quarta-feira, outubro 05, 2011

Cópias, descrições e censura.

Outro equívoco que tenciono mencionar amanhã (1) é a ideia de que o sistema habitual de direitos de cópia se pode aplicar, da mesma forma, no domínio digital (2). Com o desenvolvimento de novas tecnologias, este sistema foi crescendo, desde o papel impresso a suportes como fotografia, discos e fitas magnéticas, mas sempre mantendo a cópia como conceito fundamental. O que se regulava era criação de objectos análogos. Por exemplo, se uma editora tinha o direito exclusivo de vender certos discos, esse direito cobria apenas os discos que produzissem um som semelhante quando tocados daquela forma específica. As fronteiras que delimitavam cada monopólio eram definidas por critérios objectivos. Ou seja, por critérios que dependiam apenas dos atributos desses objectos, e não por aquilo que as pessoas tencionariam ou poderiam fazer com esses objectos.

No domínio digital isto não é possível. Todos os ficheiros são representações de números em suportes arbitrários. Dos impulsos de luz na fibra óptica aos campos magnéticos num disco rígido, o que interessa em cada ficheiro é a sequência de 0s e 1s que compõe esse (enorme) número em binário. E esses números, além de poderem descrever o que quisermos, também podem ser eles próprios descritos com quaisquer outros números. No domínio digital lidamos com descrições numéricas em vez de cópias, e isso é fundamentalmente diferente.

Por exemplo, em 2006, a JGC Lda pediu à IGAC que deixasse de considerar os CD+G como videogramas para efeitos fiscais. Os CD+G são CD usados para karaoke, contendo faixas de música e gráficos com as letras e imagens de fundo. Ou seja, contêm códigos numéricos que são interpretados pelo leitor como especificando sons e imagens. A IGAC deu razão à JGL Lda, que alegou que «Os gráficos não existem fisicamante [sic] no suporte, mas são gerados pelos aparelhos de leitura»(3). Mas isto é exactamente o que se passa com qualquer DVD. Não há “gráficos no suporte” digital. É tudo números interpretados pelo leitor. Não defendo que um CD de karaoke seja taxado como um DVD, mas, ao contrário do disco de vinil e a cassete VHS, os CD e DVD são fundamentalmente o mesmo. São suportes para números em binário, números que podem ser interpretados como som ou imagem ou outra coisa qualquer. Se tocarem o vídeo abaixo sem o som, verão apenas uma interpretação visual dos bytes do ficheiro de música original, que também não tinha “gráficos no suporte”.



Descrever e copiar são coisas diferentes. Se alguém tem o monopólio sobre o 15, em vez de copiar “15” posso descrever “30 a dividir por 2”. Os ficheiros que normalmente usamos são números muito maiores, mas o princípio é o mesmo e o computador é muito bom a fazer contas. Por exemplo, vamos supor que temos dois ficheiros, um com as obras de Shakespeare e outro com uma música dos Beatles. O primeiro, no domínio público, todos podemos copiar e partilhar, enquanto os direitos exclusivos de reprodução do segundo pertencem aos autores da música, aos herdeiros do Michael Jackson e à Sony (4). Como cada ficheiro é uma sequência de 0s e 1s, podemos calcular um terceiro ficheiro com 1 em cada posição onde os outros dois sejam iguais e 0 onde sejam diferentes. Este terceiro ficheiro, resultado de uma operação algébrica trivial, não é cópia de nenhum dos outros, nem de qualquer música ou obra literária. Assim, um monopólio sobre as cópias daquela música pode ser facilmente contornado partilhando os outros dois ficheiros que, em conjunto, permitem calcular o ficheiro com a música dos Beatles.

Este exemplo parece rebuscado, mas a realidade é ainda mais complexa. Numa rede P2P os ficheiros partilhados são divididos em fragmentos, esses fragmentos comprimidos e encriptados, empacotados em sequências de bytes de acordo com os vários protocolos de transmissão, muitas vezes transformadas para ofuscar o tipo de tráfego. As sequências de bytes que se transfere numa rede de computadores ao partilhar um filme não só não têm “gráficos no suporte” como são todas diferentes entre si e diferentes do ficheiro original. É inútil usar critérios objectivos que delimitem quais as sequências que se pode partilhar e quais estão abrangidas pelos monopólios porque é sempre possível usar uma sequência para partilhar a informação necessária para recrear outra sequência.

