Fé e razão.
Um problema nesta discussão é o brotar espontâneo de expressões como «a fé é o princípio activo da razão e da racionalidade», ou «uma visão do mundo servida por uma razão que não se esgota na compreensão», ou «A racionalidade está muito mais no conforto intelectual que a expressão gera», para dar apenas alguns exemplos recentes (1), cujo contributo é apenas revelar uma enorme confusão acerca do significado do termo. Na esperança de remediar a situação, vou tentar esclarecer o que eu quero dizer com “razão”, desafiando quem discordar a ser também claro e explícito acerca do que quer dizer.
A razão é a capacidade de justificar uma conclusão de uma forma independente da preferência por qualquer premissa inicial. Um exemplo: a senhora está grávida, diz que é virgem, e ocorre-nos que pode ser virgem, que pode estar enganada, ou pode estar a mentir. Usar a razão, neste caso, é seguir as evidências e linhas de raciocínio necessárias para chegar à mesma conclusão seja qual for a alternativa que inicialmente nos pareça mais aceitável. Outro exemplo: um livro conta que uma senhora engravidou virgem, e duas pessoas discordam da veracidade do relato. Usar a razão, neste caso, será seguir as evidências e linhas de raciocínio que levem ambos à mesma conclusão apesar dessa divergência inicial.
Neste sentido, “razão” e “racionalidade” estão em linha com a ideia de dar e exigir razões para justificar uma posição mesmo a quem comece por discordar dela, e com a ideia de formar opiniões sem ficar preso a preconceitos. É isto que esperamos de uma pessoa racional. Que seja capaz de encontrar o caminho para a conclusão certa seja qual for o seu ponto de partida.
Isto é claramente incompatível com a fé porque é precisamente o contrário. A fé considera um ponto de partida como determinante de tudo o resto. Se duas pessoas têm fé em proposições contraditórias, enquanto tiverem fé nenhuma vai conseguir demover a outra. A fé exige que o fiel suspenda a capacidade de se desviar do ponto de partida, de encontrar caminhos para algo que não dependa da sua crença ou sequer de considerar pontos de partida alternativos. Isso seria infidelidade e heresia.
Esta coisa da heresia ilustra bem a incompatibilidade entre fé e razão. À luz da razão, o próprio conceito de heresia é um disparate. Se o objectivo é desvendar o caminho para a conclusão certa não podemos bloquear passagens com tabus arbitrários. A fé, em contraste, precisa de condenar como pecado qualquer alternativa, quer para evitar a inconveniência de se justificar, quer para disfarçar preconceitos com falsas virtudes.
Em resposta a este post, já prevejo o papaguear costumeiro de que a verdade não contradiz a verdade, que fé e a razão andam de mãos dadas, que muitos homens racionais tinham fé, transcendente para aqui, mistério para ali e essas coisas. Tudo sem justificar qualquer alegação ou sequer explicar o que querem dizer com esses termos. Entretanto, persiste o problema fundamental: o termo “fé”, sejam quais forem os detalhes da definição, implica um apego idealmente inabalável a uma premissa inicial. Mas “razão”, sob qualquer definição que preserve o uso comum, implica agilidade mental para corrigir erros e encontrar o caminho certo seja de que ponto se comece. Por muito que tentem esconder este problema com alegações confusas, quem comece a procurar a verdade absolutamente convicto de que já a encontrou, além de presunçoso estará a ser irracional.
1- Comentários em Fronteiras, 2012: comentário.
"O diálogo com não-crentes é impossível a menos que o crente ponha entre parênteses a sua fé."
ResponderEliminarPapa Bento XVI no prefácio ao livro de Marcelo Pera, Perché dobbiamo dirci cristiani,
O senhor concorda com Joseph Ratzinger, quando ele afirma que o diálogo inter-religioso é impossível a menos que o crente ponha entre parênteses a sua fé? E o que podemos entender pela expressão "pôr entre parênteses a fé"?
ResponderEliminarBernardo Veiga - Concordo sim. Defendemos que a segurança que o crente deve ter é a segurança de defender a verdade. A outra segurança, a que dá a fé, deve-se colocar entre parênteses, para tornar possível o diálogo. "Pôr entre parênteses a fé", portanto, é não tomar as fés como base do diálogo, mas somente o que é comum: a razão. Se no início do diálogo inter-religioso, o crente começa expondo o seu credo como algo absoluto e totalmente inquestionável, isso mostra que ele não está aberto ao debate, que ele busca antes aquilo que lhe dá uma certa segurança, antes que a própria verdade. Assim, o papa defende que a única segurança que devemos buscar é justamente a da sincera busca da verdade e se converter para ela sempre que for necessário, mesmo que o indivíduo tenha que passar por ‘n’ religiões até encontrar a que lhe parecer a mais verdadeira. É isso exatamente o que fazia Lúlio.
