sábado, dezembro 31, 2011

A Lua e a idade do universo.

Vi isto ontem no Pharyngula (1) e concordo que é um bom contra-exemplo para a alegação criacionista de que tudo foi criado há cerca de dez mil anos. A imagem abaixo mostra o “lado de trás” da Lua, o que está sempre a virado no sentido oposto ao da Terra. Vê-se bem a abundância de crateras. No canto superior esquerdo está representado Portugal, para dar uma ideia da escala.

esburacada

A Lua tem umas centenas de crateras com mais de cem quilómetros de diâmetro. A Terra, maior e com mais massa do que a Lua, atrai mais meteoróides e asteróides, pelo que por cá terá havido ainda mais impactos, se bem que maior parte das crateras já desapareceu devido à erosão.

Mas vamos supor que a Terra só existe há dez mil anos, como dizem alguns criacionistas, em vez de ter surgido há quatro mil e quinhentos milhões de anos. Comprimindo todos os impactos nesse período quinhentas mil vezes menor, teríamos, em média, um ou dois impactos gigantes por geração. Quando digo gigantes, não estou a falar de impactos como os que dizem ter demolido Sodoma e Gomorra. Estou a falar no tipo de pedregulho que, se caísse em Coimbra, obliterava tudo de Lisboa ao Porto. Basta ver o tamanho das crateras na Lua onde, sem atmosfera, permanecem claramente visíveis mesmo depois de muitas centenas de milhões de anos.

Esta imagem não é só uma boa razão para rejeitar que o universo tenha apenas dez mil anos de idade. É também um bom teste para qualquer criacionista que perceba minimamente o que a fotografia mostra. Se lhe ocorrer que a sua crença talvez não seja verdadeira – afinal, errar é humano – há esperança de o ajudar a perceber melhor a realidade. Mas se se arrogar da humildade de julgar que o criador do universo mandou uma saraivada de asteróides só porque Adão comeu a fruta errada, então está a ser parvo porque quer e só adianta continuar a conversa quando mudar de atitude.

Montagem de imagens da Wikipedia e Google Maps.

1- Nice argument for the ageof the earth.

PS: Bom ano novo.
PPS: E a gata já tem família.

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Treta da semana: direitos, graças a Deus.

No blog do Expresso, o Henrique Raposo escreveu esta semana que «o Direito Natural precisa de uma base religiosa, precisa de uma comunicação com a transcendência divina. [Porque] sem uma noção de transcendência, sem algo que nos liberte da prisão do aqui-e-agora, o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Desta premissa conclui que «os tais "direitos inalienáveis" (a base ética e constitucional das nossas vidinhas) têm uma raiz bíblica» pelo que há «necessidade de Deus (e de Cristo)»(1). Que grande confusão.

A inferência da “noção de transcendência” para “raíz bíblica” e, daí, para o Deus cristão e Cristo, apesar de costumeira neste tipo de argumentação, é obviamente inválida. Há muitas “noções de transcendência” que nada têm que ver com a Bíblia e, mesmo entre as que têm, muitos milhões de pessoas seguem aquelas que não incluem Cristo. Mesmo que os direitos naturais precisassem de uma transcendência divina, nada permitiria concluir que esta seria Cristo ou um deus como os cristãos imaginam.

Também não é preciso um deus desses para justificar direitos naturais. A ideia de que há um conjunto de direitos e deveres inerentes ao ser humano, independentes das leis que os humanos criam, é uma parte fundamental de muitas filosofias éticas que não dependem de um deus pessoal como o dos cristãos, desde as mais antigas, como o estoicismo grego e o dharma hindu, até ao libertarianismo moderno. O Henrique argumenta que é preciso essa transcendência cristã porque senão «o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Mas só ignorando dois mil anos de cristianismo é que se pode julgar que a crença em Cristo impede o atropelo desses direitos que consideramos inalienáveis.

Além disso, as teorias éticas mais influentes hoje em dia – utilitarismos e contractualismos – não se baseiam em direitos naturais. Nestas, os tais direitos que as leis devem respeitar são derivados de factores como a capacidade de sentir ou aquilo que agentes livres e racionais concordariam em estabelecer. A ética moderna não precisa de assumir direitos naturais. O que é uma vantagem porque, como premissa, sempre foram muito frágeis e facilmente descartados por quem estava no poder.

Se o Henrique tiver o cuidado de ler a Bíblia e a Constituição da Republica Portuguesa verá certamente que a relação entre as duas é muito mais de contraste do que de semelhança. O Novo Testamento tem pouco acerca de direitos, deveres, leis ou política. Como fundamento ético, “ama o próximo” tanto dá para lhe lavar os pés como para o queimar vivo para lhe garantir o Céu. Os Autos de Fé eram praticados no mais pio espírito de amor e compaixão. E as partes do Antigo Testamento que lidam com leis e deveres parecem um manual de ditadorismo escrito por facínoras ignorantes. Provavelmente porque são isso mesmo.

Nos primeiros dois artigos, a nossa Constituição declara que Portugal se baseia na «dignidade da pessoa humana e na vontade popular» e que «é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas». Há de me dizer o Henrique quando é que o cristianismo, ou qualquer outra religião de peso, declarou basear-se na soberania popular, no pluralismo e na democracia. Depois temos o princípio da igualdade, que manda a lei tratar todos de forma independente de «ascendência, sexo, raça, língua, […] religião, […] condição social ou orientação sexual.» Gostava que o Henrique mostrasse onde é que isso está na Bíblia, ou na prática das igrejas cristãs destes vinte séculos. Ou, por exemplo, «Em caso algum haverá pena de morte. […] A integridade moral e física das pessoas é inviolável. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos»(2). Faz-me pensar se o Henrique alguma vez leu a Bíblia, nem que fosse de relance. Ou a história da Europa cristã. Ou sequer reparou no símbolo do cristianismo. Se os direitos humanos que hoje reconhecemos nos tivessem vindo dos tempos bíblicos, Jesus nem sequer teria sido preso, quanto mais torturado e morto na cruz.

É verdade que a nossa cultura é cristã, entre muitas outras coisas. Aqui em Portugal já se vendeu escravos, já se proibiu mulheres de votar, já se prendeu muita gente só por discordar de quem estava no poder e já se torturou pessoas por terem a religião errada. A “nossa” cultura é uma mistura de actos e tradições de muita gente, com coisas boas e coisas más. A nossa noção de direitos humanos universais, acima de qualquer legislação ou governo, vem no seguimento de toda esta história. Isso é inegável. Mas é um disparate dizer que surgiu por causa do cristianismo. Mais correcto será dizer que surgiu apesar do cristianismo, e de muitas outras tradições também contrárias à igualdade, à liberdade e à democracia.