Por isso, estender estes monopólios ao domínio digital implica uma alteração fundamental naquilo que a lei está a conceder. Originalmente, a lei concedia direitos exclusivos sobre a cópia de objectos específicos, havendo critérios objectivos para distinguir o que era cópia ou não era. Uma caixa de fotografias dos sulcos de um disco, tiradas ao microscópio, podia conter toda a informação necessária para recrear a música mas não era uma cópia do disco nem era regulada por esse monopólio sobre a cópia. Agora, o critério tem de ser a intenção das pessoas e o uso que podem dar à informação que partilham, seja qual for a sequência de bytes que transmitem. O poder de proibir a troca de informação e descrições já não é um monopólio sobre a cópia. É censura.

1- Cultura Pirata 2011 (Programa)
2- Outros posts nesta série: Produtores, consumidores e colaboradores e Comunismo, capitalismo e partilha (take 2).
3- Treta da semana: Sem gráfico no suporte.
4- Snopes, The Rights Stuff

24 comentários:

  1. «Os gráficos não existem fisicamante [sic] no suporte, mas são gerados pelos aparelhos de leitura»

    Ahahahahah! Até parece que estou a imaginar o momento Eureka!

    Obviamente, seguindo o raciocínio até à conclusão lógica (como já foi exaustivamente explicado pelo Ludwig) percebe-se facilmente que qualquer informação num suporte digital se comporta da mesma forma, isto é, "não existe fisicamente"

    Mais, eu até apostava que durante algum tempo, os autores de tão brilhante postulado não se apreceberam da coisa, tão contentinhos estariam com a esperteza saloia!

    É só rir!

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  2. Ludwig,

    O evento de amanha vai "cair" na net depois? :-)

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  3. Icarus,

    Vai ser transmitida ao vivo, e eu tenciono gravar a minha apresentação e depois pôr online.

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  4. Caracas entrei no site e não vi. Foi mal pela pergunta idiota :-(

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  5. Ludwig,
    Completamente fora to tópico, mas és capaz de saber isto: qual é a melhor palavra em português para o inglês "tenure"? O mais próximo que encontrei foi "livre-docência", mas acho que é capaz de haver algo mais próximo.

    Obrigado.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Ludwig,

    Esse argumento é manhoso e nunca me convenceu.

    O problema com esse argumento é que iliba completamente o plágio.
    Eu crio um ficheiro que, lido no formato mp3, corresponde à «Marcha Imperial» de Jonh Williams, e digo que aquilo é da minha autoria. Se alguém me acusar de plágio eu alego que «objectivamente» são 0s e 1s, e muito diferentes da descrição .wav da música, portanto ninguém pode alegar que existiu aqui alguma forma de plágio.

    Existem casos em que é impossível determinar objectivamente se ocorreu plágio, ou ter uma prova material decisiva. Mas se eu traduzir um livro do Asimov para português e disser que é da minha autoria, estou a incorrer em plágio. Para determiná-lo vê-se até que ponto o conteúdo (em termos de ideias) que eu pretendo obviamente passar com aquela cadeia de texto é semelhante (com elevada especificidade) ao conteúdo original.

    Alertar para as dificuldades técnicas de provar uma situação de plágio é bom, mas não é razão para alegar que o conceito perde o significado quando entramos no domínio dos formatos e cifras digitais. E se o conceito de plágio pode continuar a ser usado, está-lhe subjacente o conceito de cópia que ultrapassa o formato específico - o conceito de cópia do «conteúdo».
    Se tu tiveres um ficheiro com 0s e 1s que "«por coincidência»" quando descodificado de determinada forma* permite visionar o filme «A guerra das estrelas», é relativamente seguro dizer que é esse o objectivo do ficheiro. E parece mais fácil e objectivo classificá-lo como sendo uma cópia desse filme, do que classificar uma tradução portuguesa da «Fundação» uma cópia da obra de Asimov para efeitos de aferir a ocorrência de plágio.

    *que não seja uma forma tal que qualquer outro ficheiro resultaria nesse visionamento, mas apenas uma categoria muitíssimo reduzida de ficheiros com a mesma informação.

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  8. João Vasco,

    «O problema com esse argumento é que iliba completamente o plágio.
    Eu crio um ficheiro que, lido no formato mp3, corresponde à «Marcha Imperial» de Jonh Williams, e digo que aquilo é da minha autoria.»


    Nota a diferença entre eu escrever isto que escrevi até aqui, ou eu escrever assim:

    João Vasco,

    O problema com esse argumento é que iliba completamente o plágio.
    Eu crio um ficheiro que, lido no formato mp3, corresponde à «Marcha Imperial» de Jonh Williams, e digo que aquilo é da minha autoria.

    O problema do plágio não tem nada que ver com a cópia. Tem simplesmente que ver com a mentira acerca da autoria, ou explicitamente alegando autoria de algo que outro criou, ou implicitamente omitindo aquelas convenções como aspas, etc.

