sábado, julho 24, 2010

Estragar palavras.

As palavras servem para agarrar conceitos e mostrá-los aos outros. Cada palavra significa aquilo que cada um pensa quando a fala e percebe quando a ouve. Esta flexibilidade tem vantagens e desvantagens mas, acima de tudo, é inevitável. Conforme vamos pensando de forma diferente vamos falando de forma diferente e, com o passar do tempo, é natural que se cole as palavras a outros conceitos. Por isso a minha objecção a certos abusos das palavras não se deve a algum purismo linguístico, que não tenho. Até porque sem abusar das palavras não havia poesia. O meu problema é quando o abuso serve a falácia e estraga as palavras.

“Roubar” refere um acto que priva ilegitimamente a vítima daquilo que é seu. Mas puxa também outros conceitos, como causar prejuízo, beneficiar o perpetrador, custar dinheiro à vítima e assim por diante. Quando se diz que descarregar um filme é roubar a palavra parece adequar-se se clubes de vídeo e lojas ganharem menos dinheiro por isso e quem sacar o filme beneficiar do acto. Mas a conotação negativa da palavra vem do conceito principal, o da apropriação que se condena por privar alguém daquilo que já tem. Prejudicar o comerciante por não lhe comprar algo não merece esta conotação negativa.

Este truque de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida é uma falácia comum. Quando se chama homicídio ao aborto, terrorismo a um assalto ou se justifica o chip na matrícula alegando a segurança, por exemplo. Nestes casos aproveita-se a analogia com alguns conceitos inofensivos que vêm com estas palavras para desviar o raciocínio para algo mais saliente. O homicídio é um crime condenado pela sociedade, o terrorismo é violência indiscriminada para causar pânico e a segurança é o que nos protege de ameaças. Mas se está em causa a legalidade do aborto não faz sentido assumir à partida que tem de ser crime, o assaltante não é um bombista suicida e o chip na matrícula não protege o dono do carro. Este é um uso enganador dos termos.

A minha objecção a chamar censura ao que a Playboy fez é, em parte, uma objecção a esta falácia para induzir a conclusão que a Playboy está a interferir na nossa liberdade de expressão. É certo que “censura” também significa crítica, reprovação ou repúdio, e a Playboy americana criticou e repudiou as imagens que a editora portuguesa publicou em seu nome. Mas, como o Ricardo Alves aponta, a censura é fundamentalmente «Impedir a divulgação de uma mensagem»(1). É esse impedimento que faz da censura uma coisa má. A censura é má porque obriga a calar-se quem quer dizer algo.

Para justificar chamar censura ao que a Playboy fez o Ricardo vai buscar outros conceitos associados à palavra, dando como exemplo que já apagou «comentários [no Esquerda Republicana]» e dizendo que a censura por parte da Playboy americana, se bem que legítima, «configura uma limitação à liberdade de expressão e de informação». Vê-se aqui o fio por se puxa a conotação negativa da palavra. Apagar comentários num blog não é censura. Se eu escrever este texto no blog do Ricardo e ele o apagar não faz mal porque fica aqui, onde ele não apaga nada. Para ser censura, a limitação à liberdade de expressão tem de impedir a mensagem. Não deixar o Ricardo escrever com a minha caneta ou publicar posts no meu blog não chega para ser censura.

O caso da Playboy é claramente diferente da censura. A Playboy não tem o poder de impedir que se publique fotografias de senhoras despidas ao pé de Jesus. E nem sequer levanta objecções a isso. Convido o Ricardo a testar esta hipótese, se estiver na dúvida. Basta uns minutos com o Gimp*, encher o blog com imagens de Jesus com meninas, e estou convencido que não vai haver reclamações da Playboy. Porque a única objecção da Playboy americana foi que lá pusessem o seu nome sem a sua aprovação. E se é contra isso que o Ricardo protesta, então que me empreste o seu livro de cheques...

Além da falácia de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida, há outra coisa que me incomoda nisto. As palavras são ferramentas. Temos de as ajustar de vez em quando para as manter alinhadas com os conceitos mais úteis. Há dois mil anos “censura” era um cargo político, mas hoje já não temos os sistema de governo dos romanos e afinámos o sentido da palavra.

No entanto, o abuso sistemático das palavras para persuadir pela demagogia em vez da razão tem o efeito contrário. Tira-lhes o gume. Se “censura” for agora apagar comentários num blog ou não querer ter o nome no que os outros publicam, quando precisarmos de designar a censura a sério só teremos uma palavra frouxa que não vale de nada. E, da maneira como estão a empurrar a lei para controlar a informação que trocamos entre nós, esta é uma palavra que convém manter afiada.

* Admito que se tivesse escrito “Photoshop” era mais claro. Mas o Gimp é gratuito e de código aberto.
1- Ricardo Alves, Censura ou não censura

13 comentários:

  1. gosto muito das suas desmistificações

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  2. Este truque de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida é uma falácia comum.


    Concordo plenamente. Termos como "inimigos da ciência", "anti-ciência" ou "fundamentalistas" são um bom exemplo disso.

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  3. Deveria ter sido concordo piamente.
    Um bom ponto a favor dos crentes matemáticos.Poderia ter acrescentado termos como: "blasfémia" "anathema maranatha" 2herético" mas isso seria esperar demais.
    Tomás de Aquino comparava o herege ao moedeiro falso, por este corromper a moeda sustento da vida e o outro a fé sustento da alma.
    Já agora acho que foi no dia de 24 de Julho de 1401 que os Anglos
    passaram a lei DE Heretico Comburendum
    Termos
    3 palavras passam um homem do exílio para o céu, não todo, mas parcialmente, simplisticamente falando e sem senso, pode-se dizer que as palavras censuram e divide.

