segunda-feira, julho 22, 2024

Igualdade salarial.

Em Março o Presidente afirmou não haver democracia enquanto, entre outras coisas, não houver igualdade salarial entre homens e mulheres (1). Miguel Esteves Cardoso propôs então cobrar aos homens a diferença para equilibrar as contas (2). E eu, feito tanso, quando vi o texto no Facebook fui comentar como se fosse a sério. Gentilmente me explicaram que era sátira, apontando que devia ter reparado no autor e no absurdo que seria tirar dinheiro aos homens para dar às mulheres. Concedo o primeiro ponto mas, infelizmente, neste tópico o absurdo não é indício de sátira. Por exemplo, Kristoffer Berg, investigador na Universidade de Oxford, defende o mérito de cobrar um imposto extra aos homens para subsidiar salários das mulheres apontando apenas como eventual defeito ser uma medida discriminatória (3). Mas quotas também o são e muitos as aceitam como se fosse uma medida legítima. O problema é que a moda das igualdade estatísticas, como o salário, descura ética, factos e até a razão.

A igualdade de direitos é uma noção clara e intuitiva: o Estado tem o dever de tratar todos os cidadãos por igual e todos podem reivindicar do Estado os mesmos direitos. A "igualdade" salarial é estranha porque pessoas diferentes merecem salários diferentes. Até quando fazem o mesmo trabalho. Guarda-redes, professores, empregados de balcão ou seja o que for não são todos iguais. É justo que pessoas diferentes façam coisas diferentes de formas diferentes por salários diferentes. E homens e mulheres são, em média, muito diferentes. É estranho, por isso, haver mais preocupação com 12.7% de diferença salarial (4) do que com as centenas de milhões de mulheres que ainda não têm direitos iguais aos dos homens.

Suspeito que uma razão é os países onde mulheres mais sofrem de mutilação genital, homicídios "de honra", subordinação legal aos homens e outros atentados aos seus direitos não estarem sob o patriarcado do homem branco. Sendo agora tabu criticar quem não é homem branco ocidental, olha-se só para as diferenças estatísticas que surgem em sociedades que dão a todas as pessoas o direito de serem diferentes. Outra razão é que focar estatísticas em vez de direitos poupa o trabalho crítico de pensar em valores éticos. Assim, qualquer contabilista com uma folha de cálculo pode ser activista. Basta encontrar uma diferença de tantos por cento.

Um problema desta abordagem é presumir o que devia testar, assumindo que uma diferença salarial não explicada é uma injustiça. O raciocínio parece ser que se não é explicado então é discriminação e isso viola um suposto "direito a salário igual". Nada disto faz sentido. Primeiro, há muitas diferenças que não se costuma medir nestes estudos. Se compararmos o grupo das pessoas altas, musculadas e que não sofrem de dores ou hemorragias com o grupo das pessoas baixas, mais leves e que têm regularmente dores e hemorragias não será estranho que os salários médios sejam diferentes. Mas se bem que se invoque estas diferenças sexuais em testes físicos da admissão (5) ou licenças por menstruação (6), na análise das diferenças salariais vai tudo para a categoria de "discriminação por falta de outra explicação".

Além disso, a discriminação é normalmente legítima. Em média, futebolistas ganham mais do que jogadores de badminton. Não por chutar a bola ser intrinsecamente mais valioso que dar com a raquete numa coisa esquisita mas porque as pessoas gostam mais de futebol. Pura discriminação, tal como a que faz actores bonitos ganharem mais do que actores feios, a moda feminina ser mais lucrativa que a masculina, o pugilismo dar mas dinheiro aos homens e assim por diante. Vindo o salário de uma transacção voluntária entre quem presta um serviço e quem o compra, é óbvio que a discriminação vai ter um grande peso porque cada um vai gastar o seu dinheiro de acordo com as suas preferências subjectivas. Por isso, nem se pode assumir que há discriminação por omissão nem se pode concluir daí haver uma injustiça. Há certamente injustiças nos salários mas têm de ser devidamente identificadas e não apenas presumidas.