    «Existem casos em que é impossível determinar objectivamente se ocorreu plágio, ou ter uma prova material decisiva.»

    O problema não é determinar. Se eu copiar um disco de vinil fazendo outro disco igual, e depois queimar a cópia e enterrar as cinzas será impossível determinar que o copiei ou ter prova material decisiva. Mas a distinção entre uma cópia de um disco e um disco diferente que não é cópia continua a ser objectiva (função dos atributos desses objectos, disco e cópia).

    Mas se alguém escreve 10101010101 e eu transmito para um colega 01010101010 não há maneira objectiva de saber se eu estou a violar o monopólio sobre o 10101010101 só pela análise das sequências em causa. É preciso assumir algo acerca do que eu pretendo fazer e o colega pretende fazer, etc. Não é uma questão de ter provas concretas. É um problema fundamental de nem podermos decidir se uma sequência descreve outra ou não.

    «Alertar para as dificuldades técnicas de provar uma situação de plágio é bom, mas não é razão para alegar que o conceito perde o significado quando entramos no domínio dos formatos e cifras digitais.»

    O plágio não perde o significado. O plágio é o acto consciente e deliberado de se fazer passar por autor de algo que se viu outro criar. Nota que se tu independentemente escreveres o mesmo que eu (a mesma história, o mesmo teorema, etc) isso não é plágio. Só é plágio se tu vires o que eu escrevi, escreveres igual ou parecido e disseres que foste tu que tiveste essa ideia. O plágio não tem absolutamente nada que ver com este argumento que eu apresento aqui no post...

    «Se tu tiveres um ficheiro com 0s e 1s que "«por coincidência»" quando descodificado de determinada forma* permite visionar o filme «A guerra das estrelas», é relativamente seguro dizer que é esse o objectivo do ficheiro. E parece mais fácil e objectivo classificá-lo como sendo uma cópia desse filme»

    Sim. Mas a questão não é essa. Imagina que tenho um filme das minhas férias. Mando-te o filme das minhas férias. E depois mando-te uma lista dos bits do filme das minhas férias que deves trocar de valor para obter a guerra das estrelas. O meu argumento não tem que ver com autoria nem plágio mas simplesmente com isto: as instruções para alterar os bits do meu filme das férias para que se fique a ver o guerra das estrelas não são uma cópia do guerra das estrelas, e para proibir a troca dessa informação sob qualquer forma é preciso censura e não apenas restrições sobre a cópia.

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  9. Lucas (Mats?)

    É difícil porque “tenure” tem um significado muito específico e não há nada exactamente igual no sistema português. Eu já vi a nomeação definitiva traduzida como “tenure”, mas a ideia que tenho é de que a nomeação definitiva é mais fraca do que o tenure. A alternativa é pertencer ao quadro, tipicamente quando passa de professor auxiliar a professor associado. “Livre-docência” nunca vi...

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  10. Ludwig:

    «O problema do plágio não tem nada que ver com a cópia. Tem simplesmente que ver com a mentira acerca da autoria»

    A autoria de quê?

    Repara no seguinte, se eu tenho um texto com o livro «A fundação» em Português, em que medida é que podemos dizer que esse texto corresponde ao texto original da «The foundation»?

    Para dizermos que existiu plágio temos de dizer que essa correspondência existe.
    Mas de acordo com o teu argumento essa correspondência não pode existir, porque:
    a)não existe um critério objectivo que permita aferir que os textos são «iguais», ou demasiadamente semelhantes.
    b)a semelhança não está nos caracteres, está nas ideias que esses caracteres procuram transmitir. Sem semântica não tens semelhança entre os textos.

    « Mando-te o filme das minhas férias. E depois mando-te uma lista dos bits do filme das minhas férias que deves trocar de valor para obter a guerra das estrelas»

    Nesse caso pode ser difícil provar que o teu objectivo era mandares-me o «conteúdo» da guerra das estrelas. Mas se me mandares o .avi, e disseres que aquilo na verdade é um ficheiro de temperaturas numa série de sensores, duvido que o tribunal acredite em tamanha coincidência.

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  11. João Vasco,

    «Repara no seguinte, se eu tenho um texto com o livro «A fundação» em Português, em que medida é que podemos dizer que esse texto corresponde ao texto original da «The foundation»?»