1- Henrique Raposo, A necessidade de Deus (e de Cristo)
2- Parlamento, Constituição da República Portuguesa

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Portátil no forno.

Há umas semanas, felizmente só depois de terem acabado as aulas deste semestre, o meu portátil pifou. No arranque apareciam uns caracteres estranhos e linhas no ecrã, e ao fim de uns minutos bloqueava. O problema era obviamente na placa gráfica e, como neste portátil (um HLB2 da Compal*) a placa gráfica faz parte da motherboard, tinha poucas esperanças de o salvar. Mas uma pesquisa na 'net surpreendeu-me com uma solução. Os portáteis aquecem muito e as flutuações de temperatura vão causando pequenas fracturas nas soldaduras. Isto acontece geralmente no processador gráfico, que é a parte que aquece mais. E uma maneira de tentar resoldar estes circuitos é aquecer a placa no forno, a 200ºC, durante uns minutos (1).

Porque havia o risco da cura não funcionar, porque mesmo que resultasse ficaria sempre com receio do bicho morrer em tempo de aulas, e porque estamos no Natal, comprei logo um novo**. Mas hoje tentei ressuscitar o defunto. Deu um bocado de trabalho, desmontar a cangalhada toda, mas tirei quase tudo da motherboard. Os cabos de alimentação não se desencaixam, por isso embrulhei-os em folha de alumínio para os proteger do calor. Fiz o mesmo com a pilha do relógio, que parecia estar colada, o que foi asneira. Como era de esperar, pilhas a 200ºC não sobrevivem.

Depois de assar 8 minutos e arrefecer, encaixei os cabos do monitor e de alimentação, liguei, e nada. Só então me lembrei que não tinha montado o CPU. Com esse no sítio já funcionou. Apareceu o ecrã de arranque sem riscas estranhas nem gatafunhos. Depois de montar a tralha toda, fiquei com o portátil a funcionar como velho (que é o mesmo que funcionar como novo mas sem ter de instalar o software). Falta só comprar uma pilha para ter as horas certas no portátil e, à cautela, pasta térmica boa para ver se não frita outra vez tão cedo.

Três vivas para a Internet!

* Não a dos sumos. Esta.
** Clevo W150HNM. Muito porreiro, para o preço, mas como a placa gráfica é uma NVIDIA Optimus, tive de instalar o Bumblebee. Deixo aqui a dica porque perdi umas horas até descobrir por que raio não conseguia pôr o GLX a funcionar.

1- Addictive tips, Fix Your Graphics Card By Baking In Oven.

domingo, dezembro 25, 2011

Treta da semana: adopção natural.

Num texto aparentemente publicado no Público de dia 16, Gonçalo Portocarrero de Almada apresenta um argumento fascinante contra a adopção por casais homossexuais. Fascinante por ser uma inferência falaciosa assente numa premissa falsa, maximizando assim a treta na argumentação. «Na realidade, só há dois modelos para a adopção: o natural e o que, por ser o seu contrário, é não-natural. Só um homem e uma mulher podem "ser" pai e mãe […] A adopção não-natural é um mal maior, contrário ao bem do menor, que é o superior interesse que a lei deve tutelar.»

A falácia, querida dos defensores de qualquer “é assim porque sim”, consiste em inferir uma norma moral a partir da mera constatação de um facto. É a falácia naturalista. Neste caso, o Gonçalo Portocarrero, assumindo que a forma natural de adopção é por um casal heterossexual, deriva daí a regra de que só estes casais devem poder adoptar. Isto faz tanto sentido como concluir que a violação é moralmente aceitável, ou que temos a obrigação moral de comer comida crua, apenas porque na natureza é assim que as coisas acontecem. A justificação normalmente invocada é que nem tudo na natureza é moralmente relevante, mas alguns aspectos da natureza são. Infelizmente, isto apenas substitui a falácia naturalista pela falácia da petição de princípio, continuando a faltar a justificação para decidir que este implica restrições morais. Seja por onde for, não se justifica restringir a adopção a casais heterossexuais só porque, biologicamente, é necessário os dois sexos para fazer um filho. Entre outras coisas, tal salto de fé implicaria ser também imoral a adopção por um casal infértil.

Além disso, a premissa do Gonçalo é falsa. Ridícula, até. Não há nenhuma “adopção natural”. Ocasionalmente, pode acontecer a cadela amamentar um gatinho ou coisa do género mas, na natureza, há uma forte pressão selectiva contra o investimento em prole alheia, mais forte ainda do que contra o suicídio. A adopção é uma invenção humana, nada natural, que só se tornou prática generalizada recentemente e apenas em algumas culturas.

O argumento invoca também premissas como «Se a adopção tem por modelo a família natural» e «Se se entende que se deve proporcionar ao menor uma família análoga à que o gerou». Mas não há razão nenhuma para assumir isto. O problema fundamental é decidir o que é melhor para a criança. Dada uma criança sem os pais biológicos, a viver numa instituição, e um conjunto de candidatos para a adoptar, é necessário avaliar qual a melhor opção para a criança. Segundo o Gonçalo, «A questão não pode ser equacionada em termos casuísticos ou sentimentais, mas em função do fim a que tende a adopção: facultar uma verdadeira família à criança desvalida.» Mas não é bem isso. O propósito da adopção é dar à criança o melhor ambiente possível. Isso tem mesmo de ser avaliado caso a caso, e não conforme uma definição arbitrária de “verdadeira família”.

Mas numa coisa dou razão ao Gonçalo. Há mesmo aqui «Um Mal Maior Contra o Bem do Menor». Só que não é a homossexualidade nem a adopção “não natural”. O mal maior é o crédito que se dá a preconceitos bacocos só porque têm origem religiosa.

1- Real Associação do Médio Tejo, Um mal maior contra o bem do menor, via perspectivas.

sábado, dezembro 24, 2011

Caridadezinha.

No post sobre o conto do César das Neves mencionei, de passagem, o problema de «adoçar [os] males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir». Em resposta, o Nuno Gaspar criticou aos ateus a falta de «engajar-se com os miseráveis, os mais frágeis, os deficientes»(1), e o João Silveira citou a história da viúva, no evangelho de Marcos (12, 41-44), que dá as duas únicas moedas que tem e, por isso, o acto dela vale muito mais do que o muito dinheiro que os ricos possam dar, pelo sacrifício que isso representa.