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=12226&cod_canal=46
Irrazoável é dizer apenas "a senhora está grávida, diz que é virgem", esquecendo todos os outros factores que têm que entrar na equação. A razão é abertura à realidade na totalidade dos seus factores e não um juízo com base apenas numa parte da realidade, seja lógica, matemática ou científica. Como se eu agora decidisse acreditar no que a minha mãe me diz esquecendo a nossa relação de tantos anos, que me dá razões para acreditar no seu testemunho. A razão felizmente é maior que essa coisa de que falas.
ResponderEliminarSofrologista,
ResponderEliminarOu seja, para dar aparência de usar a razão, o crente não pode fundamentar os seus argumentos na sua fé. Concordo. Mas, uma vez que já decidiu à partida não se deixar demover por qualquer razão e manter sempre aquela opinião apenas porque foi a que escolheu inicialmente, mesmo que consiga aparentar racionalidade não está a ser racional.
O que tem de fazer para ser racional é mais do que apenas pôr os parênteses temporariamente mas estar disposto a mudar de ideias de forma a encontrar a conclusão mais justificada, seja qual for a sua crença inicial.
O LUDWIG REVELA PROBLEMAS ÓBVIOS DE RACIOCÍNIO
ResponderEliminar1) A Bíblia estabelece os pressupostos da racionalidade quando afirma categoricamente que um Deus que é Razão (Logos) criou o Universo de forma racional, com uma estrutura racional, para poder ser entendido (ao menos em parte) por seres humanos racionais , porque criados à imagem e semelhança de Deus.
2) Para existir racionalidade é necessário que a consciência e os pensamentos sejam uma realidade espiritual e imaterial para além dos processos químicos e neurológicos aleatórios. A Bíblia ensina isso. Ao passo que o naturalismo materialista, ao dizer que tudo resulta de processos físicos aleatórios, ensina o contrário.
3) Se podemos justificar uma conclusão de forma independente é sinal que os nossos pensamentos são uma realidade imaterial para além dos processos químicos e físicos que o geram. Isso refuta o materialismo que diz que só existe matéria e energia.
4) De acordo com os critérios do Ludwig é irracional pensar que a energia surge do nada por acaso ou que a vida surge de químicos inorgânicos por acaso quando toda a evidência prova que isso nunca foi observado no terreno ou em laboratório.
5) Todos sabemos que é natural e humanamente impossível uma mulher engravidar virgem. A Bíblia também parte desse princípio ao afirma que esse fenómeno só foi possível porque teve uma causa sobrenatural e divina. Para o refutar teríamos que mostrar que Maria não era virgem ou que Deus não existe.
perspectiva,
EliminarComo pode ser racional acreditar que uma cobra falante enganou um casal pelado? :)
isto é suposto ser o quê?!
Eliminar- "Deus que é Razão criou o Universo de forma racional, com uma estrutura racional, para poder ser entendido por seres humanos racionais"
- "Para existir racionalidade é necessário que a consciência e os pensamentos sejam uma realidade espiritual e imaterial"
- "é sinal que os nossos pensamentos são uma realidade imaterial"
- "é irracional pensar que a energia surge do nada por acaso"
- "porque teve uma causa sobrenatural e divina. Para o refutar teríamos que mostrar que Maria não era virgem"
João Silveira,
ResponderEliminar«A razão é abertura à realidade na totalidade dos seus factores e não um juízo com base apenas numa parte da realidade»
Se, para ti, a razão é abertura à realidade na totalidade dos seus factores, então nunca será razoável ter fé, porque a fé é a vontade de estar convicto mesmo sem conhecer os factores relevantes.
Por exemplo, é irracional estar convicto de que a senhora era virgem sem ter dados fiáveis acerca da sua vida privada.
Uma notícia científica acabada de sair mostra bem a falibilidade dos métodos de datação geológica. uma cratera vulcânica datada de 6000 anos tem afinal datada em 800!.
ResponderEliminarÉ uma diferença significativa (750%)!
Os criacionistas sempre têm dito: não se deve confundir quantidades de isótopos com idades.
As relações entre umas e outras são bem mais complicadas do que se pensa
RESPOSTA AO LUDWIG
ResponderEliminar"Por exemplo, é irracional estar convicto de que a senhora era virgem sem ter dados fiáveis acerca da sua vida privada."