    Neste caso, seja em que medida decidas dizer tal coisa, podes criar critérios objectivos para o decidir. Ou seja, critérios baseados nos textos em si e não em intenções ou actos de sujeitos. Determinar se algo é uma cópia é um problema assim, que pode ser resolvido com critérios que olhem apenas para os objectos em causa e não dependam dos sujeitos. Assim, se um texto impresso é demasiado parecido com outro, ou se é o equivalente ao outro noutra língua, podemos dizer que foi cópia (ou tradução) mesmo que a pessoa que o tenha criado seja analfabeta e não saiba o que fez (usou uma fotocopiadora por engano ou clicou no google translate sem saber).

    Para determinar se algo é plágio, ou homicídio qualificado, ou burla com dolo, ou mentira para proveito próprio, etc, já não podes olhar apenas para o acto ou os objectos, mas tens de considerar o sujeito. Esses casos exigem critérios subjectivos (no sentido de serem acerca dos sujeitos). Escrever o mesmo que o outro será plágio se foi escrito depois de ver o que o outro escreveu mas não se lá chegou por si próprio (senão era uma razia nos exames, visto que todos os alunos com a resposta certa têm respostas parecidas, e seria equivalente a terem todos copiado uns pelos outros...). A censura é um problema deste género. Se queres impedir a troca de certa informação, tens de olhar não só para a mensagem mas também considerar o que os intervenientes podem extrair dela, etc.

    O meu ponto não é que o plágio se pode determinar por critérios objectivos. Não se pode, porque depende do conhecimento do sujeito e das suas intenções. O meu ponto é que o copyright costumava ser algo com limites objectivos (a cópia era definida de forma independente das intenções dos sujeitos e apenas em função dos objectos) mas, no domínio digital, isto já não pode ser assim e tens de converter a abordagem em censura, fundamentalmente diferente porque a questão agora não é acerca dos objectos em causa (os 01011010101....) mas acerca daquilo que as pessoas tencionam fazer com eles ou podem fazer com eles.

    O problema do plágio não tem nada que ver com isto.

    «Nesse caso pode ser difícil provar que o teu objectivo era mandares-me o «conteúdo» da guerra das estrelas. Mas se me mandares o .avi, e disseres que aquilo na verdade é um ficheiro de temperaturas numa série de sensores, duvido que o tribunal acredite em tamanha coincidência.»

    Concordo. Mas o problema está no critério se ter tornado a intenção ou finalidade do ficheiro, e não o ficheiro em si. Imagina que eu mandava a alguém uma série de fotografias de um disco com o objectivo dessa pessoa poder fazer em casa dela um disco igual. Isso não seria uma violação do copyright do disco, da minha parte, porque o que eu tinha enviado não era uma cópia do disco. A pessoa talvez fosse usar essa informação para violar o copyright, mas isso era irrelevante. A intenção, propósito, objectivo, etc não tinham nada que ver com o facto de eu não ter copiado o disco, e pronto.

    No domínio digital isto foi invertido. Não interessa se os bits que eu te envio são minimamente parecidos com os do ficheiro original a proteger, ou se a sequência é totalmente diferente por enviar em fragmentos encriptados com ofuscação do protocolo. O que interessa ao tribunal é se a informação que te envio pode ser usada por ti para esse fim e se ta envio com o propósito de que a uses assim. E isso é censura em vez de regulação de cópias.

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  12. Infelizmente não pude ficar mais tempo para trocar ideias (nem antes nem depois da conferência).
    Ficam os agradecimentos por ter estado num painel que sabia do que estava a falar (e dos múltiplos contextos em torno do tema), coisa que não me pareceu estar a ocorrer pelo menos em metade do painel final.

    Jorge Martins Rosa

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  13. @Lucas: «tenure» = «nomeação definitiva» ou «provimento definitivo»

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  14. Jorge,

    Obrigado pelo comentário. Quanto ao debate final, eu penso que eles até sabiam bem o que estavam a dizer, a julgar pela forma criteriosa com que seleccionaram os dados e deturparam os problemas :)

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  15. «Neste caso, seja em que medida decidas dizer tal coisa, podes criar critérios objectivos para o decidir. Ou seja, critérios baseados nos textos em si e não em intenções ou actos de sujeitos. Determinar se algo é uma cópia é um problema assim, que pode ser resolvido com critérios que olhem apenas para os objectos em causa e não dependam dos sujeitos.»

    Não consegues encontrar critérios inequívocos. Quaisquer critérios que encontres terão sempre de ser baseados naquilo que eles evidenciam a respeito da intenção, naquilo que é «evidente» que não pode ter sido uma criação independente.
    E o problema é ainda mais grave se te lembrares que um carácter num livro não é mais que um desenho. Isso quer dizer que eu posso fazer um «caderno de desenhos» que corresponde à tradução portuguesa da fundação, e se tiver usado uma fonte inventada por mim, posso alegar que aquilo é uma criação minha, que eu sou o autor, e que aquilo são desenhos artísticos e não uma obra. Na verdade, isso é perfeitamente análogo a ter um mp3 da «marcha imperial» e alegar que são leituras de temperatura em vez de uma cópia da obra de John Williams.
    Em ambos os casos as alegações são ridículas porque é evidente que a intenção associada à criação de tais obras não é essa. Isso envolve uma noção razoável das probabilidades, e uma noção razoável do comportamento humano.