Hoje vemos a sociedade de uma forma única na história. Consideramos que todas as pessoas são iguais perante a lei; que não há escolhidos dos deuses, com mais direitos do que os outros. Reconhecemos a todos alguns direitos inalienáveis, independentes de serem nossos “irmãos”, da nacionalidade, sexo ou religião, ou até de gostarmos dessas pessoas. E compreendemos que a sociedade é um contrato colectivo para o qual todos devem contribuir. Isto tem duas consequências importantes. Leva-nos a encarar a injustiça, a miséria e a doença como problemas a resolver. Não são fatalidades nem desígnios misteriosos, mas sim algo que se deve prevenir ou remediar. E leva-nos a assumir, entre todos, o dever de os resolver. Não é por piedade que respeitamos os direitos dos outros, nem por caridade que pagamos os impostos, nem por santidade que toleramos diferenças ideológicas ou culturais. É por dever e decência. É o que esperamos de qualquer cidadão como parte do seu papel na sociedade.

O cristianismo tem uma abordagem muito diferente. Assenta na premissa de que toda a existência terrena é um apenas um teste. Deus dá-nos vida, decide se nascemos ricos ou pobres, inteligentes ou burros, feios ou bonitos, e nós temos de viver assim até que ele nos tire de cá. Nem podemos sair mais cedo, porque é pecado. Conforme o nosso desempenho durante estas décadas, teremos uma eternidade de alegria ou de sofrimento. Por isso, o que importa é a devoção de cada um, porque as circunstâncias são só cenário. Como comentou há tempos o Miguel Panão, «A grande diferença entre nós está [...] nas diferentes visões de uma cultura da ressurreição e cultura da morte. A implicação de uma criança que morre de um mal natural é mais problemática do ponto de vista da cultura da morte do que de uma cultura da ressurreição. [Se] em Deus a vida continua, onde está a morte?» (2).

Isto tem também implicações importantes. A injustiça social, o sofrimento dos mais pobres, a doença ou a discriminação não são problemas a resolver. São a vontade de Deus, que cria pessoas em diferentes condições sociais, com diferentes sexos, nacionalidades, religiões e cores, e se o faz assim alguma razão terá. Nem se pode assumir que somos moralmente iguais e que, por exemplo, uma mulher pode dirigir a Igreja Católica ou celebrar missas. Portanto, aquilo que se faz por terceiros conta por quanto custa fazer e não pelo bem que faça aos outros. Isto vê-se claramente por todo o cristianismo.

A passagem da bíblia que o João Silveira citou enaltece a dádiva da viúva pelo sacrifício desta e não pelo parco benefício que as duas moedas tenham trazido a alguém. Perante qualquer desgraça, os cristãos rezam pelas vítimas. Para quem esteja soterrado nos escombros ou à deriva num bote salva-vidas, as vigílias, orações e promessas dos crentes não servem de muito. Mas o que conta é a devoção de quem reza. Afinal, se a vida continua em Deus, pouco importa que morra gente em terremotos, afogada, ou o que calhar. O que importa é que alguém se sacrifique por isso. Jesus é o melhor exemplo. Podia ter feito tanto por tanta gente, como ensinar noções básicas de medicina preventiva, abolir a escravatura, condenar o racismo e discriminação sexual ou defender a liberdade de crença e opinião. Nos séculos que se seguiram, isto teria poupado muito sofrimento a muitos milhões de pessoas. Mas não. Umas bem-aventuranças, umas parábolas irrelevantes, e depois deixou-se matar. Morreu por nós e deixou tudo na mesma.*

A consequência disto é que a caridade cristã não se preocupa muito em resolver problemas e nem sequer é acerca de quem precisa. É uma caridade umbiguista, focada no sacrifício do caridoso em detrimento das carências do necessitado. A Madre Teresa é louvada pela sua dedicação aos pobres, por ter segurado a mão de quem morria e amado quem era miserável. Se tivesse organizado saneamento básico, campanhas de vacinação ou de medicina preventiva, salvando muita gente em vez de os amar até à morte, os cristãos não lhe ligavam nenhuma. Mas sacrificou-se e sofreu com quem sofria e, por isso, é uma santa.

Esta divergência ideológica faz-me suspeitar que estaríamos melhor sem a caridade cristã. Em vez da esmola e do esforço despendido em gestos simbólicos, era preferível dedicarmo-nos a resolver os problemas da sociedade de uma forma justa e eficaz. Não por caridade ou pena dos pobrezinhos, mas porque é dever de todos mitigar as injustiças cometidas pela natureza. Uma natureza que não nos ama nem nos está a testar, mas que é indiferente ao que fazemos ou sofremos. As crenças na vida depois da morte, num deus bondoso, no valor do sacrifício pelo sacrifício e na premissa pouco pragmática de que o “amor” resolve tudo só atrapalham. Na melhor das hipóteses, levam a menosprezar os problemas e a avaliar incorrectamente as soluções. E, na pior das hipóteses, servem de desculpa para se aproveitarem da miséria alheia.

* Excepto para os judeus, que muito se tramaram com a desculpa de terem morto o deus dos cristãos.

PS: Boas festas.

1- Comentários em ”Conto de Natal”
2- Comentário em Bondade

sexta-feira, dezembro 23, 2011

A cópia privada.

O PS vai propor alterações ao Código do Direito de Autor para «atualizar os conceitos legais», «garantir aos titulares de direitos uma razoável e justa compensação pelos danos sofridos pela prática social da cópia privada» e reforçar o «combate às várias formas de pirataria»(1). Isto preocupa-me.

Preocupa-me, enquanto cidadão, que o Estado se intrometa na nossa vida privada para defender alguns interesses económicos. Esses “danos sofridos”, na pior das hipóteses, são apenas a perda de oportunidades para vender. Não se justifica legislar só por isso. E estas leis, que colocam actos privados de cópia e partilha sob a alçada de tribunais, advogados e polícia, criam um desequilíbrio injusto entre empresas e cidadãos. Mesmo que a lei ainda conceda ao cidadão alguns direitos de privacidade e de liberdade para usar o seu equipamento, para se exprimir e para partilhar informação, a dificuldade de defender esses direitos em tribunal contra quem tem muito mais dinheiro para processos e advogados torna esta legislação numa ferramenta de chantagem, de censura e de extorsão.

Preocupo-me também como autor. Não sou um autor que a Sociedade Portuguesa de Autores reconheça, porque essa, sendo uma sociedade de cobrança, exige que os autores recebam por seu intermédio. Como eu ganho por contrato e não exijo pagamento se ninguém me encomenda o trabalho que faço, a SPA não deve querer nada comigo. Mas o que crio – material para aulas e avaliações, artigos, dissertações, software e até posts no blog – é, à luz desta lei, obra original e protegida. Nos tempos do analógico, a concessão de monopólios financiava a infraestrutura de produção, distribuição e revenda necessária para o acesso a obras publicadas. Agora, a adaptação das leis «às novas realidades do mundo digital» tem o efeito contrário. Cada vez mais, a lei é um empecilho. Se um autor quer vender o seu trabalho directamente ao público, não só enfrenta uma máquina publicitária subsidiada por estes monopólios, como ainda é forçado a contribuir para a sustentar. Por exemplo, se eu quiser distribuir o que criei em CD, cobram-me um imposto para dar aos Tonys Carreira e afins. Este projecto de lei vai estender essa taxa aos discos rígidos, pendisks e cartões de memória. Até pelas fotografias das férias terei de pagar às editoras discográficas. E ainda me dizem que é para eu não “sofrer danos” por copiarem o que eu publico.

