terça-feira, janeiro 24, 2012

O que se discute.

Ainda a propósito do PL 118/XII, o tal da taxa sobre discos e cartões de memória, o Rodrigo Moita de Deus escreveu que não discute o valor da taxa em si e que «O que me chateia ver discutido e [diminuído] é a questão da propriedade intelectual. O valor que damos à criação e às ideias»(1). Se chateia, azar, porque é mesmo isso que temos de discutir.

A convenção de Berna foi assinada em 1886 e, durante pouco mais de um século, este tratado internacional serviu de base a muita legislação sobre o comércio de obras artísticas e literárias. A legislação imposta pelo tratado não tinha a legitimidade de representar a vontade da maioria mas, por outro lado, só afectava editores e os poucos que trabalhassem para eles. Para bem ou para mal, a coisa foi-se aguentando. Mas o crescimento canceroso do âmbito da aplicação destas leis, nestes últimos anos, mudou radicalmente o problema. Agora que nos querem impor mais uma taxa pelo que fazemos em privado com o equipamento que é nosso, importa questionar o fundamento destas medidas e de coisas como a “propriedade intelectual”.

Vamos supor que eu imprimo este texto e vendo essa cópia ao Rodrigo. Quando o Rodrigo olha para o papel, o cérebro dele interpreta as manchas de tinta e forma pensamentos conforme as palavras que eu escrevi. É assim que a escrita funciona. Ora, segundo a lei, o Rodrigo é o proprietário do papel com tinta. E, segundo o bom senso, o Rodrigo é dono dos seus pensamentos. Para mim fica a “propriedade intelectual” sobre aquilo que a lei chama “a Obra”. O problema é que “a Obra” nem é o papel com tinta nem os pensamentos de ninguém, e não parece sobrar mais nada.

Na verdade, a “propriedade intelectual” não é a expressão legal de um direito moral de propriedade sobre alguma coisa do intelecto. Os meus pensamentos são meus e os do Rodrigo são dele, seja quem for o dono do papel. A “propriedade intelectual” é apenas um conjunto arbitrário de monopólios legais. Por exemplo, eu posso proibir o Rodrigo de vender outro papel que tenha manchas de tinta parecidas com estas letras, mesmo que o papel e a tinta sejam dele. Não posso proibir o Rodrigo de emitir sons que correspondam a estas palavras se ele estiver em casa, mas já posso fazê-lo se ele estiver num palco. Estes monopólios são uma forma de propriedade porque os posso vender mas, ao contrário do barrete que nos querem enfiar, não representam qualquer direito moral de propriedade sobre “a Obra”, até porque “a Obra” nem sequer existe; não passa de um truque de retórica legal. O que existe são os suportes físicos, que são de quem os compra, e os pensamentos, que são de quem os pensa. Quando estes monopólios só afectavam o comércio, esta treta pouco importava. Mas agora que isto nos afecta a todos é pertinente discutir se faz sentido conceder poderes legais para proibir tanta coisa a tanta gente.

O “valor” é outra aldrabice. Tal como usam “propriedade intelectual” para disfarçar a referência a monopólios, usam “valor” para não dizer preço. Que é muito diferente, neste contexto. Imaginem que os textos de Camões deixavam de estar no domínio público e passavam a ser licenciados por uma editora. O preço de acesso aumentava muito, mas o valor cultural até seria menor, pela dificuldade acrescida de usufruir dessas obras e pela impossibilidade de criar obras derivadas. Por muito que o Rodrigo se chateie, é importante fazer esta distinção: o preço e o valor não são o mesmo e, na cultura, muitas vezes até são o contrário.

Finalmente, o Rodrigo quer dar valor «à criação e às ideias». Nisto estou de acordo. Valorize-se e incentive-se a criação e as ideias. Mas nem este projecto de lei nem a legislação que temos sobre “propriedade intelectual” serve para valorizar a criação e as ideias. As ideias, enquanto tal, estão explicitamente excluídas da lei. E todo o sistema de incentivos económicos está focado na cópia, que é aquilo de menos criativo e menos valioso que hoje se pode fazer a uma obra. De Gutenberg à Internet, a cópia foi o factor limitante. Arranjar quem escrevesse livros ou compusesse músicas sempre foi fácil; em muitos países e épocas nem ameaças de tortura e morte dissuadiram os autores de criar as suas obras. O problema era levar o suporte da obra desde o autor até ao público. Isso precisava de fábricas, transporte, lojas e uma data de gente e de dinheiro. Foi para isso que se legislou monopólios sobre a cópia.

Hoje a situação é tão diferente que vale a pena discutir alternativas. A cópia é gratuita, a distribuição é instantânea, o autor pode negociar directamente com o público, cada vez somos mais autores e cada vez menos nos importa a treta da cópia. É altura de revermos isso da "propriedade intelectual", do "valor" e de como incentivar a criatividade em vez de limitar a cópia. Se isto chateia o Rodrigo, é lá com ele. Desde que não me venha ao bolso, tem todo o direito de se chatear com o que quiser.

