No post sobre o conto do César das Neves mencionei, de passagem, o problema de «adoçar [os] males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir». Em resposta, o Nuno Gaspar criticou aos ateus a falta de «engajar-se com os miseráveis, os mais frágeis, os deficientes»(1), e o João Silveira citou a história da viúva, no evangelho de Marcos (12, 41-44), que dá as duas únicas moedas que tem e, por isso, o acto dela vale muito mais do que o muito dinheiro que os ricos possam dar, pelo sacrifício que isso representa.
Hoje vemos a sociedade de uma forma única na história. Consideramos que todas as pessoas são iguais perante a lei; que não há escolhidos dos deuses, com mais direitos do que os outros. Reconhecemos a todos alguns direitos inalienáveis, independentes de serem nossos “irmãos”, da nacionalidade, sexo ou religião, ou até de gostarmos dessas pessoas. E compreendemos que a sociedade é um contrato colectivo para o qual todos devem contribuir. Isto tem duas consequências importantes. Leva-nos a encarar a injustiça, a miséria e a doença como problemas a resolver. Não são fatalidades nem desígnios misteriosos, mas sim algo que se deve prevenir ou remediar. E leva-nos a assumir, entre todos, o dever de os resolver. Não é por piedade que respeitamos os direitos dos outros, nem por caridade que pagamos os impostos, nem por santidade que toleramos diferenças ideológicas ou culturais. É por dever e decência. É o que esperamos de qualquer cidadão como parte do seu papel na sociedade.
O cristianismo tem uma abordagem muito diferente. Assenta na premissa de que toda a existência terrena é um apenas um teste. Deus dá-nos vida, decide se nascemos ricos ou pobres, inteligentes ou burros, feios ou bonitos, e nós temos de viver assim até que ele nos tire de cá. Nem podemos sair mais cedo, porque é pecado. Conforme o nosso desempenho durante estas décadas, teremos uma eternidade de alegria ou de sofrimento. Por isso, o que importa é a devoção de cada um, porque as circunstâncias são só cenário. Como comentou há tempos o Miguel Panão, «A grande diferença entre nós está [...] nas diferentes visões de uma cultura da ressurreição e cultura da morte. A implicação de uma criança que morre de um mal natural é mais problemática do ponto de vista da cultura da morte do que de uma cultura da ressurreição. [Se] em Deus a vida continua, onde está a morte?» (2).
Isto tem também implicações importantes. A injustiça social, o sofrimento dos mais pobres, a doença ou a discriminação não são problemas a resolver. São a vontade de Deus, que cria pessoas em diferentes condições sociais, com diferentes sexos, nacionalidades, religiões e cores, e se o faz assim alguma razão terá. Nem se pode assumir que somos moralmente iguais e que, por exemplo, uma mulher pode dirigir a Igreja Católica ou celebrar missas. Portanto, aquilo que se faz por terceiros conta por quanto custa fazer e não pelo bem que faça aos outros. Isto vê-se claramente por todo o cristianismo.
A passagem da bíblia que o João Silveira citou enaltece a dádiva da viúva pelo sacrifício desta e não pelo parco benefício que as duas moedas tenham trazido a alguém. Perante qualquer desgraça, os cristãos rezam pelas vítimas. Para quem esteja soterrado nos escombros ou à deriva num bote salva-vidas, as vigílias, orações e promessas dos crentes não servem de muito. Mas o que conta é a devoção de quem reza. Afinal, se a vida continua em Deus, pouco importa que morra gente em terremotos, afogada, ou o que calhar. O que importa é que alguém se sacrifique por isso. Jesus é o melhor exemplo. Podia ter feito tanto por tanta gente, como ensinar noções básicas de medicina preventiva, abolir a escravatura, condenar o racismo e discriminação sexual ou defender a liberdade de crença e opinião. Nos séculos que se seguiram, isto teria poupado muito sofrimento a muitos milhões de pessoas. Mas não. Umas bem-aventuranças, umas parábolas irrelevantes, e depois deixou-se matar. Morreu por nós e deixou tudo na mesma.*
A consequência disto é que a caridade cristã não se preocupa muito em resolver problemas e nem sequer é acerca de quem precisa. É uma caridade umbiguista, focada no sacrifício do caridoso em detrimento das carências do necessitado. A Madre Teresa é louvada pela sua dedicação aos pobres, por ter segurado a mão de quem morria e amado quem era miserável. Se tivesse organizado saneamento básico, campanhas de vacinação ou de medicina preventiva, salvando muita gente em vez de os amar até à morte, os cristãos não lhe ligavam nenhuma. Mas sacrificou-se e sofreu com quem sofria e, por isso, é uma santa.
Esta divergência ideológica faz-me suspeitar que estaríamos melhor sem a caridade cristã. Em vez da esmola e do esforço despendido em gestos simbólicos, era preferível dedicarmo-nos a resolver os problemas da sociedade de uma forma justa e eficaz. Não por caridade ou pena dos pobrezinhos, mas porque é dever de todos mitigar as injustiças cometidas pela natureza. Uma natureza que não nos ama nem nos está a testar, mas que é indiferente ao que fazemos ou sofremos. As crenças na vida depois da morte, num deus bondoso, no valor do sacrifício pelo sacrifício e na premissa pouco pragmática de que o “amor” resolve tudo só atrapalham. Na melhor das hipóteses, levam a menosprezar os problemas e a avaliar incorrectamente as soluções. E, na pior das hipóteses, servem de desculpa para se aproveitarem da miséria alheia.
* Excepto para os judeus, que muito se tramaram com a desculpa de terem morto o deus dos cristãos.
PS: Boas festas.
1- Comentários em ”Conto de Natal”
2- Comentário em Bondade