Como não encontram qualquer injustiça não conseguem propor uma solução que não seja reduzir a diferença das médias. Que nunca é o problema. Por exemplo, um dos indicadores com maior desigualdade de género em Portugal é o das mortes por acidente de trabalho: 120 homens e 5 mulheres por ano (7). Mas reduzir para 100 homens e 1 mulher por ano seria bom, salvando 24 vidas, mesmo aumentando cinco vezes a desigualdade. Duplicar o número de mulheres mortas reduziria a desigualdade para metade mas seria uma má solução. O foco na igualdade das médias advém de não saberem o que se passa. O resultado são medidas injustas. Em 2023 passou a ser obrigatório o pai usufruir de 28 dias da licença parental do casal (8). Isto aproxima as médias à custa da liberdade e qualidade de vida dos casais, assumindo o legislador o poder de decidir como usam a licença. Outro exemplo é a recomendação do Parlamento Europeu para os Estados membros acabarem com a declaração conjunta de rendimentos nos casais. O objectivo é reduzir a diferença de rendimento penalizando os casais nos quais o homem ganha mais, o que "incentiva" a mulher a ir trabalhar (9).

Das premissas às soluções, toda esta narrativa da igualdade salarial é uma treta que está a prejudicar muita gente. Há injustiças nos salários. Por exemplo, profissionais da recolha do lixo, supermercados, hospitais, transportes e outros serviços essenciais ganham muito abaixo do que seria justo dada a importância do trabalho que fazem. Mas as diferenças estatísticas entre grupos de pessoas, por si só, são irrelevantes. Fazem um brilharete na folha de cálculo mas combater isso não só não resolve problema algum como acaba por atrapalhar a vida das pessoas.

1- Público, 8 de Março de 2024, Marcelo sobre Dia da Mulher: “Sem verdadeira paridade de género não há democracia”
2- Texto disponível no blog Entre as Brumas da Memória: Uma solução masculina

3- Kristoffer Berg, Oxford University Centre for Business Taxation. Should women pay lower taxes?
4- Euronews, Quanto é que as mulheres ganham menos do que os homens?
5- Por exemplo, nos testes físicos de admissão para a PSP, os homens têm de saltar sem apoio um muro de 90cm e as mulheres um muro de 70cm. A premissa parece ser que, quando perseguirem criminosos, as mulheres vão encontrar muros tendencialmente mais baixos: Provas Físicas PSP: Preparação para o concurso para formação de Agentes da PSP
6- O ano passado o PAN propôs, «Na sequência de um pacote de reformas aprovado pelo governo espanhol [...] uma lei que concede a mulheres que sofrem de dores graves e incapacitantes durante a menstruação, o direito de solicitar uma licença médica de até três dias de ausência ao trabalho»: Criação de projeto-piloto para atribuição de licença menstrual. O que me parece fazer sentido. Um homem com dores e hemorragias também ia querer ficar em casa. É evidente que isto afecta o desempenho e a motivação para trabalhar.
7- Portal da ACT, Acidentes de trabalho mortais
8- DN, Licença parental do pai passa a ser de 28 dias seguidos ou interpolados.
9- Parlamento Europeu, Gender equality and taxation policies in the EU .

terça-feira, março 19, 2024

Viragem à direita.

O PS teve nestas eleições menos quinhentos mil votos do que em 2022. Não espanta, com os escândalos recentes e tantos anos de governação. Novidade foi a AD ganhar apenas metade disso e o CHEGA triplicar o resultado de 2022 com mais setecentos mil votos. Em parte porque os partidos da AD estão a perder para o CHEGA eleitores que gostam de autoridade, castigos, e respeitinho. É pena haver pessoas assim mas antes declarados do que à socapa em partidos supostamente sociais e democratas. Mais relevante deve ter sido o tal "voto de protesto", que me parece ser movido pelo mesmo impulso que leva o adepto de um clube a torcer por quem joga contra o clube rival. É para ver o outro perder. O PS e o PSD puseram-se a jeito disto escolhendo líderes pelos amigos que têm dentro dos partidos em vez da capacidade de mobilizar eleitores. André Ventura foi mais eficaz, em parte por ser mais fácil apontar defeitos do que propor soluções viáveis mas em parte também por ser melhor a usar os meios modernos de comunicação. Como as campanhas eleitorais fazem das eleições um circo em vez de uma colaboração para eleger representantes de todos os eleitores, agrava-se a vontade de votar como quem atira uma tarte à cara do palhaço. Mas sempre reduziu a abstenção em seiscentos mil votos. Isso é bom porque quem se abstém facilmente se ilude julgando que não tem culpa de nada. Quem votou no CHEGA vai perceber que tipo de gente ajudou a eleger. No entanto, mesmo considerando todos estes factores, o que mais me preocupa é o politicamente correcto. Mas para explicar porquê tenho de esclarecer primeiro o que quero dizer com isto.

