quinta-feira, setembro 29, 2011

Gado.

O Miguel Sousa Tavares defende que foi uma «falta de democracia e [...] grande falta de cultura»(1) os catalães proibirem a entretenga de espetar ferros num touro.



Um dos argumentos do Miguel é que isto não faz sentido porque vai levar à extinção da espécie. Aparentemente, o Miguel julga que sem touradas não haverá razão para criar gado, mas Bos taurus está muito longe de ser uma espécie em extinção. O Miguel aponta também que é errado proibir algo só porque não se gosta, que ninguém é obrigado a ver tourada e que, se fosse por ele, então proibia-se a Casa dos Segredos. O que está correcto mas não tem nada que ver com o problema de espetarem ferros no animal. É esse problema ético que o Miguel Sousa Tavares baralha em defesa da “tradição”, a justificação de último recurso para o não se consegue justificar.

Muita gente assume, mais por conveniência do que por reflexão, que o fundamento da ética é um qualquer conjunto de regras abstractas acerca do que deve ser. Podem ser “leis naturais”, vontade divina ou simplesmente uma lista de direitos que se assume as pessoas terem. Como o direito de espetar ferros num touro, por exemplo. Mas é fácil ver que isto não pode estar correcto se percebermos que o propósito da ética é precisamente justificar essas regras e direitos.

No fundamento da ética está um facto e um valor: a compreensão de que outros também sentem e que isso importa para determinar como eu ajo. Sem esta conjunção não há ética, nem deveres morais nem direitos. Um tubarão não é eticamente responsável por morder, porque não tem compreensão do mal que causa. E um psicopata, indiferente ao que outros possam sentir, age em interesse próprio e nunca por algum sentido ético de bem ou mal. Regras morais de pacotilha, como «em democracia as minorias são respeitadas desde que não façam nada contra as maiorias», são o equivalente ético a um tubarão psicopata, ignorando quer os factos quer os valores fundamentais da ética.

Sabemos que espetar ferros no touro até ele perder litros de sangue enquanto corre furioso e assustado pela arena causa sofrimento ao animal. E esse tipo de coisa causa-nos constrangimento. O facto e o valor estão lá, e qualquer pessoa normal percebe o problema ético da tourada. O hábito de fazer isto ao touro tornou muita gente insensível a este caso particular, mas até o Miguel Sousa Tavares perceberia facilmente onde estão a barbaridade e a falta de cultura se fizessem espectáculos com homens de lantejoulas a espetar ferros em cavalos, cães ou gatos, em vez de torturarem os touros. Não só seria consensualmente reconhecido como imoral, como até já seria ilegal, pois desde 1995 que a nossa lei estipula serem «proibidas todas as violências injustificadas contra animais»(2).

A tourada é a excepção, na lei e na mente de alguns, mais por cobardia política do que por qualquer outra coisa. Mas não se justifica que o seja. Se é mau espetar ferros em cães ou cavalos, também é mau espetá-los num touro. E dizer que é tradição não justifica nada. Isso é uma desculpa bovina. O gado é que faz o que faz só porque sempre o fez. Nós não devíamos ser assim. A nossa espécie tem capacidade, e responsabilidade, de fazer melhor do que isso.

1- SIC, Miguel Sousa Tavares sobre o fim das touradas na Catalunha. Obrigado pelo email com o link.
2- LPDA, Lei n.º 92/95

10 comentários:

  1. "um psicopata, indiferente ao que outros possam sentir, age em interesse próprio e nunca por algum sentido ético de bem ou mal"

    ... então e o Dexter?

    Quanto ao resto, não se exactamente que desculpa possa haver para a tortura de um animal para entretenimento.

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  2. O Dexter usa uma heurística ensinada pelo pai (adoptivo) para canalizar a sua arte de forma menos má. Mas o Dexter mata principalmente pelo estilo :)

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  3. Este é um tema bastante interessante. Mas começar com os disparates do MST é tão cansativo... É como fazer pão com espigas de trigo.

    Há muitas falhas no raciocínio dele, espantosamente condensadas em menos de 4 minutos:

    1) A a redução a uma questão de direito entre minoria e maioria de pessoas
    2) A comparação com actividades de participação consentida
    3) O apelo à tradição
    4) O argumento económico

    O MST não "raciociona" lá muito bem. E o erro morfológico só fica mal ao escritor...

    Também não ajuda nada a qualidade passiva, para não dizer bovina, da jornalista.

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  4. Ludwig,

    "Sabemos que espetar ferros no touro até ele perder litros de sangue enquanto corre furioso e assustado pela arena causa sofrimento ao animal"

    E o que fazemos ao leão que crava os dentes no pescoço da gazela? Também o proibimos?

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  5. Eu já disse isto uma vez mas esta conversa da extinção parece que me dá o direito de criar filhas para as prostituir, e está tudo bem, porque isto ou existem e prostituem-se ou não existem, e existir é sempre melhor nao é? A do boxe também é gira, porque os pugilistas não são obrigados a irem ao ringue, mas já um touro duvido que tenha dito que queria ir para a arena. O da tradição também é porreiro, só porque já se faz há muito tempo pode-se continuar a fazer, à semelhança dos apedrejamentos, é cultural...

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  6. Nuno Gaspar,

    Não faz sentido considerar o leão eticamente responsável porque ele não consegue compreender esse aspecto dos seus actos. Nem vale a pena ameaçá-lo com acções judiciais porque também não compreenderá a ameaça. E, além disso, falta-lhe a capacidade também para procurar formas de vida alternativas que não resultem em tanto sofrimento para outros.

    Com os humanos não devíamos ter estas limitações. Infelizmente, muitos humanos julgam que a única coisa que os pode distinguir do leão é um deus fictício a mandar neles, o que lhes dificulta a compreensão destes problemas.

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  7. Gaspar,

    Estará a chamar a atenção para a cadeia alimentar que a nossa própria espécie pontifica via supermercado? Se for isso tem alguma razão no seu comentário, porque a sobrevivência é o direito mais imediato dos indivíduos e muitos indivíduos ainda não perceberam que podem sobreviver sem cravar os dentes nas gazelas.

    Mas existe nessa provocação uma confusão muito frequente entre os defensores da tourada: "se podemos matar para comer também podemos matar para brincar". Este pesnamento resulta de desprezar de tal forma a morte de um animal que nem se observa a utilidade nem o método desse acontecimento. Dos pensamentos de merda, é um clássico.

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  8. Depois do vídeo acho que estou em condições de compreender a ética segundo Miguel Sousa Tavares:

    “Gosto, logo posso.”

    É um pouco como fumar para cima dos outros nos restaurantes.

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  9. Uma nota optimista, ok?

    Esta petição em defesa da festa brava (quando em tempos outro português egrégio reclamava «CEM MIL assinaturas até Julho de 2011. CEM MIL! Convido-vos a todos») saldou-se em 17.774... Já esta outra conta 42.025 assinaturas.

    Parece-me uma diferença significativa, mesmo tratando-se de votações na internet e descontando por isso as prováveis dificuldades que o grosso dos aficionados tem no acesso aos meios tecnológicos.

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  10. É sempre fácil fazer o debunking do MST :)

    Seja como for, espero que «a compreensão de que outros também sentem e que isso importa para determinar como eu ajo» seja aplicado a mais coisas que não apenas a tourada.

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