quinta-feira, dezembro 31, 2015

Contra o naturalismo, parte 2.

O Domingos Faria argumenta, resumidamente, que se evoluímos por processos naturais então é improvável que tenhamos a capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras. Mas, se Deus nos criou e quis que tivéssemos essa capacidade, então já é certo que assim seja. Por isso, defende o Domingos, devemos concluir que Deus existe (1). Além dos problemas que referi no outro post (2), esta abordagem comete um erro estatístico frequente entre os defensores do sobrenatural. Robin Collins, por exemplo, como explica o Pedro Galvão (3), argumenta que um universo com as condições necessárias para que surja a vida é muito mais provável se Deus existir do que se Deus não existir e que, como temos de preferir a hipótese com maior verosimilhança, então Deus existe. O erro aqui é que maximizar a verosimilhança serve apenas para seleccionar hipóteses dentro de um mesmo modelo mas não, em geral, para seleccionar os modelos em si, o que exige considerar também os seus graus de liberdade. Infelizmente, explicar este erro exige remexer em alguns detalhes pouco apetitosos de análise estatística, pelo que aviso o leitor que queira prosseguir que o faz por sua conta e risco.

Vamos supor que atirámos uma moeda ao ar vinte vezes e marcámos com um 1 cada vez que calhou cara e com um 0 cada vez que calhou coroa. O resultado foi:
0 1 1 1 0 1 0 0 0 1 1 1 1 0 1 1 1 1 1 1
Um modelo possível para este processo é que a moeda tem uma probabilidade p de calhar cara, e de 1-p de calhar coroa. Deste modelo, podemos seleccionar hipóteses atribuindo valores ao parâmetro p e, para cada valor de p, podemos calcular a probabilidade de obter a sequência observada. A probabilidade dos dados assumindo a hipótese é a verosimilhança da hipótese e, pelo princípio da máxima verosimilhança, escolhe-se o valor de p que maximiza essa probabilidade. Neste caso, será p=0,7, que é a proporção obtida de caras. No entanto, mesmo maximizando a verosimilhança, a hipótese de que p=0,7 dá uma probabilidade de apenas 1 em 202255 de se obter exactamente aquela sequência de caras e coroas. Apesar de ser a maior, é ainda assim muito pequena.

Conseguimos uma verosimilhança máxima maior do que esta se assumirmos que, a cada lançamento, um duende invisível altera por magia a probabilidade da moeda cair cara, fazendo-a ser 1 ou 0 conforme quiser que calhe cara ou coroa. Desta forma, o modelo terá um parâmetro ajustável para cada lançamento, p1, p2, …, p20, e a hipótese de máxima verosimilhança será a que tem pn = 1 para cada lançamento que calhou cara e pn = 0 para cada lançamento que calhou coroa. Isto dá uma verosimilhança máxima de 100%, uma certeza absoluta e duzentas mil vezes maior do que a da hipótese de máxima verosimilhança dada pelo modelo anterior. No entanto, e espero que não surpreenda o leitor, o modelo do duende não é estatisticamente preferível ao modelo “naturalista”.

Seleccionar entre modelos não é como seleccionar hipóteses dentro de um modelo. Modelos diferentes têm espaços paramétricos diferentes e isto tem de ser descontado. O modelo do duende, por exemplo, permite hipóteses com verosimilhança maior simplesmente porque tem mais parâmetros para ajustar aos dados. Por isso, as hipóteses de máxima verosimilhança não servem, por si, para seleccionar entre dois modelos diferentes. Temos de comparar todas as hipóteses integrando a probabilidade dos dados por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros (4). E, se fizermos isto, a evidência dada pelos lançamentos observados até favorece o primeiro modelo, mesmo apesar da verosimilhança da melhor hipótese do segundo ser duzentas mil vezes maior do que a da melhor hipótese do primeiro*.

A aplicação correcta destes métodos de análise estatística não suporta os argumentos probabilísticos em favor da existência de Deus. O modelo do deus omnipotente tem um espaço de parâmetros com infinitos graus de liberdade. Isto permite ajustar-se com grande verosimilhança a tudo e mais um par de botas mas, ao integrar as probabilidades por esse espaço imenso de parâmetros, o valor cai para zero. Como Hume já tinha dito, também a estatística moderna reitera que um modelo com milagres é um modelo para deitar fora.

Além disso, estes argumentos acerca da probabilidade de Deus tiram da estatística conclusões que esta nem pode dar. No exemplo deste post, mesmo que o resultado favorecesse o segundo modelo, só se poderia concluir que era preciso um parâmetro por lançamento. Nada se poderia concluir acerca de ser um duende, uma fada, um extraterrestre, o vento, ultra-sons ou infinitas outras coisas. Esta é outra diferença entre os modelos naturalistas e os que assumem entidades sobrenaturais. Os modelos naturalistas vão até onde se justifica ir com os dados disponíveis. A moeda tem uma certa probabilidade de calhar cara. Porquê? Não sabemos. Isso teria de se ver com outras experiências que não apenas contando caras e coroas. A física assume certas constantes universais. Porquê esses valores e não outros? É uma pergunta interessante mas é trabalho em curso. Em contraste, os modelos sobrenaturais presumem sempre muito mais do que aquilo que é justificável. O Domingos, por exemplo, não só conclui que a nossa capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras vem especificamente do deus cristão, mas propõe até detalhes como «se Deus existe e se a história cristã é verdadeira, então também é provável que Deus tenha criado pessoas humanas e não-humanas com livre-arbítrio [e] algumas pessoas, como Satanás, rebelaram-se livremente contra Deus e a partir de então causaram grande parte dos males que existem no mundo» (1). O termo técnico para isto é overfitting.