Os relatos históricos de que dispomos atestam o carácter de Maria e de José. Não existem outros de sentido contrário.
Por outro lado, todos os relatos acerca dos milagres e da ressurreição de Jesus, independentes entre si, atestam a singularidade sobrenatural e divina de Jesus.
Foi essa singularidade que transformou Jesus na figura mais marcante da história da humanidade.
Se Jesus fosse apenas o filho de uma relação pré-matrimonial, nascido em Belém e crucificado pelos romanos em Jerusalém onde estaria a sua singularidade?
Porque é que Jesus foi mais importante na história universal do que Alexandre Magno, Júlio César, Gengis Khan, Napoleão, etc.?
Porque é que a sua vida tem sido marcante para milhões de pessoas nos cinco continentes? Terá sido por ser um simples carpinteiro de Nazaré?
Perante o impacto dos relatos do nascimento, vida, milagres, morte e ressurreição de Jesus é inteiramente racional supor que as coisas se passaram exactamente como estão descritas nos relatos detalhados e independentes dos seus contemporâneos, que não hesitaram em dar a vida por esses relatos...
Ou seja, Jesus era, realmente, Deus connosco...
Ludwig, a fé não é vontade de estar convicto de nada sem conhecer factores relevantes. Parece-me que sofres do mesmo problema destes alunos: http://senzapagare.blogspot.com/2007/11/razoabilidade.html
ResponderEliminarLudwig:
ResponderEliminarNão creio que tenhas razão na resposta que dás ao Sofrologista. Parece bem claro pela citação que o tal Bernardo Veiga afirma estar disponível para mudar as suas convicções religiosas se tiver boas razões para tal. Está convencido que isso não acontecerá, da mesma forma que estou convencido que continuarei ateu. Mas está disposto a mudar as suas convicções caso isso aconteça, daí a referência às 'n' religiões.
A atitude do tal Bernardo Veiga é adequada do ponto de vista intelectual, mas é pouco correcta do ponto de vista católico, não apenas tendo em conta o que os Papas escreveram, o catolicismo da Igreja Católica, mas principalmente o relato do que se passou com S. Tomé («Tomé, tu acreditaste porque me viste: abençoados são os que acreditam sem ter visto»).
Aliás, Fé pode ser definida como o contrário dessa atitude - http://dererummundi.blogspot.com/2007/04/o-que-f.html
É interessante que muitos cientistas não criacionistas começam a reconhecer que não conseguem evitar a necessidade da Criação.
ResponderEliminarCuriosamente, eles chamam a isso o problema de Génesis...
Génesis 1:1 diz: "No princípio Deus criou os céus e a Terra"...
Qual é o problema? Não há venho problema nenhum...
Ironicamente aqueles que rejeitam o milagre do nascimento virginal de Cristo, por suposta falta de evidências, aceitam, sem qualquer evidência, os milagres da origem acidental da vida e acreditam, sem evidência, que a evolução começou numa única célula.
ResponderEliminarCaro João Vasco,
ResponderEliminarEu não vi Cristo, acredito nele e sou feliz.
Saudações,
Alfredo
Alfredo Dinis,
ResponderEliminarÉ portanto abençoado :).
Quanto à interpretação não literal da passagem de S. Tomé, ela vai no sentido de fundamentar a definição de Fé que é feita no texto do Desidério (baseada em S. Tomás de Aquino, se não estou em erro).
João Vasco, já expliquei várias vezes porque é que essa tua argumentação de S.Tomé está errada. S.Tomé não foi razoável.
ResponderEliminarLudwig,
ResponderEliminar«Mas “razão”, sob qualquer definição que preserve o uso comum, implica agilidade mental para corrigir erros e encontrar o caminho certo seja de que ponto se comece. Por muito que tentem esconder este problema com alegações confusas, quem comece a procurar a verdade absolutamente convicto de que já a encontrou, além de presunçoso estará a ser irracional.»
Concordo, em geral. Mas para o caso não me parece relevante.
«o termo “fé”, sejam quais forem os detalhes da definição, implica um apego idealmente inabalável a uma premissa inicial.»
Não concordo. E cada vez se torna mais claro para mim que confundes o que é de extrema simplicidade. Talvez demasiado simples.