    «O meu ponto não é que o plágio se pode determinar por critérios objectivos. Não se pode, porque depende do conhecimento do sujeito e das suas intenções. O meu ponto é que o copyright costumava ser algo com limites objectivos (a cópia era definida de forma independente das intenções dos sujeitos e apenas em função dos objectos)»

    Há aqui dois pontos:

    a) se tu levares as coisas ao limite - o limite de alegar que o .mp3 não é um ficheiro de música mas sim um conjunto de 0s e 1s - então lembra-te que um livro mais do que páginas com letras são páginas com desenhos, e que as fronteiras sobre o que pode ou não pode ser desenhado nunca foram determinadas de forma objectiva - depende sempre daquilo que os sujeitos «percebem» como sendo letras e não das características que o desenho tem de ter para parecerem ou não letras, que nem tinham sido descritas. Nesse sentido, nada mudou.

    b) E se for subjectivo? Isso é fraco argumento para a tua causa. Se é perfeitamente evidente que o objectivo deste ficheiro é transmitir o mesmo «conteúdo» aquilo que há a considerar é se esse acto deve ser permitido ou não, não se para chegar a essa conclusão foi ou não possível utilizar um critério que apenas dependesse do «objecto».


    «E isso é censura em vez de regulação de cópias.»

    Podes dizer que sim, mas a regulação de cópias obviamente acabava por efectivamente censurar...

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  16. João Vasco,

    «Não consegues encontrar critérios inequívocos.»

    Se por inequívocos queres dizer tais que eliminem a possibilidade de erros, então concordo, mas considero essa objecção irrelevante para o meu argumento.

    « Quaisquer critérios que encontres terão sempre de ser baseados naquilo que eles evidenciam a respeito da intenção, naquilo que é «evidente» que não pode ter sido uma criação independente.»

    Isso não é a respeito da intenção. Por exemplo, se o compositor B usa uma frase musical complexa igual à usada pelo compositor A, e o tribunal estabelece que B teve acesso à música de A antes de compor a sua, então pode dar por estabelecido que B copiou a frase de A sem precisar de se pronunciar acerca da intenção. B até pode ter feito isto inconscientemente, sem notar que lhe tinha ficado aquilo do ouvido e sem se lembrar de o ter ouvido que é irrelevante para determinar se houve cópia, porque a cópia é simplesmente aquilo que é parecido e que foi feito a partir do original, seja qual for a intenção.

    «E o problema é ainda mais grave se te lembrares que um carácter num livro não é mais que um desenho. Isso quer dizer que eu posso fazer um «caderno de desenhos» que corresponde à tradução portuguesa da fundação, e se tiver usado uma fonte inventada por mim, posso alegar que aquilo é uma criação minha, que eu sou o autor, e que aquilo são desenhos artísticos e não uma obra. »

    Podes. Mas no uso tradicional do copyright isto não te adianta de nada porque os factos objectivos são que: a) os teus desenhos são uma cópia do texto do livro e b) tu fizeste os teus desenhos depois de saber como era o texto do livro. Independentemente daquilo que seja a tua intenção, tu copiaste o livro.

    Em contraste, supõe que tu crias uma descrição numérica do livro em que um número indica uma letra, seguido de uma lista de números indicando as posições onde essa letra surge no livro, seguido por um “-1” antes de passar à letra seguinte. Isto não é uma cópia do livro. Objectivamente, essa lista de números não é semelhante ao livro. E na aplicação tradicional do copyright, esta lista de números, ao contrário do teu desenho, não seria considerada uma violação dos direitos de cópia. Pode descrever a informação necessária para reproduzir o texto, se interpretada de certa forma, mas não é ela uma cópia do texto.

    Em contraste, se o fizesses agora num computador seria uma violação do copyright pela simples razão de que o fizeste com a intenção de facilitar a alguém a reprodução do texto e que essa pessoa pode ter a intenção de usar esta informação para reproduzir o texto.

    «Se é perfeitamente evidente que o objectivo deste ficheiro é transmitir o mesmo «conteúdo» aquilo que há a considerar é se esse acto deve ser permitido ou não »

    O problema é que o conteúdo a ser transmitido é a informação em si e não uma forma particular de a exprimir. É essa a diferença entre censura e copyright.