1- 31 da Armada, ainda a cópia privada

13 comentários:

  1. desde que não me venham ao bolso...isso nã é plágio do Cavaco Silva?

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  2. Andar neste blog faz-me mal... Estou em animada discussào no FB explicando a um anormal porque é má ideia mandar o gajo do Megaupload 50 anos para a cadeia...

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  3. Um naturalista tem dificuldade em compreender o valor da propriedade intelectual porque esta assenta na distinção entre informação codificada (ideias, projectos de engenhos, desenhos industriais, músicas, software) e códigos (notas musicais, línguas, códigos binários) e suportes físicos da informação (papel, tinta, electricidade, bandas magnéticas).

    O problema é que esta atitude está a generalizar os comportamentos predatórios no mundo intelectual com riscos óbvios para a integridade científica para além de imporem custos imensos nas pessoas, empresas e Estados que vivem da produção de ideias.


    Uma naturalista tem dificuldade com aquela distinção porque ela refuta o materialismo, mostrando que a informação é distinta da energia e da matéria.
    Também se vê que a informação tem sempre uma causa inteligente e espiritual(o mesmo sucedendo com os códigos), algo que também refuta a visão naturalista.

    Não se conhece nenhuma lei natural ou sequência de eventos físicos que crie códigos e informação codificada.

    O problema central do naturalismo materialista é que a vida depende não apenas dos códigos epigenéticos, mas também de múltiplos códigos genéticos paralelos, sub-códigos, codificando, armazenando e executando quantidades imensas de informação em múltiplos níveis de informação códigos escondidos, etc.

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    1. perspectiva,

      o Ludwig parece distinguir bem códigos, informação e suportes de informação. As ideias que ele defende depende dessa distinção, pois diz que as ideias são distintas das instâncias, mas o perspectiva, ironicamente, é que parece querer tratar tudo como o mesmo.

      Suponho que o perspectiva não tenha os mesmos valores da Free Software Foundation e da Creative Commons, que dependem da distinção entre código, informação e suporte de informação. Eu próprio tenho obras com licença CC e enviei e-mails a algumas pessoas que usaram desenhos meus sem indicar a fonte. Não é uma questão de não reconhecer a autoria. Os "comportamentos predatórios" e riscos "para a integridade científica" são um red-herring do perspectiva.

      A melhor maneira de compreender o que são códigos, informação e suportes de informação é comparando-os com cifras, dados e software. Na cifras a interpreteção de uma sequência de letras é apenas a substituição de cada letra por outra, ao contrário dos códigos, que tratam de palavras ou frases.
      -- http://library.thinkquest.org/J0112850/comparecandc.htm
      Há essa frase feita: "informação é dados em contexto". A ideia de conservação de informação é parva, porque a informação produz-se sempre que dados são recolhidos e processados.
      -- http://www.infogineering.net/data-information-knowledge.htm

      Os suportes de informação podem ser palpáveis (como um disco) ou não, por exemplo, se forem mentais. A informação que armazenam é como a relação entre o software e o hardware. Se der determinado um disco a alguém, fico sem ele. Mas, como a informação é uma abstracção, não a perco por dá-la. Pelo contrário, o risco de perdê-la é menor. Se uma folha de papel é o único suporte de determinada informação, ao queimá-lo, a informação desaparece com ele. Mas mantendo várias cópias, a informação mantém-se viva.

      Como é que o perspectiva trata os códigos, a informação e os suportes de informação de forma diferente, se considera que ele e os sobrenaturalistas são os únicos capazes de fazerem essa distinção?

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    2. http://www.gnu.org/philosophy/words-to-avoid.html
      http://www.gnu.org/philosophy/wipo-PublicAwarenessOfCopyright-2002.html

      "The term “intellectual property” carries a hidden assumption—that the way to think about all these disparate issues is based on an analogy with physical objects, and our conception of them as physical property.

      When it comes to copying, this analogy disregards the crucial difference between material objects and information: information can be copied and shared almost effortlessly, while material objects can't be."
      ( Nota: Richard Stallman é um ateu que criou vários programas informáticos - supostamente, segundo o perspectiva, não é capaz de distinguir informação de suporte de informação )

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  4. E tu que não estivesses na linha da frente a defender toda e qualquer medida reaccionária e retrógada.

    Até gostava que essa pastelada em que acreditas fosse mesmo verdade para tu e a tua corja serem arrebatados o mais depressa possivel.

    Paraíso na Terra!

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  5. Se um dia o perspectiva conseguir entender o que significa código, ele vai se surpreender em perceber como ele escreve merda :)

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  6. É pena que a classe politica pense que a partilha de informação e conhecimento deva parar para assentar nos seus modelos de negócios, quando o que deveria acontecer é as grandes empresas adaptarem os seus modelos de negócio á forma como hoje se partilha, algumas ainda o fazem mas são poucas, pois é muito mais fácil chorar no cantinho quando o governo lhes dá razão.