Finalmente, como professor acho isto tudo uma péssima ideia. Esta legislação assume que a cultura e a criatividade têm de ser protegidas restringindo o acesso, cobrando licenças e controlando a distribuição, mas isso é o pior que se pode fazer à cultura. A cultura protege-se divulgando-a o mais possível e integrando-a nas nossas formas de comunicar. E a criatividade precisa de acesso à cultura. Ninguém cria a partir do nada, e não são só as pessoas com dinheiro para pagar licenças que devem poder desenvolver e exprimir a sua criatividade. Isto transmite mensagens erradas às gerações mais novas. Que partilhar é imoral, que a cultura é um bem de consumo, e que quando compramos algo não ficamos seus donos, apenas detentores de uma licença provisória até alguém decidir cancelar o DRM. Pior ainda, isto ensina que a lei não merece respeito, ao criminalizar algo tão inofensivo e vulgar como copiar um ficheiro. Se estas leis fossem levadas a sério, quase não haveria ninguém fora das cadeias que soubesse ligar um computador.

1- TEK, PS avança com proposta para reforçar direitos de autor

terça-feira, dezembro 20, 2011

“Conto de Natal”

No de Dickens, Ebenezer Scrooge transforma-se radicalmente. Aprende quanto pode fazer por si e pelos outros e, com isso, torna-se numa pessoa melhor. O João César das Neves não é um Charles Dickens, obviamente, mas também não era preciso fazer o oposto. Num texto apressado, conta como um tal André lida com a crise: «Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto! […] Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias 'Paí Nosso', que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência.»(1) A mensagem parece ser que, ao contrário do que se passou com Scrooge, o melhor para nós é aceitar tudo como é: «esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus [e] desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas [...] 'Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8, 28)».

Além de promover a bovinidade, a historieta salienta algumas inconsistências do fatalismo cristão. O André não se preocupa porque o seu “Pai” está encarregue de tudo, mas também não estranha que o “Pai” trate os filhos de forma tão injusta. É difícil imaginar que um pai fique indiferente ao filho que passa fome numa cubata na Somália enquanto outro vive luxuosamente num chalé suíço. Pior, esse tal André diz-se descansado da vida porque «se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco». Chiça. Felizmente sou ateu e não acredito ser filho de um pai desses. Senão é que andava aterrorizado.

Isto de aceitar a injustiça com passividade e enaltecer o sofrimento absurdo já é treta antiga. Vê-se na história de Jó, na desculpa de que Jesus se sacrificou para nos “redimir”, na adoração dos mártires e no adoçar dos males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir. Como se o principal problema da pobreza fosse não ter uma sopa quente no Natal. Como somos intuitivamente sensíveis à injustiça, é preciso este barrete. Quem se diz infalível, vive num palácio e veste roupa bordada a ouro tem de louvar a humildade e a pobreza. Ponham a vida nas mãos deste deus, dizem, e dêem graças pelas migalhas que vos calham. Sobretudo, portem-se bem.

Mas nós somos pessoas, não somos ovelhas, e esta crise não é obra dos deuses. Não é o nosso destino nem um teste para ganhar uma nuvem mais fofa no céu. É um problema humano, de actos e de atitudes. É o problema de estar tudo a mando de Scrooges e não de um “Pai” que nos ama a todos. E nota-se nos detalhes. Quem enaltece os mártires com histórias da carochinha não se martiriza a si próprio; quem elogia a pobreza não vive na miséria; e quem exorta a que cada um aceite, sorridente, a sua condição goza geralmente de condições melhores do que as dos outros. É a estes que convém a crença generalizada do destino como obra divina em vez de tarefa humana. Caso contrário, teriam de se assumir responsáveis por terem ficado com a maior parte daquilo que é de todos.

A crença pessoal num deus, na vida depois da morte ou afins é um direito de cada um e não faz grandes estragos. Mas, à volta disso, há sempre quem invente religiões para controlar os outros, disfarçar injustiças e ir mantendo tudo como lhes convém. Promessas de paraíso além-morte, o pai celestial que criou o universo mas precisa que se gaste dinheiro em igrejas imponentes e luxos para os seus representantes, e a ideia de que os miseráveis têm muita sorte por sofrer, são tudo embustes. O ateísmo tem a grande vantagem de nos inocular contra tais aldrabices, e encorajar-nos a enfrentar os fantasmas dos natais futuros como algo que temos o dever de tornar tão bom quanto pudermos. Se o André da historieta não se preocupa, isso não é sinal de fé. É sinal de irresponsabilidade.

1- João César das Neves, Conto de Natal

domingo, dezembro 18, 2011

Treta da semana: Transcomunicação Instrumental.

O Blog de Espiritismo tem uma entrevista com François Brune, um «conhecido estudioso e teólogo francês [...] especialista em misticismo oriental e ocidental, sacerdote ordenado em 1960 […] Graduado pela Sorbonne em Latim e Grego, com cinco anos de estudos de pós-graduação em Filosofia e Teologia no Instituto Católico de Paris e um ano adicional na Universidade de Tuebingen, na Alemanha, ele possui os mais altos graus de Teologia, Grego e Hebraico Bíblico, Hieróglifos Egípcios e Babilônicos da Assíria. E é, ainda, pós-graduado em Escrituras Sagradas pelo Instituto Bíblico de Roma.» É também o autor do livro “Os Mortos Nos Falam” e «é desde 1987 considerado um observador atento da investigação psíquica e da chamada Transcomunicação Instrumental (TCI).»(1)

Esta curiosa disciplina «estuda a comunicação entre vivos e mortos através de aparelhos eletrónicos como por exemplo rádio, televisão, telefone e computador»(2). É muito útil, esta capacidade de aparelhos electrónicos transmitirem comunicações de pessoas falecidas. Por exemplo, e infelizmente, sem algo como o computador e o YouTube os meus filhos hoje não teriam podido ver e ouvir a Cesária Évora a cantar.