Quando dizes que Maria não podia ser mãe virgem ou que Jesus Cristo não podia ter ressuscitado, fundamentas-te em argumentos que toda a gente reconhece como científicamente válidos. Sobre isto não há que ter mais fé do que a que comporta o conhecimento científico. E não é por isso que os crentes estão em desacordo contigo. Em tudo o que fores científico, o crente acompanha-te. É esta banalidade que tenho vindo a repetir e não tem nada de confuso. Onde diverges do crente cristão sobre as referidas "questões" é quando dizes "assim sendo, não aconteceu e os que acreditam nisso são estúpidos porque não têm razões para acreditar e, não obstante, continuam a insistir que as virgens podem dar à luz e que as pessoas podem ressuscitar". Mas não, o cristão não diz que, naturalmente, as virgens podem dar à luz e que as pessoas podem ressuscitar. É justamente pela força da ciência que a fé se justifica. Se encontrássemos a tal explicação "científica" que tu exiges para o fenómeno, aí sim, a mensagem não teria o alcance nem o significado que tem.
«A fé, em contraste, precisa de condenar como pecado qualquer alternativa, quer para evitar a inconveniência de se justificar, quer para disfarçar preconceitos com falsas virtudes.»
Em matéria de pecado, a fé também é racional. Senão, vejamos. O pecado é algo do foro da consciência. Uma conduta objectivamente "má" pode ser subjectivamente "boa" e vice-versa. Um criminoso, perante Deus, pode ser "bom" e, teoricamente, um indivíduo que só praticou boas acções, pode ser "mau".
A fé não tem nada que evitar a não ser os sofismas e a maldade. Neste aspecto, o crente sabe que os seus inimigos não são a rectidão, nem a razão e não pode deixar de ser "atento" como a serpente, embora inocente como o pombo.
Uma fé que disfarçasse preconceitos com falsas virtudes seria uma confusão que desagradaria profundamente a Deus.
RESPOSTA AO LUDWIG
ResponderEliminar«A fé, em contraste, precisa de condenar como pecado qualquer alternativa, quer para evitar a inconveniência de se justificar, quer para disfarçar preconceitos com falsas virtudes.»
Ao condenar aqueles que condenam os outros o Ludwig padece do mesmo pecado que acha condenável naqueles que ele mesmo condena... ;-)
O Ludwig fala e a Bíblia responde
ResponderEliminarLudwig:
«A fé, em contraste, precisa de condenar como pecado qualquer alternativa, quer para evitar a inconveniência de se justificar, quer para disfarçar preconceitos com falsas virtudes.»
Bíblia:
“Porque Deus enviou seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo. 3:17).
“Porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, que quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (I Tm. 2:3-4).
"A razão é a capacidade de justificar uma conclusão de uma forma independente da preferência por qualquer premissa inicial."
ResponderEliminarNão é. O facto de nem sequer existir uma conclusão não retira nem acrescenta racionalidade à sequência. Se a razão fosse apenas isso seria uma componente marginal, e até exótica, do ser humano. Razão é pouco mais que a coerência irreprimível. Pode ser racional considerar irrelevante a factualidade de determinada premissa inicial para justificar uma conclusão.
É curioso. Parece muito mais fácil encontrar referências à religião em publicações ditas científicas escritas por ateístas do que por pessoas com práticas religiosas. Essa compatibilidade é que está por aferir.
« quem comece a procurar a verdade absolutamente convicto de que já a encontrou, além de presunçoso estará a ser irracional. »
ResponderEliminarAbsolutamente convencido de que assim é, pelos seus próprios termos se condena.
Eis Ludwig Krippahl, o auto-contraditório crónico. E dá "aulas de pensamento crítico" numa universidade....
O Jairo tem toda a razão.
ResponderEliminarO "pensamento crítico" que pretende ensinar a tomar decisões é uma fraude que favorece a credulice. O genuíno cepticismo pode estar resguardado em quem diz: Só Deus sabe.
Krippmeister,
Eliminar"O genuíno cepticismo pode estar resguardado em quem diz: Só Deus sabe."
Isso é bom, pois evita ter que ficar pensando. Pensar dá muito trabalho :)
É melhor aceitar mesmo que a Maria era virgem, pois esta escrito num livro e a igreja diz que é assim, então só pode ser assim. Esse é o espírito do verdadeiro ceticismo e do pensamento crítico. :)
"O genuíno cepticismo pode estar resguardado em quem diz: Só Deus sabe."
ResponderEliminarSuponho que num contexto onde a genuína virgindade está resguardada em quem aparece grávida isso até faça sentido.
Ó mano Kripphal tem interesse em ginecologia? Que bom.
ResponderEliminarSó Deus sabe.
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