    Dou aqui um exemplo que conheço bem, em que a adaptação do modelo de negócio foi muito benéfico.
    Havia um jogo online para o computador que tinha uma subscrição mensal e há coisa de 6-7 anos apareceu um servidor pirata que lhes roubou uns bons 10.000 clientes pela sua qualidade. Resultado foi que o FBI encerrou o servidor e prendeu os responsáveis, e como tal apareceram em resposta centenas de servidores pirata a roubar milhares de clientes.
    O que aconteceu á empresa foi que não se apercebeu que tinha que mudar o modelo e como tal, dos próximos de 15 servidores cheios que tinha, passou a ter 2 quase vazios em 2010. Finalmente aperceberam-se do erro que cometiam e mudaram, o modelo, o jogo agora é grátis com possibilidade de comprar coisas dentro do jogo por preços mínimos.
    Resultado para a empresa, já têm em funcionamento um total de 5 servidores todos cheios até rebentar, e o servidor pirata tornou-se muito menos viável.


    Quando todos perceberem que a evolução e partilha de conhecimento não pára para dar lucros ai sim poderemos gerar ideias que mudem a industria e até dêem lucro ás empresas, mas quanto mais depressa se aperceberem que a época dos monopólios acabou melhor para eles, porque nós vamos continuar a partilhar qualquer que seja a lei.



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    off-topic
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    Engraçado como o perspectiva continua a achar que é a religião que define tudo o que é bom na sociedade como direitos de autor e tudo mais, quando na minha opinião a religião é mais parecida com uma censura para o que lhe dá jeito.

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    "desde que não me venham ao bolso...isso nã é plágio do Cavaco Silva?"
    Pelo que sei o presidente vendeu hoje os bolsos no custo justo para comprar pão, portanto isso já não vai ser um problema.

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    1. Estimado Nuno

      A religião em si mesma pode ser efectivamente censória e tem sido.

      Muitos cristãos experimentaram isso quando a Inquisição os queimava apenas por quererem ler a Bíblia.

      Em off topic aproveito para dar conta de uma descoberta recente muito interessante para quem acredita no que a Bíblia diz sobre um dilúvio cataclísmico global


      Também achei interessante uma notícia demonstrando que aqueles que rejeitam o dilúvio global ainda não têm outra qualquer explicação para a extinção maciça das espécies

      Uma outra notícia recente corrobora o que os criacionistas há muito diziam: os Neandertais eram verdadeiros seres humanos, dentro dos parâmetros de variabilidade do género humano

      Também há mais notícias sobre a a inteligência e capacidade técnica do homem antigo embora as datações se baseiem em premissas erradas...


      Já agora, partilho também a descoberta de uma estrela magnética com características que os modelos naturalista de formação estelar não conseguem explicar

      Um bom dia!

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    2. O problema da bíblia é falhar nas explicações para as teorias que propõe, pois as explicações são quase sempre, foi Deus, e por ai se ficam.
      Por exemplo, o perspectiva interpreta a primeira noticia como sinal de um dilúvio feito por Deus, quando até no texto de três parágrafos (e também no vídeo) dizem que "Scientists think the extinct species lived in the caves in the ice age before they became filled with water.". Aqui não fala de dilúvio, quanto muito falará do degelo que ocorre após uma idade do gelo, algo que já tinha sido proposto pelos cientistas como causador de extinção e de mudança na geografia do mundo (caso do canal da Mancha por exemplo).

      Depois fala realmente em acontecimentos para os quais a ciência ainda não tem explicação, no entanto a ciência não diz ter explicação para tudo neste momento, a ciência diz haver explicação para tudo (haver e não ter é bastante diferente).

      A diferença é que se encontrarmos provas que foi um Deus que fez tudo isto eu mudo de opinião e passo a acreditar em Deus. Acho que não se pode dizer o mesmo de quem é religioso pois acreditam até agora sem provas.

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    3. perspectiva,
      tal como cristãos censuraram outros. Por exemplo, só existe um único manuscrito de Lucrécio porque as suas obras eram destruídas.

      Em Atos 19:19 é defendida a queima de certos livros:
      "Muitos também dos que tinham praticado artes mágicas ajuntaram os seus livros e os queimaram na presença de todos; e, calculando o valor deles, acharam que montava a cinqüenta mil moedas de prata."

      Em Tito 1:10-11 : "Porque há muitos desordenados, faladores, vãos e enganadores, principalmente os da circuncisão, Aos quais convém tapar a boca; homens que transtornam casas inteiras ensinando o que não convém, por torpe ganância."

      Qual é a dúvida que tens sobre os conceitos de código e informação, para esclarecer-te?

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