Mas os aficionados do espiritismo propõem algo mais assombroso, se bem que menos melodioso. A moderna TCI começou com Friedrich Jürgenson, em 1959, quando este gravou cantos de pássaros e, ao ouvir a gravação, notou que a fita começava com umas vozes gravadas e só depois tinha a sua gravação dos pássaros. Não lhe ocorrendo que alguém pudesse ter usado a fita antes e ele tivesse gravado os pássaros por cima, concluiu imediatamente que se tratava de espíritos do outro mundo, comunicando pela modulação cuidadosa do magnetismo na fita do gravador (3).

Como qualquer técnica paranormal que se preze, a TCI dá para tudo. Segundo François Brune, «a maior parte das vezes comunicamo-nos com os mortos, que vivem agora numa outra dimensão. Mas por vezes temos tido contactos também com extraterrestres, creio eu, até porque muitos pesquisadores o afirmam. Parece-me também possível o contacto com energias, simplesmente». O testemunho é sempre a evidência mais importante para a teologia, pelo que, se os pesquisadores afirmam, então certamente que é verdade. Mortos, extraterrestres, ou até energias, tudo fala na gravação. Basta um pouco de imaginação. Ou, como se diz na gíria, fé.

Para que «descubra o Espírito», a ciência «deve adaptar-se a uma realidade que lhe escapa neste momento. Podemos fazer uma comparação: se eu for à pesca, para apanhar peixes tenho de lançar a linha e tenho de adaptá-la à posição do peixe. Não posso pedir ao peixe que siga o atalho que corresponde à posição da linha! As linhas são as teorias científicas para “apanhar” a realidade. […] É, pois, necessário que a Ciência aceite mudar esses paradigmas» Também se podia fazer a comparação com gambuzinos em vez de peixe, mas acho que nem vale a pena.

No entanto, já tive uma experiência destas, e posso dar o meu testemunho. Os miúdos nasceram quando eu estava a escrever a dissertação, o que me levou a fazer muitas noitadas. Numa noite quente de Verão, enquanto escrevia, bocejava e suava, comecei a ouvir a Alanis Morissette a cantar “You oughta know”. Desliguei a ventoinha, pensando em quem seria o vizinho maluco a ouvir música tão alto àquelas horas, e a rapariga calou-se. Quando liguei a ventoinha, recomeçou a cantoria. O zumbido do aparelho, o adiantado da hora e as noites mal dormidas conspiraram para criar uma espantosa ilusão auditiva. Parvo, fui-me deitar e perdi a oportunidade de uma carreira na comunicação paranormal com cantoras canadenses. Seria até mais interessante do que falar com mortos, a julgar pelas banalidades que estes debitam.

A quem quiser saber mais sobre isto, recomendo o artigo do James Alcock, ”Electronic Voice Phenomena: Voices of the Dead?” Tem até um exemplo de uma gravação misteriosa na qual se ouve uma alma do outro mundo a dizer fshsh fsshsh. A alma de um creeper, talvez...

1- Blog de Espiritismo, Padre François Brune, autor de "Os Mortos Nos Falam"
2- Wikipedia, Transcomunicação instrumental
3- Wikipedia, Electronic voice phenomenon

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Mais disparates...

Christian Noyer, director do banco central francês, diz que as agências de notação deviam baixar a classificação da dívida britânica antes da francesa porque o Reino Unido tem «mais défice, a mesma dívida, mais inflação, menos crescimento»(1). Até pode ter esses problemas todos, mas o Reino Unido tem uma grande vantagem em relação à França. Pode imprimir as libras que quiser. Os credores sabem que, se o Reino Unido criar muitas libras, a moeda vai desvalorizar. Mas o valor nominal do empréstimo está garantido, e a inflação não é um problema que afectará apenas o credor; será um mal distribuído por todos. A França está à mercê do Banco Central Europeu, cuja prioridade é manter a inflação a 2% nem que destrua o Euro no processo. Neste momento, com a política kamikaze da austeridade, o Euro é um grande risco. Vê-se o mesmo efeito nas taxas de juro da dívida soberana da Finlândia e da Suécia, por exemplo (2).

É fácil de perceber que, se o banco central não empresta dinheiro aos Estados, assim que alguma coisa corre mal está tudo tramado. Não há pensamento positivo que convença “os mercados” a ter confiança numa coisa dessas.

1- BBC, French banker says UK should be downgraded first
2- Krugman, The Euro Curse, e também Reuters, Gilts safer bet than Bunds for first time since 2009 e Bloomberg, Sweden is Safest as Crisis Upends Bond Market

domingo, dezembro 11, 2011

Treta da semana: o “Coelho da Merkel”.

Num blog do Expresso, o Tiago Mesquita escreveu que «A subserviência do nosso Primeiro-ministro e da tropa instalada neste miserável governo à chanceler alemã e sua agenda privada só não se torna mais escandalosa porque é, em certa medida, um traço distintivo da nossa nacionalidade, uma característica tipicamente portuguesa»(1). Tenho visto várias vezes esta ideia de que o nosso governo está a instituir políticas de austeridade com grande empenho por mera subserviência ou parolice. É evidente que as medidas recessivas são um disparate, tal como a conversa de que temos de ficar com menos salários e pensões, ou trabalhar mais horas, porque andámos a viver à grande e a esbanjar dinheiro. Não foram os trabalhadores e os pensionistas que afundaram a economia, não é cortando nos rendimentos que o PIB vai crescer e se todos os países desatam a poupar ninguém vai conseguir pagar o que deve. Mas é um erro perigoso julgar que nos estamos a afundar por os políticos serem parvos. É precisamente o contrário.

Os próximos anos vão ser desnecessariamente difíceis para a grande maioria. Os salários vão baixar, o desemprego vai aumentar e muitos negócios vão falir porque haverá menos procura por esses bens ou serviços. Mas para aquela pequena minoria que vive de ter muito dinheiro e apostar as dívidas dos outros, vão ser anos de grandes oportunidades. A privatização de empresas públicas, o spread crescente das dívidas soberanas, os empréstimos para recapitalização dos bancos, a deflação causada pela austeridade, entre outros, trarão muito lucro a quem tenha capital e contactos para beneficiar disto. Como o Passos Coelho. Nestes últimos anos foi director, administrador, presidente ou vice-presidente de várias empresas. Catorze em sete anos, se não me enganei a contar (2). Ser administrador de uma empresa durante sete anos sugere alguma competência administrativa. Mas de catorze, só sugere bons contactos.

