Treta da semana (passada): a fábula.
No domingo passado, o Miguel Macedo disse que Portugal «não pode continuar um país de muitas cigarras e poucas formigas», aludindo à fábula que, disse, é «pedagogia para os tempos difíceis»(1). Explicou mais tarde que a sua intenção foi fazer «uma homenagem ao trabalho de todos aqueles que criam riqueza no país […] aos trabalhadores por conta de outrem e aos pequenos e médios empresários, comerciantes e agricultores, que, pelo trabalho de formiga que todos os dias fazem, criam riqueza, mantêm empregos e criam postos de trabalho em Portugal» (2). Ou não percebeu a fábula ou é a treta do costume.
A fábula da formiga e da cigarra tem várias variantes, mas sempre a mesma mensagem. Quem é prudente trabalha, poupa e arrecada quando a vida corre bem. Assim, tem com que se safar quando chega o inverno. Quem é mandrião trama-se. Isto é pedagogia, mas não é para os tempos difíceis. No inverno já não há nada a fazer. Também não é uma homenagem ao esforço da formiga. É um aviso. E não tem nada que ver com a nossa sociedade.
Até há poucos anos, as formigas europeias foram arrecadando o que ganhavam pelo seu trabalho. Infelizmente, durante esse verão, nem todas as cigarras andaram por aí a cantarolar. Se assim fosse, estávamos bem. Na Europa temos que chegue para pagar comida e abrigo a quem precisar para não passar fome e frio. É bem mais barato do que as negociatas das privatizações, do BPN, das PPP e dos submarinos. O problema é que, ao contrário da formiga da fábula, as formigas da Europa têm de guardar as poupanças nos bancos e não no formigueiro. E os bancos são das cigarras. Como as formigas alemãs trabalham bem, as cigarras alemãs viram-se com uma dispensa cheia de provisões. Em conjunto com as cigarras portuguesas, espanholas, gregas e irlandesas, desataram a apostar as poupanças das formigas. Nem interessava em quê. Casas, estradas, empresas, o que calhasse, porque o importante não era dar lucro a longo prazo. Era sacar comissões até rebentar a bolha. Afinal, o dinheiro era das formigas.
As cigarras dos governos foram fazendo o mesmo. Não a troco de comissões, que seria ilegal, mas a troco de cargos de administração e consultoria, que é apenas imoral. Os impostos das formigas seriam, em teoria, parte do pé-de-meia que lhes valeria se alguma coisa corresse mal. Hospitais, pensões, apoios sociais. Mas as cigarras no governo decidiram que isso é desperdício. É despesa. Por isso toca a cortar nos subsídios, serviços e salários, a vender o que é de todos e a meter ao bolso o que se puder. E depois há que recapitalizar os bancos. Temos de fazer mais esse sacrifício porque as desgraçadas das cigarras banqueiras estão a ficar sem dinheiro dos outros para apostar e é óbvio que não vão meter do delas. Isso seria imprudente.
O Miguel Macedo quer que nos preocupemos com o número de cigarras. Quer mais formigas a trabalhar para ele. Mas o número de cigarras importa pouco. O Miguel Macedo até pode continuar na política, a receber o ordenado de ministro ou deputado e a cantar até que a voz lhe doa. Mesmo com ajudas de custo isso paga-se bem e sempre é menos um a arrumar carros. O que é mesmo importante é as cigarras como ele devolverem a chave da dispensa, porque enquanto andarem a desbaratar o que as formigas arrecadam não há austeridade nem esforço que nos safe.
1- Público, Portugal não pode ser “país de muitas cigarras e poucas formigas”, diz Miguel Macedo
2- Público, Miguel Macedo quis homenagear trabalhadores quando falou de cigarras e formigas