    «a regulação de cópias obviamente acabava por efectivamente censurar...»

    Não. Proibir a cópia de um livro de receitas é proibir certos actos específicos que criem algo semelhante a esse livro. Desenhos, fotocópias, fotografia, etc. Isso é diferente de proibir a partilha das receitas em abstracto. Neste caso terias de proibir certas conversas telefónicas, código morse, sinais com bandeiras ou um programa que, recebendo um soneto de Camões, tenha como output um pdf com as receitas.

    É a diferença entre ter, numa galeria de quadros, “É proibido tirar fotografias” ou ter “É proibido dar a outras pessoas qualquer informação acerca do que está aqui exposto se houver alguma intenção, da parte do emissor ou receptor, de que essa informação seja usada para reproduzir algo do que está aqui exposto”.

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  17. João Vasco,

    Um exemplo concreto. Considera a diferença entre proibir a cópia deste quadro do Kazimir Malevich, e proibir a troca de informação que permita a alguém reproduzir essa imagem no seu PC.

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  18. Ludwig:

    Sobre o último exemplo, imagina um exemplo análogo: eu escrevo um livro que consiste unicamente na letra «a». Usando os critérios «objectivos» ninguém poderá usar novamente essa letra.

    Por isso aqui tens de entrar com outro tipo de critérios. Claro que descreveres a guerra das estrelas por palavras vai corresponder a um conteúdo muito diferente da descrição que um ficheiro .avi faz, que é praticamente igual ao «conteúdo» original.

    Quando é evidente que a tua «descrição» corresponde a um conteúdo que não tem diferenças em relação ao conteúdo original, e que tal situação não pode ter acontecido por acidente, entramos no domínio em que esta discussão é realmente relevante: isso deve ser permitido ou não.

    Não é com tecnicismos de dizer que «em última análise» deixámos de ter critérios objectivos, porque «em última análise» nunca os tivemos.

    Ou seja, a discussão tem de se prender na legitimidade ou não de copiar. Porque é evidente que não existe outro objectivo para um ficheiro .mp3 com a marcha imperial que não copiar o respectivo conteúdo. Tornares a discussão tão abstracta que até parece que não só convence quem já está convencido à partida de que a cópia deveria ser permitida.

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  19. João Vasco,

    «Sobre o último exemplo, imagina um exemplo análogo: eu escrevo um livro que consiste unicamente na letra «a». Usando os critérios «objectivos» ninguém poderá usar novamente essa letra.»

    Sim. Usando os critérios do copyright, se te for concedido o monopólio sobre a cópia do "a" ninguém poderá usar essa letra. É por isso que não concedem monopólios por isso. Mas nota que o copyright concedido pelo quadro do Kazimir Malevich implica que ninguém pode legalmente pintar um quadro consistindo de um quadrado preto no meio da tela. E é mesmo isso que acontece na realidade.

    Há outros critérios que determinam se o monopólio é concedido ou não. Por exemplo, se é uma sequência de notas numa pauta concedem monopólio, mas se é uma sequência de ingredientes numa lista de compras, não concedem. Se é um quadrado preto concedem, se é uma letra não concedem. Etc. Isto não é nem consistente nem inteligente, e baseia-se principalmente no lucro dos interessados.

    Mas o que é relevante para o meu argumento é que, se te concedem o monopólio sobre a letra “a”, pelas regras da cópia pré-digital isto proíbe-me de escrever “a” enquanto que pelas regras que aplicam agora isto proíbe-me também de indicar a alguém, sob qualquer representação, que a tua obra consiste na primeira letra do alfabeto. É isso que eu sugiro ser censura, e diferente do que simplesmente proibir a distribuição de representações visuais deste símbolo “a”.

    «Quando é evidente que a tua «descrição» corresponde a um conteúdo que não tem diferenças em relação ao conteúdo original, e que tal situação não pode ter acontecido por acidente, entramos no domínio em que esta discussão é realmente relevante: isso deve ser permitido ou não.»

    OK. Mas não é isso que eu disputo. Escrever “a” ou “a primeira letra do alfabeto” ou “97” ou “%61” corresponde tudo ao mesmo, em codificações diferentes. A diferença que eu aponto é entre a regulação da cópia do desenho “a” e a proibição de duas pessoas de trocarem entre si qualquer mensagem que permita uma delas saber que esse desenho é de um “a”. A primeira enquadra-se na noção clássica de copyright e, em alguns casos, talvez seja aceitável como incentivo comercial. A segunda é censura e não me parece possível justificá-la só para proteger um modelo de negócio. Portanto, quando decidimos se deve ser permitido ou não temos de considerar se se trata da regulação da cópia ou de censura.

