Palavra puxa palavra.
No site da Sociedade Portuguesa de Autores está uma lista de «Mais de uma centena de autores e artistas [que] exigem nova lei da Cópia Privada». No abaixo assinado, pessoas que contam receber «remunerações sobre os suportes, aparelhos e dispositivos de armazenamento digitais que são actualmente, ou venham a ser no futuro, utilizados para a cópia privada das obras protegidas»(1) indicam que, realmente, não se importam de meter mais algum ao bolso. Não me surpreende. O que acho curioso é o termo, “remunerações”.
O Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, ainda vigente, estipula (Art. 82º) uma «Compensação devida pela reprodução ou gravação de obras» para «beneficiar os autores, os artistas, intérpretes [etc..]»(2). Esta noção de beneficiar os criadores é mais vaga do que a “compensação equitativa” que surge no PJL 118/XII. Seguindo uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, a “compensação equitativa” implica que o autor seja compensado em proporção ao dano estimado que a cópia privada lhe cause (3), enquanto que uma compensação para beneficiar os autores pode não exigir ligação clara com o prejuízo causado. Foi esse requisito que levou o supremo tribunal espanhol, em Março do ano passado, a anular a lei espanhola da cópia privada, que aplicava a taxa sem distinguir entre o cidadão privado e empresas ou instituições que não usufruíssem do direito à cópia privada (4). O PJL 118/XII, pelo menos na versão que conheço(5), tem precisamente o mesmo problema. Universidades, bancos, empresas de telecomunicações, o que calhe, é tudo presumível copiador de obras protegidas.
A declaração no abaixo-assinado da SPA é subtilmente, mas fundamentalmente, diferente do estipulado no PJL 118/XII. Em vez de pedirem uma compensação equitativa pelo prejuízo da cópia privada, e proporcional a este, exigem uma remuneração pelas cópias que outros fazem. O problema é que só deve remuneração quem se compromete a pagar. Quem já deu moedas aos arrumas percebe que pagar por algo que não se encomendou está mais perto da extorsão do que da remuneração. Não há dever de remunerar o autor pelas cópias que fazemos se nem lhe devemos pelo trabalho que teve nem lhe causamos trabalho adicional. No entanto, esta ideia encaixa no chavão popular, mas falso, de que o artista merece remuneração simplesmente por se lembrar de fazer algo, mesmo que ninguém lho peça. Melhor ainda, evita ter de demonstrar que a cópia privada prejudica os autores portugueses.
Mesmo que haja muita cópia privada, não autorizada, de conteúdo protegido por direitos de autor, não me parece que autores como Abel Neves, Adolfo Morais de Macedo, Adriana Duarte, Aldina Duarte e afins ocupem uma parte significativa do armazenamento digital, fora aquele que os próprios tenham comprado. E ainda menos plausível me parece que a venda deste equipamento os prejudique.
Haver muitos leitores de mp3, vídeo ou livros electrónicos dá azo a muita cópia sem autorização, mas aumenta também o mercado onde o autor pode vender o seu trabalho. Apesar da queda das vendas de rodelas de plástico, e consequente pânico dos intermediários copiodependentes, os artistas têm beneficiado significativamente do alargamento do mercado. Entre espectáculos, toques de telemóvel, promoção fácil e vendas digitais, ganham mais agora do que ganhavam no final do século XX (6).
O que sugere um ajuste diferente. A legislação assenta na premissa de que a proliferação de redes e suportes digitais prejudica o artista. Mas tudo indica o contrário. Há muito mais cópia, mas também há muito mais mercado, muito mais ideias e muito menos custos de produção. Feitas as contas, o artista sai a ganhar. Daí que, se alguma remuneração é devida pelo uso de suportes digitais e cópia privada, será aos cidadãos privados pelo trabalho de copiar, partilhar e promover as obras dos artistas. Ou seja, devia ser a AGECOP e a SPA a subsidiar a venda de discos rígidos e cartões de memória, em vez do contrário.
Mas, por muito evidente que seja o benefício desta tecnologia para todo o sector cultural, nunca a SPA e afins irão admitir que os autores e artistas ficam a ganhar. Porque o objectivo não é defender direitos, lutar pela justiça ou incentivar a criatividade. O que motiva esta lei é simplesmente a ganância. Querem mais dinheiro, e pronto. Por isso é que tanto falam em remuneração como em compensação equitativa, benefício, «receita fundamental e legítima»(7) ou o que calhar, sempre sem justificação adequada para a pretensão de que devemos dinheiro à Anamar, ao André Letria ou ao André Sardet só porque comprámos um disco rígido ou uma impressora.
