Para que serve a arte.
Em 1906, John Philip Sousa, um famoso compositor de marchas militares nos EUA (1), submeteu ao congresso uma petição para abolir as “máquinas falantes” que, temia, iriam «arruinar o desenvolvimento artístico da música» nesse país. Proibir a gravação de músicas seria um disparate mas a preocupação de Sousa tinha fundamento. «Quando eu era um rapaz... em frente a cada casa nos serões de verão os jovens cantavam as canções da época ou canções antigas. Hoje ouve-se essas máquinas infernais a tocar noite e dia.» A indústria da gravação e cópia e as leis que a protegem mudaram radicalmente a nossa forma de criar e usar a arte.
Desde o paleolítico que a arte foi uma forma particularmente humana de comunicar com os outros. No tempo do John Sousa os compositores eruditos citavam os colegas, copiando trechos conhecidos e inserindo-os numa composição. Tal como se faz nos textos escritos. Os músicos populares adaptavam letras e melodias à sua região e alguns estilos musicais, como os blues, eram notoriamente colaborativos, com cada músico aproveitando temas, frases ou mesmo músicas inteiras dos outros. A música fazia parte da cultura. Era algo partilhado, reutilizado, no qual as pessoas participavam e que alimentava a criatividade colectiva.
A industrialização da música, e em particular o copyright, acabaram com isto. Hoje em dia citar uma composição é caso para tribunal, adaptar músicas só pagando licença e, pior de tudo, criou-se a ideia que a arte não é uma coisa que a gente faça. É coisa que vem de longe em rodelas de plástico, é vendida só por agentes autorizados e a nós cabe apenas entrar com o dinheiro para nos darem licença para assistir. E só assistir, porque é ilegal partilhar, modificar, participar ou usufruir da cultura fora do esquema da “indústria cultural”.
Um argumento comum é que temos de impedir a partilha de ficheiros para proteger a arte e a cultura. Esta ideia faria muita confusão ao John Sousa. Para proteger a cultura é preciso fazer precisamente o contrário. É preciso partilhá-la, difundi-la, ensiná-la e usá-la. E se restringir o acesso permite aumentar o preço e o investimento, a fatia mais grossa vai para o distribuidor. Gasta-se milhões em rodelas de plástico e pouco mais.
Pode ser que este sistema tenha a vantagem de financiar produções dispendiosas, como filmes de centenas de milhões de dólares. Mas como é o próprio sistema que faz esses filmes custar centenas de milhões de dólares é difícil dizer se, nesse campo, ganhamos ou perdemos em inflar o preço com restrições legais. O que é certo é o custo para a arte e para a cultura. Este sistema torna a expressão artística num produto pré-fabricado para consumir como vem no pacote. Quanto mais a tecnologia permite misturar imagens e sons, combinar músicas e filmes e partilhar aquilo de que gostamos mais a lei o tenta impedir, privando-nos da função principal da arte. Comunicar.
Enquanto as empresas de distribuição tiverem o poder de decidir o que podemos fazer com a nossa cultura não vamos recuperar aquilo que se perdeu há cem anos. Arte em que participamos em vez de arte que pagamos só para ver.
Espero que ninguém esteja a ler este blog a estas horas. Mas, se estiverem, bom 2009 para todos.
1- E filho de um português, João António de Sousa. Mais na Wikipedia