    «Ou seja, a discussão tem de se prender na legitimidade ou não de copiar.»

    Não. Porque eu dizer-te “pega num compasso, abre-o 3cm, prende o bico no papel e roda-o” não é o mesmo que eu copiar um círculo de 3cm de raio. A legitimidade de regular a cópia do círculo não é o mesmo que a legitimidade de proibir as pessoas de dizer a outras como desenhar o círculo. Mesmo que seja evidente não haver outro objectivo para “pega num compasso, abre-o 3cm, prende o bico no papel e roda-o” que não seja a pessoa desenhar o círculo.

    Mas voltemos a um exemplo simples. Consideras que proibir a distribuição de cópias do quadro de Kazimir Malevich (um quadrado preto) é o mesmo que proibir a troca de informação que permita reproduzir essa imagem (e.g. “desenha um quadrado preto, e já está”)? Se sim, então admito que vai ser difícil explicar-te o meu ponto. Mas tenho a esperança de que consigas vislumbrar uma diferença :)

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  20. Correcção: «o copyright concedido pelo quadro do Kazimir Malevich implica que ninguém pode legalmente pintar um quadro consistindo de um quadrado preto no meio da tela» devia ser "ninguém pode legalmente expor" em vez de pintar um quadro igual. Mas vai dar no mesmo, para o propósito da conversa...

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  21. Ludwig:

    Provavelmente conheces a distinção entre «letra da lei» e «espírito da lei».

    Tu consideras que é radicalmente diferente proibir as pessoas de escrever «ao1» ou escrever qualquer descrição inequívoca de «ao1» tal como «primeira vogal; quarta vogal, número um». No entanto, é perfeitamente evidente que caso fosse apenas ilegal transmitir «ao1» quem transmitisse a segunda mensagem estaria a obedecer à letra da lei, mas a violar o seu espírito. Era uma forma «esperta» de contornar a lei.

    Agora tu podes dizer que se se lei diz que qualquer mensagem que possa corresponder a uma descrição de «ao1» for ilegal, então qualquer mensagem será ilegal, pois em última análise poderá existir sempre um sistema de codificação que faça essa transformação. O bom senso desaparece pelo caminho.
    Se quiseres dizer que uma mensagem corresponde a «ao1» para efeitos de alegares que é ilegal tem de ser evidente que é esse o objectivo da mensagem. Se eu envio a mensagem «primeira vogal; quarta vogal, número um» é muito claro para qualquer júri qual é o conteúdo que esta mensagem pretende transmitir. Se eu envio a mensagem «bp2», isso dependerá, caso o algoritmo «avança uma posição na tabela de caracteres» for muito comum na transmissão de informação. Mesmo assim, com três caracteres, há muita margem para dúvidas. Se em vez de três caracteres fossem 1000, já seria razoável assumir que quem usou esse esquema quis contornar a lei.

    Por isso, tu podes alegar que o problema está em proibir «ao1». Mas proibir diferentes descrições em relação às quais se possa provar que o seu objectivo era precisamente transmitir o conteúdo ilegal, é a única forma de fazer aplicar o espírito da lei que proíbe a transmissão de «ao1».
    E se estivermos a falar não de 3 caracteres, mas sim 1000 ou mais, é perfeitamente possível fazê-lo sem condenar inocentes. Não consegues provar em tribunal que um ficheiro de ruído tinha como objectivo transmitir a «marcha imperial» se não for esse o caso. As probabilidades de erro são bem inferiores às probabilidades de erro no julgamento de um homicídio.

    «Estava a desenhar pontos ao acaso no meu caderno e «calhou» corresponder a uma descrição perfeita do livro «The Foundation» em português. E agora vão condenar um inocente, só porque disse que era autor desses desenhos!»

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  22. Atenção - quando digo em vez de três caracteres serem mil também me refiro à mensagem «proibida».

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  23. João Vasco,

    «Provavelmente conheces a distinção entre «letra da lei» e «espírito da lei».»

    Sim. Imagina há uma constituição que afirma a liberdade de expressão como direito fundamental, e cria-se uma lei para incentivar o comércio da poesia. O espírito dessa lei é o de conceder um monopólio sem interferir na liberdade de expressão e, por isso, a lei restringe-se à cópia dos poemas. É proibido, sem autorização do titular dos direitos, copiar o poema e distribuir essas cópias. Mas é permitido recitar o poema ao telefone ou distribuir um papel com um conjunto de equações cuja solução é uma sequência de números correspondentes às letras do poema. Isto está dentro do espírito da lei porque a lei não pode interferir com a liberdade de expressão só para criar monopólios comerciais.