Para terminar, só mais um exemplo desta aldrabice. Esta legislação devia ser uma transposição das directivas europeias sobre a cópia privada. Mas, enquanto que o acórdão do tribunal da União Europeia justifica a aplicação da taxa aos vendedores do equipamento por poderem facilmente passar esse custo para o consumidor privado, a Canavilhas diz que «Não são os cidadãos portugueses que devem pagar esta taxa. Esta não se devia notar no preço final do produto»(7). Se a dívida do comprador para com os autores já é misteriosa, ainda menos se percebe que o vendedor de cartões de memória tenha de remunerar o Antonino Solmer, o António Valdemar ou o António Avelar Pinho* pelo que quer que seja que eles fizeram.
* Estes nomes foram copiados por ordem alfabética da lista da SPA. Pessoalmente, não tenho nada contra estas pessoas, a grande maioria das quais nem faço ideia de quem sejam. Mas estou convencido de que lhes devo tanto dinheiro quanto o que elas me devem a mim...
1- SPA, Abaixo-assinado.
2- Disponível aqui em pdf.
3- Curia, Judgement of the Court (Third Chamber), case C-467/08, 21 October 2010
4- Acórdão aqui em pdf, via Kluwer copyright blog
5- Fu-Bar, Proposta (do PS) de Lei da Cópia Privada
6- Torrentfreak, Artists Make More Money in File-Sharing Age Than Before It
7- Expresso, Taxa de discos rígidos, telemóveis e pens deve ser paga pelos comerciantes
ó kamarada von kripau...veja se fala sobre o copy wright (brothers) da bible...sanão nem o panão aparece...
ResponderEliminarNão se trata de indemnizar o autor pelo dano que a cópia do seu trabalho lhe tenha causado, mas sim de permitir-lhe que participe nos benefícios obtidos pela cópia de algo que ele criou. Isso é justo.
ResponderEliminarNão se pode semear o caos, a predação e o esbulho no mundo da criação intelectual.
Para além de isso dar azo a uma cultura de oportunismo, parasitismo, desonestidade, plágio, etc.,com graves custos morais e intelectuais, a mesma causa prejuízos de milhões às indústrias criadoras e inventoras, com graves custos patrimoniais.
P.S. Off topic
Parece que criacionistas e evolucionistas têm um novo concorrente no "mercado" das origens
Gostava de saber o que é que a Ana Zanatti fez que alguém queira ter/copiar... será que muitos destes "artistas" fazem ideia do que estão a apoiar?
ResponderEliminarNoutro ângulo, imagino que a esmagadora maioria da cópia privada incida sobre conteúdos estrangeiros. Será que a SPA planeia remunerar os "artistas" estrangeiros "vítimas" de tal injúria?
Imagino que se a IFPI/RIAA/MPAA vierem bater à porta da SPA a pedir a fatia do bolo que lhes é supostamente devida, que de repente estes mudem de ideias em relação à defesa dos "artistas".
AF,
ResponderEliminarHá pelo menos um caso em que a SPA colocou na lista alguém que não pediu para lá estar.
Seja como for, a pretensão principal da SPA é tapar o buraco de vários milhões que tem neste momento. O que, só por si, já diz bastante: uma organização cujas funções são apenas recolher dinheiro, ficar com uma parte e distribuir o resto, ter dívidas de vários milhões de euros é indicativo de que alguém saiu bem servido...
Jónatas,
ResponderEliminar«Não se trata de indemnizar o autor pelo dano que a cópia do seu trabalho lhe tenha causado, mas sim de permitir-lhe que participe nos benefícios obtidos pela cópia de algo que ele criou. Isso é justo.»
Permitir, é justo. Obrigar os outros, nem por isso. O autor deve ter a liberdade de beneficiar do seu trabalho na medida em que deve ser livre de negociar as contrapartidas pelo trabalho que vai fazer. Como aliás se aplica a qualquer profissional. Mas o simples facto de, depois do trabalho feito, alguém beneficiar não deve criar a ninguém a obrigação de remunerar o autor. Por exemplo, se daqui a uns anos um aluno meu ou teu ganhar dinheiro com base no que aprendeu no curso, isso não o obriga a pagar-nos uma taxa, porque entretanto nós já recebemos aquilo que nos tinham prometido (menos dois meses e 8%, mas isso já é outra conversa...)
Além disso, a noção legal de compensação equitativa nas directivas europeias sobre a cópia privada não é acerca de merecer partilhar dos benefícios mas é explicitamente uma compensação por prejuízos causados, e que nem sequer é devida se o prejuízo for muito pequeno.