PS: Agora vou cortar pimentos, vestir a mais pequena e passar o resto da noite a comer. Continuamos em 2016. Bom ano novo para todos.

O factor de Bayes é de 1,27, em favor do primeiro, mas integrei o primeiro numericamente na folha de cálculo porque não estive para ver se havia solução analítica para esse integral. Por isso este resultado depende de não me ter enganado nas contas. No entanto, o que interessa aqui é a ideia geral e não o valor exacto.

1- Domingos Faria, Argumento contra o Naturalismo Metafísico
2- Contra o naturalismo.
3- Pedro Galvão, A Probabilidade de Deus: O Argumento da Afinação Minuciosa
4- Neste post uso o método do factor de Bayes, assumindo uma distribuição a priori uniforme para os parâmetros. Mas há várias maneiras de seleccionar modelos tendo em conta este problema do sobreajustamento aos dados devido a excesso de graus de liberdade. Se tiverem interesse nisto, há na Wikipedia uma lista: Model Selection.

5 comentários:

  1. Ludwig,

    convém, de todo em todo, que pensemos com regras e com lógica. Se falas de natureza e suas leis enquanto criação de Deus, não venhas de seguida falar de Deus como criação da natureza e corolário de suas leis.
    Vê se consegues encontrar algum ponto de contacto entre Newton, Einstein e Heisenberg e os dez mandamentos e as obras de misericórdia.
    O conhecimento da natureza é da maior importância, mas mais importante ainda é o conhecimento do que verdadeiramente é bom, não apenas enquanto indivíduos, mas também enquanto espécie entre as espécies...
    Deste ponto de vista, todas as ciências são como apontamentos que levamos no bolso.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O Ludwig não esta a fazer nada disso. Apenas a mostrar que pela estatística não se prova a existência de Deus. E isso foi proposto por outra pessoa, o texto é uma resposta.

      Eliminar
  2. Carlos Soares,

    «Se falas de natureza e suas leis enquanto criação de Deus, não venhas de seguida falar de Deus como criação da natureza e corolário de suas leis. »

    Felizmente, numa implicação, quando o antecedente é falso podemos ignorar o consequente.

    «O conhecimento da natureza é da maior importância, mas mais importante ainda é o conhecimento do que verdadeiramente é bom, não apenas enquanto indivíduos, mas também enquanto espécie entre as espécies...»

    Se comparares as leis enunciadas no Deuteronómio com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, verás que o progresso nesses conhecimentos que presumes independentes sugere que estão intimamente ligados.

    ResponderEliminar
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  4. "Se comparares as leis enunciadas no Deuteronómio com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, verás que o progresso nesses conhecimentos que presumes independentes sugere que estão intimamente ligados."

    O Ludwig ignora que antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos que ela consagra foram o resultado do contributo de pensadores cristãos, muitos deles influenciados pela Reforma Protestante e fortemente influenciados pela redescoberta, tradução e impressão da Bíblia no mundo ocidental a partir do século XVI.

    Hugo Grócio, teólogo cristão protestante, é considerado o pai do moderno direito internacional.

    John Milton, pensador cristão protestante, é considerado o pai da liberdade de expressão.

    Roger Willians, pensador cristão protestante, é considerado o pai da liberdade religiosa.

    John Locke, pensador cristão protestante, foi um dos princípios defensores de teorizadores dos direitos naturais, do governo limitado e da separação de poderes.

    William Bclackstone, o grande comentador do direito comum inglês do século XVIII, afirmava que todo o direito ocidental é o produto da influência da lei de Moisés.

    Para eles, a existência de um direito natural acima do direito positivo e de direitos naturais anteriores e superiores ao Estado era uma decorrência lógica do axioma de que o homem tinha sido criado à imagem e semelhança de Deus sendo portador de dignidade intrínseca.

    Sem estes e outros pensadores, e muitos pensadores católicos que os precederam, nunca teríamos chegado no Ocidente à declaração universal de direitos humanos.

    Na verdade, a ideia de que existe um direito intemporal e universal objetivo acima de todos os Estados (premissa subjacente à Declaraçao Universal dos Direitos do Homem) é claramente judaico-cristã.

    Não admira que a Declaração Universal dos Direitos do Homem tenha sido promovida pelos países ocidentais e, por sinal, por aqueles que mais fortemente foram influenciados pela Bíblia.

    Ela não foi o produto da reflexão budista, confucionista, taoista, ou induísta, onde ideias como a diluição do indivíduo no todo ou a desigualdade natural das castas emergiam frequentemente.

    Ela também não foi o produto do darwinismo.

    Charles Darwin dizia que a dignidade humana é puro preconceito natural e arrogância natural.

    Para ele, ninguém tem a priori direito à vida ou à integridade física, porque esse direito só pode ser garantido à posteriori aos mais aptos e mais fortes que sobrevierem ao processo de selecção natural.

    Do ponto de vista darwinista, só que sobrevive é que tem direito à vida.

    Quem quiser sobreviver tem que lutar por isso com todos os meios à sua disposição, incluindo mentir, subornar ou matar.

    Com efeito, se o ser humano tivesse sido o resultado de milhões de anos de crueldade predatória, sofrimento e morte, não faria qualquer sentido, do ponto de vista empírico e lógico, falar na existência de uma dignidade humana que possa ser invocada como limite moral ao natural comportamento predatório e cruel dos seres humanos.

    Do ponto de vista da selecção natural darwiniana, o homem é lobo do homem.

    A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi uma reacção consciente ao positivismo, ao cientismo e ao eugenismo darwinista que o Nazismno celebrou e que levou à condenação, no tribunal de Nuremberga, de muitos cientistas darwinistas nos campos de concentração alemães.

    Ela representou um regresso a Grócio, a Milton, a Williams, a Blackstone, e a Locke.

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.