é preciso é concluir que todos os que dizem isso estão enganados. O Ludwig é um bom divulgador de ciência, mesmo que eu esteja em desacordo com ele muitas vezes (e ele comigo).

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  13. Nuno Gaspar:

    Talves tenha sido muito duro na interpretação que fiz do que disseste. Se te referes à ausência de consensos poderás ter mais razão. Mas se era isso que querias dizer nota que há muita coisa que é consensual na economia, até mesmo a incompletude dos modelos. O que não é ciencia é sobretudo a parte politizada onde se pretendem esconder as duvidas e assumpções básicas. Há uma parte intermédia, o meio termo, e se te referires a isso estou de acordo que não é ciencia, mas há coisas que são. E de uma ponta à outra é tudo naturalista.

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  14. "No caso da economia, muitas vezes é difícil escolher porque os dados são insuficientes para determinar quais os modelos mais correctos."

    É esse o problema. Em muitos casos na economia não há uma distinção entre modelos do ponto de vista cientifico. A ciência é a melhor explicação mas rejeita melhores explicações que não sejam capazes de se submeter a um programa de investigação progressivo, e na economia isso fica-se muitas vezes pela metade. A economia é sim uma disciplina 100% naturalista, tal como a história em que nem tudo é ciência. Uma boa parte no entanto é.

    Sinceramente até agora tinha ligado pouco à economia e estou desapontado com a facilidade com que se dizem coisas como se fossem altamente correctas. Não quero dizer que não seja uma ciencia nos alicerces. Mas é um edificio que está menos construido que a fisica e a biologia... Tem muito ruido.

    Eu também gostava de por os ricos a pagar mais a crise. Mas a questão é como consegues isso? Quando as empresas podem sair para outros países? Quando as pessoas podem ter salarios de 1 dolar por ano e saber-se que são donas de imperios tecnológicos? Fechamos as fronteiras e impomos uma moeda nova? Eu sei que se podia fazer melhor e que portugal é dos países mais protectores da riqueza que existe, já que somos dos mais desiguais e até na américa os ricos pagam mais impostos que os nossos ricos ca, mas daí até não ser preciso austeridade vai um grande passo...

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  15. Nuno Gaspar, a História e a Economia são consideradas áreas científicas e as dúvidas e dicussões são características da Ciência.
    Aliás, segundo a classificação de Rudolf Carnap, a História e Economia fazem parte das ciências sociais (as outras são as ciências formais e as ciências naturais) e ambos os ramos são estudados em faculdades de ciências, ciências sociais, ciências económicas, ...

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  16. JC:

    Eu gosto muito do xkcd (vi as tiras do princípio até à mais recente), mas discordo dessa tira, porque mesmo que a pessoa soubesse toda a matemática e tivesse uma capacidade de cálculo infinita, não poderia deduzir a física. Já tudo o resto tem a relação descrita: sabendo toda a física e tendo capacidade de cálculo infinita seria possível deduzir a química, e por aí fora...

    E, já que estamos a falar em economia, eles bem poderiam ter posto o sociólogo a dizer que a economia é apenas um aspecto (referente à gestão dos recursos) da sociologia (relações sociais entre grandes grupos)... E quem diz economia diz ciência política, etc...

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  17. Em relação à tira da xkcd, do qual também sou fã, também não concordo com ela, por razões paralelas às do João Vasco. A matemática, para mim, não é uma ciência, apenas permite a ciência. É a linguagem da ciência. Se olharmos só para a matemática, tudo o que é lógico é imediatamente possível matematicamente. A realidade impõe restricções que vão além da lógica, nomeadamente restrições físicas, mas também biológicas, históricas e por aí fora. E sim , provavelmente podíamos colocar também na tira a economia, a montante da sociologia.

    Nem percebo porque a economia não pode ser considerada uma ciência, salvaguardadas as confusões com o termo comum que abarca geralmente considerações ideológicas como se estas tivessem algo de cientifíco.

    xovan

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  18. 1º lysenko descobriu o princípio da vernalização (temperaturas baixas como indutoras de germinação frutificação...mação etc

    2ºhistória e economia não são ciências no strictu sensus (não são exactas)
    o método não lhes achega

    os seus modelos histórico-económicos ou histérico-económicos assim como os modelos sociológicos não são reproduzíveis

    nas mesmas situações a emissão de assignats é dependente da gulibilidade dos krippahls que os compram...(resumindo previsibilidade nula...

    uma caldeira de vapor

    ou uma serpentina de freón ou CFC's vários funciona segundo a sua expressão matemática

    o movimento browniano (das escoteiras com brownies) é uma função da desordem universal

    já o keynes e as suas leys funcionam de modo diferente no frigorífico e na locomotiva a vapor...(ou na gronelândia e no Haiti...

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  19. João,
    "O Ludwig é um bom divulgador de ciência"

    Ah sim? Da qual? Da que trata por legítimas as proposições que lhe são convenientes e como ideologias aquelas em que não vê interesse?
    Já to disse: quem dá mostras de ignorar Taleb deveria ser proibido de leccionar nas universidade.

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