    Se a verdade é una e o ERRo também tem os seus mártires, qual o distintivo da verdade nas palavras?

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  4. E se eu fosse accionista da Playboy ia crucificar o autor da proeza. Depois de dar uma vista de olhos e sorrir perante as imagens.

    É o mesmo caso de tentar publicar na Bola uma artigo, magnifico, sobre a decorações de interiores.

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  5. «Este truque de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida é uma falácia comum.»
    Que se chama anfibologia ou falácia da equivocação: http://www.fallacyfiles.org/amphibol.html

    Os exemplos que o Mats dá são errados.

    "Fundamentalismo" tem origem num movimento de protestantes cristãos que se designavam por esse nome por aderirem aos princípios fundamentais da Bíblia. Hoje tem outros significados, como o conservadorismo religioso e, mais recentemente, o extremismo ideológico.

    Aqui nunca se usou os termos "inimigos da ciência" ou "anti-ciência" (pelo menos não é encontrado pela pesquisa). Mas "inimigos da ciência" é um termo figurativo que representa os pseudocientistas (como a astrólogos, homeopatas, etc.) e "anti-ciência" refere-se à pseudo-ciência.

    Os exemplos seriam bons se os termos fossem usados com um determinado significado, mas nas outras premissas ou na conclusão são usados com outros significados, mas como se tivessem o mesmo. Por exemplo quando fazem um "ah, ah!" quando aplicam os termos como "fé" e "religião" com significados diferentes dos seus críticos para lhes aplicar.

    No caso da pirataria, há o exemplo dos vídeos de pessoas a roubar carteiras e DVDs, com perguntas como "roubarias um carteira?", para concluir que "roubar é crime" e que fazer downloads é roubar, apesar de nesse caso, "roubar" ter um significado diferente. O poder do argumento está na diferença ser subtil e estar a ser aplicado um conceito mais lato, que não é normalmente aplicado no roubo de uma carteira. Se alguém encontra preços exorbitantes e exclamar "Isso é um roubo!", podemos dizer que nesse caso "roubo" significa o mesmo quando se refere a um roubo de uma carteira?

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  6. O tal de barba, fala de Ritos linguísticos e formais.
    Mas é estragar Palavras, falando da interpretação de textos em hebreu, Jesus falava primariamente Aramaico, dialectos galileus, distintos dos de Jreusalém.
    Mesmo os Israelitas concordam que o Hebreu estava espalhado, no século 1º , mas não era a linguagem principal e por isso interpretações em hebreu, quando os textos bíblicos vieram de várias, fontes é expúrio.
    Isto é tal como a língua hebraica e o arameu (ou aramaico), foi adulterado, modificado, falsificado.

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  7. FINALMENTE VOCÊS Pseudo-CRENTES ofendem-me mais que os pseudo ateístas.
    A vossa Existência como artificialismos da pseudo-fé enoja-me.
    Ou se tem fé na existência de uma força superior, discutindo-se a partir daí, ou prestam-se a um circo.
    Prestam-se a ICONOFILIAS e a rituais supostamente pagãos, (pelas vossas crença).
    Supostos cristãos que não seguem seus ensinamentos, sê-lo-ão
    mesmo? (tal como as gaffes de Ferreira leite)
    Um Hipócrita continua hipócrita mesmo quando pensa ser crente.

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  8. ABUSOS VERBAIS são o corromper palavras, o homicídio foi durante muito tempo um crime permitido pela sociedade, o terrorismo é muita coisa inclusive violência indiscriminada para reprimir
    e a segurança é um termo vago, que nestas fases de abundância no hemisfério ocidental, parece significar o que protege alguns de ameaças (reais ou fictícias ó grindjes)

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  9. HYMNE D'INVOCATION A DIEU
    Et si tu n'existais pas,
    Dis-moi pourquoi j'existerais.
    Pour traîner dans un monde sans toi,
    Sans espoir et sans regrets

    Et si tu n'existais pas,
    Dis-moi comment j'existerais.
    Je pourrais faire semblant d'être moi,
    Mais je ne serais pas vrai.

    Et si tu n'existais pas,
    Je crois que je l'aurais trouvé,
    Le secret de la vie, le pourquoi,
    Simplement pour te créer
    Et pour te regarder.

    E A PALAVRA QUE ESTRAGARAM É:
    sentido
    a fé é a dádiva do sentido, os vossos filhos e netos se os têm, estoliarão e morrerão, vocês e vossas palavras perder-se-ão entre triliões de outras
    Esta civilização desaparecerá.
    E SÓ A FÉ ERGUERÁ OUTRA
    NEM SEI PORQUE DISCUTEM, NENHUM DE VOCÊS TEM FÉ....só em vocês
    pequenas alimárias

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  10. obrigadito ó pirata
    há dois novos posts em cima

    aposto 20%
    que para a semana estão cheios
    o da guerra é girito 1939....2099 ou 2012 ou 8 de Agosto
    coisas

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  11. O Ricardo respondeu-te aqui:

    http://esquerda-republicana.blogspot.com/2010/07/censura-e-liberdade-de-expressao.html

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  12. João Vasco,

    Já lá pus um comentário ontem. Mas estou a ser oprimido pela terrível censura do sistema de moderação de comentários que o Ricardo impôs. Apesar de não me afectar a liberdade de expressão. Assim é: a censura pode vir de onde menos se espera.

    :-)

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