Ludwig,
ResponderEliminarJá não pode mais dizer que milagres não existem. O Jónatas fez um comentário dentro do texto :). O mar se abriu aqui no seu blog hehehe
Aleluia!
Hummm ... só pra dizer que andam por aí vários AFs, pelos vistos!
ResponderEliminarMas vá, ao menos calhou haver mais um AF que me parece ser uma pessoa inteligente e honesta, a julgar pelo comentário! Bem bom, podia ter saído um troll bíblico ou coisa parecida :D
Quanto ao assunto principal, tenho acompanhado os posts aqui e em vários outros sítios, como o blog da jonasnuts. Não tenho comentado muito. Dá-me ... azia ... e quando penso em comentar, só me apetece disparatar. Por isso mais vale estar quietinho.
Keep up the good work, Ludwig!
Uma coisa que me revolta é a SPA exigir que um café pague por ter um aparelho de rádio. Em primeiro lugar, como é que a SPA faz as contas relativamente a que artistas devem receber parte do que esse café paga, e quanto? Haverá por acaso algum agente da SPA em cada café, todos os dias (a toda a hora) a registar que músicas passaram? Então e se o meu café estiver sempre na Antena 2, onde a vasta maioria dos autores já morreu há muito e as obras entraram no domínio público? Em segundo lugar, é um contra-senso, pois falam desses pagamentos como se de «indemnizações» fossem pela passagem da música de este ou aquele — ao mesmo tempo que estão sempre a queixar-se que as rádios portuguesas passam pouco música nacional, e que isso prejudica os nossos artistas! Então passar música de Fulano no rádio do meu café é um esbulho a esse artista ou é uma promoção a Fulano? É que, se é uma promoção, então chegou a minha vez de exigir a merecida remuneração pelo serviço que o meu café lhes prestas!
ResponderEliminar"Para além de isso dar azo a uma cultura de oportunismo, parasitismo, desonestidade, plágio, etc.,com graves custos morais e intelectuais, a mesma causa prejuízos de milhões às indústrias criadoras e inventoras, com graves custos patrimoniais. "
ResponderEliminarOra aqui está o ponto em que eles pegam para fazer leis destas, mas que na verdade não é nada como aqui se descreve. Atrevo-me a dizer que estamos melhor sem este tipo de leis no que toca a custos intelectuais e explico porquê:
Se eu escrever um livro, certamente vou querer dinheiro por ele, mas isso não faz com que tenha mais valor intelectual, é bom para mim que dá-me jeito o dinheiro, mas a nível intelectual é muito melhor haver o livro de graça em PDF pois 10 vezes mais pessoas o podem ler e tirar dele inspiração.
O mesmo se aplica ao software, se eu fizer um software que permite analisar terrenos e prever riscos de derrocadas com um botão dá-me jeito que este seja pago, mas ao mundo dá mais jeito que ele seja de graça para que menos pessoas estejam em risco de construir a sua casa em zonas de perigo.
Isto torna automaticamente o dever moral para o lado da cópia grátis ao contrário do que se poderia pensar pois o estado deve zelar pelo interesse dos muitos e não do Nuno, mesmo que eu não receba tanto como gostava. O problema é o estado não ver isto e continuar a achar que temos que pagar OBRIGATORIAMENTE (pois quem quer pagar, paga, eu por exemplo livros costumo comprar) a quem produz.
Defender a moralidade e intelectualidade é bonito quando se pensa na parte limitada que é o autor, quando se pensa no mundo em geral a imagem muda e é capaz de ser por isso que á tanta confusão onde não precisava.
a SPA precisa do dinheiro para atribuir a massões relevantes do mundo literato y sus amigos um tal de João Soares filho neto e potencial avô de outros soares ligados ao mundo editorial desde a falida distribuidora Diglivro e antes disso
ResponderEliminarlançou juntamente com um pateta alegre e outro mais triste uma obra colossal de poemas ilustrados que se venderam mal e agora estão em Alfragide a 5 euros por cópia...
sem o dinheiro dos cafés e dos elevadores musicais a SPA não tinha dinheiro para atribuir a massões massudos et ses amis profanos
a aliteracia é cara alguém tem que pagar para analfabrutizar o povo
(já krippahl fá-lo de graça ia pôri pró-bono...mas é a modos que pró-malus
maleus maleficarum von kripau
Muito bem exposto aqui: http://mindboosternoori.blogspot.com/2012/01/e-um-jogo-carta-ao-adolfo-luxuria.html
ResponderEliminarInclui resposta do visado.
@AF, eu era o outro AF :)