É isto que se passa pela Europa. Na Itália trocaram o governo eleito – mau, mas eleito – por empregados dos banqueiros. Na Grécia quase houve um referendo, mas logo se deixaram de democracias. A Irlanda endividou-se até às orelhas para pagar as apostas falhadas dos bancos. E, por cá, somos “administrados” como se vê. Cortes, austeridade, emagrecimento e aumento da competitividade para, supostamente, se atingir o objectivo impossível de todos aumentarem as exportações sem ninguém importar. Economicamente, é óbvio que é a solução errada para o problema errado (3). Mas isto nem é economia, nem democracia, e muito menos parvoíce. É uma burla tão grande, tão arrojada e tão óbvia, que muita gente até prefere acreditar que os políticos são parvos só para não ver o barrete que enfiam.

1- Tiago Mesquita, Obama tem um cão de água português. Merkel tem um Coelho
2- Tretas.org (sem afiliação a este blog) Pedro Passos Coelho
3- Por exemplo, Krugman, Killing the Euro; O'Rourke, A Summit to the Death) mas ; Haldane & Madouros, What is the contribution of the financial sector?; Sachs, Jeffrey Sachs: 'That's not a free market, that's a game'.

sábado, dezembro 10, 2011

Interlúdio: como (não) minar ferro.

Especialmente dedicado aos fãs, mas quem não conhecer este jogo e não tiver paciência de ver tudo, pode saltar para os 7m30s e ver a parte dos creepers. Ssssssss....

sexta-feira, dezembro 09, 2011

Compatibilidade, agora com aspas.

No De Rerum Natura, o Carlos Fiolhais publicou há dias um texto sobre ciência e religião. É pena que não tenha abordado este tema com o rigor com que normalmente escreve. A ciência, começa, «trata do conhecimento do mundo natural» enquanto a religião «trata da relação do homem com o “transcendente”, com o qual ele toma conhecimento através da “revelação” ou “graça”.» (1) Pôs as aspas, mas não tocou no problema de sabermos se existem tais coisas como as religiões assumem, cada uma à sua maneira e sem consenso. Além disso, as religiões também dizem conhecer o mundo natural. Quase todas as religiões têm alguma versão de criacionismo, relatando como e porquê o universo foi criado, e alegações acerca do nascimento de Jesus, milagres ou a assunção de Maria não são estritamente sobre o “transcendente”. Têm implicações acerca do mundo natural também. E, em rigor, também não podemos dizer que «Na nossa cultura, [o transcendente] é o Deus da Igreja Católica.» O máximo que se pode dizer é que muita gente acredita que seja, mas daí a ser verdade ainda falta um bom bocado.

Depois, aponta que a ciência e a religião têm, em comum, «a procura de um sentido», o que também é pouco rigoroso. A ciência é uma procura por modelos que correspondam aos aspectos da realidade que visam modelar. É verdade que podemos encontrar sentido nisso, tal como podemos encontrar sentido na pintura, na literatura, no desporto, na família ou em qualquer aspecto da nossa vida. Até numa religião. Mas as religiões, que são muitas, não são necessariamente uma procura. Algumas, como o hinduísmo, deixam em aberto as questões fundamentais e toleram abordagens diversas. Outras, como o catolicismo ou o cristianismo evangélico, são mais dogmáticas e, por livros sagrados, inspiração divina ou líderes infalíveis, declaram que o essencial já está encontrado. E ai de quem procurar alternativas.

O Carlos Fiolhais aponta que «a observação e a experimentação permitem decidir se uma dada hipótese a respeito do mundo está errada. O reconhecimento do erro logo que haja evidência suficiente para ele tem assegurado à ciência uma notável capacidade de progressão ao longo dos tempos». Mas, depois, alega que «a religião não assenta no mesmo tipo de racionalidade, nem na observação e na experimentação, mas sim na fé, a crença que é obtida pela “graça” ou “revelação”» e que «existem diversas religiões, com diferentes verdades, cuja unificação é na prática impossível». Não me parece que recusar admitir a possibilidade de erro e o hábito de chamar “verdades diferentes” a alegações contraditórias mereça o rótulo de “racionalidade”, seja de que tipo for. O panteísmo hindu afirma que todos somos Brahman, enquanto o monoteísmo (triteísmo?) católico diz sermos criação do Pai-Filho-e-Espirito-Santo mas separados deste(s). Parece-me que o mais racional é chamar a isto crenças e admitir que não há razão objectiva para as considerar verdadeiras. Se chamamos a ambas “verdades” ficamos a precisar de uma palavra nova para designar a verdade a sério.

Depois, o Carlos Fiolhais parece confundir correlação com causalidade quando afirma que «Importa sublinhar que a ciência moderna surgiu no contexto do pensamento cristão e católico. Não se deu no quadro cultural do judaísmo ou do islamismo, nem no quadro de outras religiões». Antes da maturação da ciência nos dar alternativas persuasivas, todo o mundo estava dominado pelo pensamento religioso. O instante exacto em que a ciência começou é arbitrário. Há com certeza bons candidatos entre os arquitectos egípcios, filósofos gregos, engenheiros romanos e matemáticos árabes. Mas, onde quer que se ponha o “surgir” da ciência moderna, calhará sempre “no contexto” de uma religião qualquer. Ter calhado no cristianismo não nos diz se isso foi uma vantagem, desvantagem ou irrelevante. À partida, isto é tão importante como os primeiros cientistas serem todos homens, viverem em climas moderados ou saberem latim.

Finalmente, o «facto de que se pode ser crente e ao mesmo tempo cientista» e a alegação de que basta «abandonar a ideia de que a Bíblia é um livro de ciência» para que a ciência seja compatível com “a religião”. Isto não serve. A incompatibilidade não está na pessoa. Está no método. A ciência progride pela correcção de erros e, por isso, não pode aceitar como verdadeira uma proposição que não se possa testar ou à qual falte evidências que o justifiquem. Não me parece que o Carlos Fiolhais considere compatível com a ciência a alegação de que, pela “revelação” e fé, eu possa saber verdades transcendentes sobre os duendes invisíveis que habitam os núcleos dos átomos ou as fadas da quinta dimensão. A possibilidade um cientista acreditar nestas coisas – ou no criacionismo, ou nas pulseiras com hologramas – também não prova que estas crenças sejam compatíveis com a ciência.

Estes argumentos pela compatibilidade entre religiões e ciência mostram bem como estas são incompatíveis. Porque, invariavelmente, para argumentar isto é preciso abdicar do rigor e da exigência de fundamento que caracterizam a ciência.

