sábado, setembro 30, 2006

Organismos e Características

Recentemente, o João Miranda perguntou como explicar o altruísmo dos pais e a vida curta de alguns organismos. Os comentários motivaram-me a explicar aqui alguns conceitos que são fundamentais para perceber a teoria da evolução.

Um problema é considerar a sobrevivência do organismo (ou, pior ainda, da espécie) como o propósito da evolução. Por um lado, a evolução não tem propósito, e a selecção natural funciona como uma peneira: os grãos finos passam porque já eram finos, e não se tornam finos com o intuito de passar a peneira. O que somos agora não era o objectivo dos nossos antepassados, mas o resultado do que eles sofreram.

Por outro lado, é a reprodução que interessa. Morrer, para responder ao João Miranda, pode ser uma adaptação. No caso dos salmões, por exemplo, que literalmente se matam para se reproduzir. No caso das abelhas, que morrem para proteger as irmãs. No caso das células de organismos multicelulares, que morrem para proteger a colónia. Porque o mais importante são as características que passam à geração seguinte, e não o indivíduo.

Quando falamos de aptidão ou viabilidade em teoria da evolução, estamos a falar de características (genes, por exemplo) e não de organismos. Um gene humano pode estar presente em indivíduos gordos, magros, altos, baixos, fortes, fracos, homens, mulheres, etc. A aptidão de um gene é a média do sucesso reprodutivo dos portadores desse gene. A aptidão de um indivíduo é irrelevante.

A ordem Hymenoptera dá um bom exemplo. Nesta ordem, que inclui vespas, abelhas, e formigas, o sexo é determinado pelo número de cromossomas. As fêmeas têm duas cópias de cada gene, e os machos apenas uma, tendo metade dos cromossomas. Assim, as filhas partilham 50% dos genes das mãe (os outros 50% vêm do pai), mas as irmãs têm 75% se genes em comum (todos os do pai e, em média, metade dos da mãe). Um gene numa formiga fêmea tem mais vantagens em promover o nascimento de irmãs que de filhas dessa formiga, pois em cada irmã há 75% de probabilidade de estar uma cópia desse gene, e em cada filha apenas 50%. Esta é a principal razão porque nestas espécies a maioria das fêmeas prescinde da reprodução para cuidar das irmãs. Altruísmo? Do ponto de vista do organismo, sim, mas isso é irrelevante. Organismos vão e vêm, e não evoluem. O que evolui é a distribuição de características na população, e é a aptidão das características que temos que considerar para compreender o processo.

2 comentários:

  1. A minha pergunta não era bem essa mas sim:

    como explicar o altruísmo dos pais e a vida curta de alguns organismos com base numa definição de "adaptado" que seja independente de "aquele que se reproduz"?

    O meu ponto no post é que a única forma de explicar esses fenómenos é por definições de "adaptado" igual a "aquele que se reproduz".

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  2. E a minha resposta é que "adaptado" não se refere "aquele" mas sim ao sucesso reprodutivo médio de todos os portadores do gene ou característica cuja aptidão estamos a medir.

    O problema vem do erro de definir aptidão como propriedade do organismo, quando é propriedade da característica que está presente em muitos organismos diferentes.

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