quinta-feira, março 01, 2007

Escorbuto.

Este é o segundo post aqui de Munique, e o tema adequa-se ao ambiente destas reuniões de projecto. Traz à mente as intermináveis viagens dos descobridores, meses a fio da mesma coisa. Barco inclina para estibordo, barco inclina para bombordo. Repete. Repete. Conclusões. Palmas. Perguntas? Ninguém? Próximo orador...

O culpado do escorbuto é o GULOP. GULO é o gene que codifica a oxidase da L-glucono-delta-lactona, enzima necessária na síntese da vitamina C (ácido ascórbico). GULOP é o pseudo-gene correspondente ao GULO, e é pseudo porque não funciona. Todos os primatas antropóides têm o GULOP, a versão estragada do GULO. No GULOP podemos identificar quase toda a sequência do gene funcional, mas mutações acumuladas nos antepassados dos antropóides inviabilizaram o gene.

Sem GULO não sintetizamos vitamina C, e sem vitamina C não sintetizamos colagénio, proteína essencial para os vasos sanguíneos e pele. Como a nossa dieta normalmente contém vitamina C, passamos bem sem a oxidase da L-glucono-delta-lactona. Mas quem comer só bolachas e carne salgada sentirá na pele (literalmente) as consequências deste acidente genético nos nossos antepassados distantes.

A teoria da evolução explica a origem do problema. Há quarenta milhões de anos nasceu um primata com um defeito neste gene. Era incapaz de sintetizar vitamina C, mas como ele e os seus contemporâneos comiam verdura em abundância ninguém deu pela falta do GULO. Teve filhos, os filhos também, e com o passar dos tempos todos os descendentes desta população tinham um GULO defeituoso. E ninguém deu por nada até aos descobrimentos porque sempre tiveram vitamina C na dieta.

E ajuda a explicar porque não há antropóides carnívoros. Há herbívoros, como o gorila, e muitos omnívoros, mas primatas exclusivamente carnívoros só entre os prosímios. Sem a capacidade de sintetizar vitamina C é difícil adaptar-se a uma dieta sem vegetais.

Este é apenas um exemplo entre muitos que a teoria da evolução nos ajuda a compreender. O criacionismo não explica porque é que humanos e macacos têm um gene defeituoso para uma enzima que normalmente não precisam mas cuja falta pode ser mortal em certas condições.

Quem quiser saber mais, o Laurence Moran do Sandwalk têm vários artigos sobre isto, que recomendo (e que inspiraram este post):
Scurvy and Vitamin C
Nobel Laureate: Walter Norman Haworth
Human GULOP Pseudogene

13 comentários:

  1. Muito interessante o teu artigo. Como vês leio o teu blog.
    Bjo.

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  2. Muito bom, mesmo. Como habitualmente.

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  3. "Há quarenta milhões de anos nasceu um primata com um defeito neste gene."

    Onde nasceu? Quem foram os pais? Quem o submeteu aos testes genéticos? Quem certificou os resultados? Qual o laboratório? Onde estão os restoa mortais desse primata? Os filhos, netos, bisnetos e respectiva descendência, onde estão?

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  4. É uma história engraçada, não é?

    Os roedores (ratos, nomeadamente) não têm problemas porque podem sintetizar a sua própria Vitamina C (ou seja: o Ácido Ascórbico não é uma verdadeira vitamina, para eles...).

    Por isso é que, nas naus das descobertas, o escorbuto não afectava a população de ratos que lá vivia. Pela mesmíssima razão, afectava a classe de oficiais (Paulo da Gama, para citar um exemplo) muito mais do que a "marujada" (de cuja "dieta" fazia parte essa fonte de Vitamina C...).

    Na linha de alguns argumentos que tenho lido por aí, talvez devamos elogiar a "Inteligência" do "Desenhador" que tirou aos humanos este famoso gene, mas não se esqueceu de pôr ratos a bordo das caravelas...

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  5. Citando o Santiago, portanto, Deus é um brincalhão.

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  6. Caro anonimo,

    Essas perguntas são todas interessantes. São dificeis de responder, mas não é por isso que vamos desistir e chamar-lhe um Mistério.

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  7. Devido à forma do anónimo escrever, "parece" ser alguém que intervêm neste Blog.

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  8. É Miguel... também me pareceu que ficava bem "Anónimo Parente" ;)

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  9. Ora, aqui, também estou de acordo.
    A construção frásica, a sucessão de perguntas na forma "rápida", etc...

    Agora o "Anónimo", na próxima, vai mudar o seu estilo de certeza.

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  10. "Onde nasceu? Quem foram os pais? Quem o submeteu aos testes genéticos? Quem certificou os resultados? Qual o laboratório? Onde estão os restoa mortais desse primata? Os filhos, netos, bisnetos e respectiva descendência, onde estão?"

    E a morada? O n.º de telefone? O n.º de contribuinte? hem?hem? HEM?

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  11. Estava errado, o "Anónimo" não mudou o estilo.

    Mas tem jeito para Palhaço, e nisto eu não estou errado.

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  12. Estou de acordo com o que o Anónimo disse: Quem cá estava à 40.000.000 de anos para saber isso, onde estão os restos mortais desse primata e seus descendentes?

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  13. Caro Francisco,

    Imagine que chega a casa e vê a porta arrombada, tudo desarrumado, e dá pela falta dos seus bens mais valiosos.

    Se quiser saber quem foram os assaltantes, onde moram, a quem venderam os seus bens, vai precisar de mais informação. Algum vestígio específico desses individuos, ou testemunhas.

    Mas para inferir que foi roubado penso que os dados de que dispõe são mais que suficientes.

    A situação que descrevo neste post é análoga. É verdade, não sabemos quem foi esse individuo mutante, nem onde morava, nem qual foi a sua última refeição ou a sua cor preferida. Mas pelos estragos que deixou podemos inferir que existiu e que a nossa necessidade de vitamina C é um legado que esse individuo nos deixou.

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