1- Carlos Fiolhais, EM BUSCA DE SENTIDO: CIÊNCIA E RELIGIÃO

segunda-feira, dezembro 05, 2011

“ludwigs asquerosos”

Alguém assinando “Nuno Pereira , Acapor” comentou isto no Público, a propósito do vandalismo electrónico do site do PS:

«Do que está o PS á espera para propor ao Governo a erradicação de todo o tipo de criminosos e piratas da internet portuguesa? Do que está o Governo á espera para erradicar "partidos pirata", tugaleaks, anonymous adolescentes ou adultos, de paulas não sei quantas e ludwigs asquerosos cujas mentes apenas servem para desestabilizar a nossa muito fragilizada sociedade uma vez que são eles os mentores da criminalidade informática que aterroriza o nosso País? Esses animais precisam de ser punidos exemplarmente. Senão é o descalabro declarado. Quem manda em Portugal afinal?»(1)

Sinto-me honrado por este comentador me agrupar com o partido pirata e “as paulas”, que presumo ser a Paula Simões (2). Também concordo com os princípios defendidos pelo Tugaleaks (3), se bem que não conheça o suficiente deste grupo para avaliar o que fazem. E, se for mesmo o Nuno Pereira da ACAPOR, fico satisfeito por ter causado uma impressão tão forte, e aproveito para lhe deixar um abraço, na esperança de causar ainda mais asco.

Mas não me parece competência legítima do governo erradicar partidos políticos nem impedir que os cidadãos os formem. E erradicar adolescentes anónimos não é muito prático. Quanto a ser mentor de criminosos, isso depende do que consideramos crime. Por exemplo, quando distribuíram os emails da ACAPOR, eu escrevi que «Concordo que a ACAPOR se queixe de quem lhes copiou e partilhou a correspondência, violando a privacidade das pessoas envolvidas.»(4) e até defendi a imoralidade desse acto no Torrentfreak, onde muitos manifestavam aprovação por esta violação dos direitos de pessoas (5). Afinal, não considero que pessoas como o Nuno Pereira sejam «animais [que] precisam de ser punidos exemplarmente», mesmo que queiram ganhar dinheiro à custa dos direitos dos outros.

Também não concordo com esta moda dos ataques indiscriminados. Há dias divulgaram dados pessoais de uma centena de polícias sem haver razão para castigar aqueles indivíduos em particular. Mais útil, e justo, seria divulgarem os detalhes, as ordens e os responsáveis por mandar para as manifestações polícias à paisana bater na polícia de choque (6). No entanto, ao contrário do que alega o Nuno Pereira, não é esta «criminalidade informática que aterroriza o nosso País». Mais preocupante é o desrespeito, irresponsabilidade e abuso da parte de quem tem o poder. Como o chefe da PSP que tinha a lista com os contactos dos polícias num documento Word no seu portátil, provavelmente numa pasta partilhada e sem firewall (7), à mercê de qualquer pessoa com conhecimentos básicos de informática. Desculpam-se dizendo que os “piratas” “invadem” os computadores, mas quem deixa o computador configurado para dar acesso a qualquer um também devia ser responsabilizado.

Nestas coisas não sou mentor de criminalidade nenhuma. Mas, a julgar pela conversa que tive com o Nuno Pereira, para ele o crime mais asqueroso é o de lesa-videoclube. É isso que está a «desestabilizar a nossa muito fragilizada sociedade». Não é a ganância, nem os lobbies, nem os abusos de poder, nem a corrupção, nem a burocracia opaca, nem as leis feitas à medida de interesses como os do Nuno. Claro que não. O grande problema é a privacidade dos cidadãos e a partilha gratuita de ficheiros.

1- Público, Site do PS atacado, Sócrates é o alvo (primeiro comentário, último da lista). Obrigado pelo email com a deliciosa notícia.
2- Blog da Paula Simões.
3- Tugaleaks, Sobre
4- Treta da semana (passada*): A ACAPOR, a partilha e a pirataria.
5- Comentários no Torrentfreak, Movie Rental Outfit Hacked, Emails Leaked, Redirected to The Pirate Bay
6- 5 Dias, O DILEMA DO MACEDO: DEMITIR OU DEMITIR-SE!, via Esquerda Republicana
7- I Online, Chefe da PSP violou segurança e facilitou a vida aos piratas

domingo, dezembro 04, 2011

Treta da semana: pescoços de peixe.

O pescoço da girafa é provavelmente o mais famoso. É também interessante porque não há consenso acerca das pressões selectivas que o moldaram assim. Mas, ao contrário do que sugere o Mats, o problema não é que «Não se afigura possível que os evolucionistas construam um cenário cientificamente plausível para a origem quer do pescoço da girafa quer do seu complicado sistema de regulação da pressão sanguínea.»(1) O problema, como é comum nestas coisas, é que as características de cada espécie evoluem em conjunto e sujeitas a muitas pressões selectivas.

Há evidências de que as girafas usam o longo pescoço – e longas pernas – para chegar às folhas mais altas. Isto não quer dizer, ao contrário do que o Mats julga, que as girafas só possam comer folhas altas. «Se as girafas mais baixas morreram porque não conseguiram chegar aos ramos mais elevados, o que é que aconteceria às girafas bebés ou ainda em desenvolvimento físico?» As girafas mais baixas, ou bebés, comem folhas mais baixas, obviamente. O que acontece é que, se a altura maior permite acesso a mais comida, em média esses indivíduos terão uma vantagem sobre os outros. Passam menos fome, resistem mais em tempos de escassez, tornam-se mais corpulentos e têm mais probabilidade de deixar filhos.

Mas as girafas também usam o pescoço comprido para combater, especialmente os machos, para se equilibrar quando correm e para conseguir chegar ao chão(2). Podemos considerar até que a girafa, ao contrário de ter um pescoço grande, tem-no demasiado curto para o tamanho das pernas, o que a obriga a uma ginástica incómoda cada vez que quer beber água (3). A dificuldade em compreender a evolução da girafa – não só do pescoço, mas de toda a sua anatomia – vem de ser preciso testar hipóteses acerca de quais destes factores são os mais importantes. Isto é difícil, não só pela complexidade da interacção de todos estes elementos, anatómicos e evolucionários, mas também pela complicação adicional de aquilo que é mais importante para as girafas hoje não ser necessariamente o mesmo que moldou a sua evolução nos últimos milhões de anos. Como os biólogos exigem um bom fundamento para qualquer modelo, isto não pode ser despachado com dois pais nossos e uma avé Maria.

Para o Mats, isto (e quase tudo) é muito mais simples. Foi o deus dele. E o Mats até sabe porquê. Esse deus criou o pescoço da girafa assim porque desta forma «Refuta o naturalismo ao mostrar que o pescoço nunca poderia ser o resultado de forças naturais». Esta hipótese parece perfeitamente razoável até ao momento em que se pensa nela. Ou que se pensa, seja em que for.