    Uma lei que estenda este monopólio de forma a incluir toda e qualquer forma de transmitir a informação necessária para recriar o poema é uma lei que viola este espírito da concessão de um monopólio restrito e limitado que não afecte a liberdade de expressão. Essa é censura, e censura não se justifica para este propósito.

    Agora tu podes dizer que se se lei diz que qualquer mensagem que possa corresponder a uma descrição de «ao1» for ilegal, então qualquer mensagem será ilegal, pois em última análise poderá existir sempre um sistema de codificação que faça essa transformação. O bom senso desaparece pelo caminho.
    Se quiseres dizer que uma mensagem corresponde a «ao1» para efeitos de alegares que é ilegal tem de ser evidente que é esse o objectivo da mensagem.»


    Uma coisa não exclui a outra. Qualquer mensagem pode ser usada para transmitir «ao1». Basta especificar um sistema de codificação adequado. É claro que isso torna óbvio que estamos a usar essa mensagem para transmitir «ao1», mas continua a ser verdade que qualquer mensagem será ilegal se for enviada com o propósito de transmitir «ao1». E se a tua regra é “qualquer mensagem será proibida se for óbvio que está a ser enviada com o propósito de transmitir «ao1»”, a tua regra é censura e não regulação de cópias.

    «proibir diferentes descrições em relação às quais se possa provar que o seu objectivo era precisamente transmitir o conteúdo ilegal, é a única forma de fazer aplicar o espírito da lei que proíbe a transmissão de «ao1».»

    Depende do espírito da lei. Se o espírito da lei for dar algum incentivo económico à venda de papeis com «ao1» escrito sem violar o direito à privacidade de correspondência e livre expressão, o espírito pode ser apenas restringir a cópia de papeis com «ao1» escrito sem proibir mais nada que possa servir para indicar ao receptor que o texto é «ao1». Só se o espírito da lei for impedir a transmissão dessa informação por qualquer meio é que implica isso, mas nesse caso essa lei será uma lei de censura e não uma lei de regulação de cópia. Que é precisamente o meu ponto.

    «quando digo em vez de três caracteres serem mil também me refiro à mensagem «proibida».»

    Nota que no copyright o conteúdo não é proibido. É legítimo ouvir a música, emprestar o CD, cantar no duche, etc. O espírito dessa lei é o de proibir a cópia de expressões específicas desse conteúdo, em circunstâncias específicas, sem proibir o acesso ou o conteúdo em si. O caso é diferente quando divulgar o conteúdo é proibido. Por exemplo, informação privada. Nesse caso já se justifica a censura. Continua a ser censura a regra que proíbe a divulgação dessa informação por qualquer forma que seja, mas como nesse caso há direitos mais importantes do que o modelo de negócio, já concordo que se justifique a censura.

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  24. Eu não percebo como é que raio acreditas que o «espírito» de uma lei que regula cópias não é o de «censurar» algo...
    Pelo menos pretende censurar a cópia ilegal, isso é evidente.
    E além de censurar a cópia ilegal censura também qualquer mensagem cujo propósito seja criar precisamente o mesmo conteúdo.

    Deixa-me dar-te um exemplo com uma forma de censura que as pessoas consideram aceitável: o «segredo de estado».
    O ministro não pode divulgar a informação contida no dossier confidencial. Aqui podemos discutir se é legítima essa proibição ou não.

    Agora imagina que o ministro põe na sua página de internet um ficheiro de texto, que se for lido em formato .wav permite ouvir a sua voz a ler o conteúdo do dossier.
    Em primeiro lugar, ele pode alegar que olhando para o ficheiro de texto em si é impossível encontrar lá qualquer semelhança com o texto que está nos dossiers, e se era esse o texto que ele não podia divulgar, ele não violou lei alguma.
    Mas é perfeitamente evidente que ele limitou-se a usar um subterfúgio. O que é relevante é que ele transmitiu o conteúdo do dossier, e transmitiu-o com enorme exactidão face ao conteúdo original.

    O ministro pode alegar que é injusto e imoral ser obrigado a manter segredo de estado da população, que é censura, que isto e aquilo. E a sua argumentação pode ser mais ou menos persuasiva.

    Mas é ridículo que alegue que a lei não deveria estar feita para tornar o que ele fez ilegal, visto que olhando para a mensagem é impossível concluir «objectivamente» que corresponde à dos documentos que não podia divulgar. Que os textos são radicalmente diferentes.
    Esta linha de argumentação é perfeitamente absurda.

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