Primeiro, não há evidências que justifiquem concluir, em definitivo, que algo “nunca poderia ser o resultado de forças naturais”. Se um fenómeno não encaixa na nossa compreensão das forças naturais talvez se justifique concluir, provisoriamente, que tem origem sobrenatural. Durante muitos séculos foi isso que a biologia fez. Mas é incorrecto concluir que “nunca poderia ser” devido a forças naturais. Isso exige que já se saiba tudo o que há a saber acerca da natureza. Parece-me pouco modesto da parte do Mats presumir tal coisa, especialmente tendo em conta o que ele escreve acerca da biologia.

Em segundo lugar, o pescoço da girafa desenvolve-se e funciona de acordo com os processos naturais que compreendemos. É preciso válvulas especiais para manter a pressão sanguínea na cabeça, um coração mais forte, artérias mais resistentes e até compressão adicional nas pernas para compensar as diferenças de pressão num animal com seis metros de altura. Todos os problemas da estatura e anatomia da girafa são resolvidos por processos naturais. Não há nada de milagroso na girafa. Se o deus do Mats quisesse refutar o naturalismo devia ter criado fadas, dragões ou unicórnios. Para esse propósito, a girafa não serve.

Finalmente, e ao contrário do que o Mats alega, temos muitas evidências da evolução do pescoço da girafa por processos naturais. Não só pelo registo fóssil (4) e pelo seu parente vivo mais próximo, o okapi (5), mas também pelos vestígios que ainda persistem na anatomia da girafa. Um exemplo claro é o nervo laríngeo recorrente, que liga o cérebro à laringe mas passa sob as artérias do coração. Mesmo em animais como nós, de pescoço modesto, isto já implica uma volta considerável. Na girafa obriga a metros de nervo para percorrer meros centímetros. Nos peixes que foram nossos antepassados, o predecessor do nervo laríngeo ligava directamente o cérebro às brânquias, passando atrás dessas artérias. Mas como a evolução não tem inteligência, não prevê o futuro e depende da acumulação de pequenas mutações, o trajecto foi-se mantendo enquanto o pescoço evoluía e o coração se ia afastando do caminho mais curto. Ficou assim este legado, entre muitos, demonstrando claramente a ausência de um plano inteligente para a criação dos seres vivos.


Richard Dawkins Demonstrates Laryngeal Nerve of... por blindwatcher

1- Mats, O pescoço da girafa
2- Steven Novella, Giraffe necks
3- Craig Holdrege, The Giraffe's Short Neck
4- Mitchell, G.; Skinner, J.D. (2003). On the origin, evolution and phylogeny of giraffes Giraffa camelopardalis. Transactions of the Royal Society of South Africa 58 (pdf)
5- Wikipedia, Okapi

sexta-feira, dezembro 02, 2011

A (i)moralidade do free ride.

Numa discussão enterrada em comentários, o Wyrm e o João Vasco defenderam que a copiar de graça obras sob exploração comercial é imoral por ser free riding, aproveitar-se do investimento de outros sem dar qualquer contributo. Acrescentou também o João Vasco que, se é preciso ponderar vários direitos, há margem para discordar legitimamente acerca da moralidade da cópia: «Se admites que há dois pratos na balança e só é imoral quando um prato pesa mais que o outro, e que a tua percepção é que este pesa muito e o outro pesa pouco, é fácil discordar, basta ter a percepção de que aquele que dizes pesar pouco pesa bastante mais.»(1) Mas o problema é mais claro do que isto.

Vou assumir que as consequências de um acto são importantes para avaliar a sua moralidade, de tal forma que, se um certo acto é moralmente aceitável, então um outro acto que tenha as mesmas consequências será também moralmente aceitável. Se alguém defender o contrário, que dois actos com as mesmas consequências podem ter valores morais muito diferentes, tenho de exigir uma boa justificação para isso. À partida, não faz sentido que assim seja, e penso que o João Vasco, pelo menos, concordará com este princípio.

Isto ajuda a compreender porquê, e quando, é que o free riding é imoral. Penso ser consensual que cancelar o contrato com a EDP e, às escondidas, ligar a minha casa à rede eléctrica seria um exemplo de free riding e seria imoral. A questão interessante é porquê. Muitos dirão que isto é imoral porque, se muita gente o fizer, a distribuição de electricidade deixa de ser rentável. O problema económico do free riding é esta perda de um bem útil por haver poucos que o paguem. A premissa é que esta consequência faz pender o tal “prato da balança” e justifica classificar o acto de imoral. Mas este raciocínio tem de estar errado porque reconhecemos a qualquer pessoa o direito moral de não ter contrato com a EDP. Até mesmo se, no limite, o exercício desse direito por parte de muitas pessoas destruir a rentabilidade comercial da distribuição. Por isso, a imoralidade de usar electricidade da rede sem pagar tem de se justificar por outras consequências que distingam este acto do simples cancelamento do contrato. Neste caso, o problema moral vem de usar aquela electricidade, um bem escasso, aumentando os custos de produção e reduzindo a disponibilidade de energia para os outros que pagam por ela. É isto, e não o perigo do colapso do sistema, que torna este acto imoral.

Podemos aplicar os mesmos critérios à cópia privada de obras sob exploração comercial. É preciso pesar os “pratos da balança”, mas tanto o João Vasco como o Wyrm (e qualquer pessoa que conheço) reconhecem ser um direito moral de cada individuo não comprar um CD ou DVD, mesmo que o exercício desse direito por parte de muita gente leve as editoras à falência. Assumindo que dois actos com as mesmas consequências são moralmente equivalentes, só podemos considerar imoral o acto de copiar um DVD ou CD para usufruir gratuitamente da obra se esse acto tiver consequências para além de não se comprar o CD ou DVD. Mas, ao contrário do exemplo da electricidade, neste caso não há outras consequências. Copiar um CD, mp3, avi ou algo do género não consome nenhum bem escasso nem encarece a produção, nem tem qualquer efeito para além da eventual venda perdida. Por isso, não é razoável classificar de imoral a decisão de não comprar tendo copiado se aceitamos como moralmente legítimo não comprar sem ter copiado.

Além disso, se não comprar é um direito moral quer se copie quer não, visto as consequências serem as mesmas, então é imoral coagir a compra restringindo a cópia. Medidas como “regular” a cópia privada, proibir a partilha ou proteger pela lei as restrições digitais não são uma forma aceitável de resolver o suposto problema de free riding. Digo "suposto" porque não me parece ser um problema a exploração comercial de uma obra ficar em risco por cada um só comprar o que quer. Mas se o free riding puser em causa a criação de algo que queremos incentivar, então a solução mais justa é usar o dinheiro dos impostos. É o que se faz com muitos problemas deste tipo, desde bibliotecas públicas e escolas de arte até à defesa nacional. Imoral é tentar obrigar as pessoas a comprar, seja por via legal seja inventando obrigações morais.

1- O argumento moral.