No dia 22 de Janeiro de 1934 estreou em Moscovo a opera Lady Macbeth de Mtsensk, de Shostakovich (1). A história de Katerina envenenar o sogro, estrangular o marido com a ajuda do amante e acabar num campo penal na Sibéria foi um estrondoso sucesso. Até 1936, quando Estaline foi ver a peça que tanta gente elogiava e decidiu que atentava contra os ideais socialistas. Ficou proibida na URSS até 1961. O que eu quero dizer por politicamente correcto é o uso de poder político para interferir na expressão, pensamento e partilha de ideias. O termo "politicamente correcto" surgiu precisamente na década de 1930 para designar este tipo de coisas (2). Por cá também estamos a sofrer disto. Há leis a proibir opiniões ou informação que possa ofender certas etnias ou nacionalidades (3) e recomendações do governo para a comunicação social omitir informação sobre «nacionalidade, etnia, religião ou situação documental» de quem comete ilícitos (4). E o poder político mais fundamental em democracia é o que exercemos directamente pelo nosso direito de associação e manifestação, e também este está a ser abusado quando se organiza protestos para intimidar e "cancelar" a troca de ideias entre terceiros (5). Em democracia tem de ser permitido defender qualquer ideia. Mesmo acerca de direitos fundamentais. Por exemplo, quem defende o direito ao aborto defende que certos seres humanos não têm direito à vida. Mas leis que proibissem questionar o direito à vida, indicações do governo para a comunicação social não mencionar o aborto ou protestos organizados para impedir palestras sobre o aborto seriam abusos inaceitáveis em democracia. Porque numa democracia o poder político tem de estar subordinado às opiniões e valores de todos, o que exige liberdade para pensar e partilhar ideias. O politicamente correcto inverte isto, usando o poder político para condicionar o que as pessoas podem saber, dizer ou pensar, como se faz em ditadura.

Além da ameaça à democracia, o politicamente correcto alimenta demagogos. Há partidos que são explicitamente contra este abuso. É um dos poucos méritos do Iniciativa Liberal, por exemplo. O CHEGA não é um destes partidos e André Ventura até já defendeu precisamente este tipo de medidas (6). Mas esta pressão para reprimir certas opiniões amplia o efeito do "ele diz as verdades" e a multa de 438 euros e 81 cêntimos que André Ventura pagou pelo que publicou sobre ciganos foi o melhor investimento que fez em campanha eleitoral (7). Isto fez muita gente cuja opinião tentam reprimir identificar-se logo com Ventura mesmo discordado dele em muitas coisas. O politicamente correcto também mina a confiança nas instituições. Por exemplo, o sistema judicial tem certamente registada a nacionalidade de arguidos e condenados mas a lei proíbe divulgar informação que possa ofender alguém pela sua nacionalidade. Assim, qualquer correlação entre uma nacionalidade e algum tipo de crime tem de ficar oculta ou ser diluída em categorias genéricas como "estrangeiros" e sempre que há coisas que não nos dizem levanta-se a suspeita de que nos estão a esconder más notícias por serem politicamente incorrectas.

É tentador culpar "fachos" e racistas por esta viragem à direita. E concluir daí ser preciso reprimir ainda mais para ganhar "a luta". Mas a democracia não é um combate. É um trabalho de equipa. É o processo pelo qual encontramos consenso precisamente para evitar repressão e violência. Mas muita gente que assiste a pancadaria nos centros de saúde, é vítima de furtos ou roubos, tem problemas com certos vizinhos e muitas outras queixas, que sempre houve e sempre haverá, agora é acusada de racismo ou xenofobia se tenta trazer o seu caso a público. Negar às pessoas o direito de dizer claramente o que as preocupa aumenta o poder da insinuação e da demagogia. E cria ressentimentos que se reflectem no voto, onde ainda não as podem silenciar. Vê-se isto nos EUA, no Reino Unido e por toda a Europa. É preciso rever esta hipótese atraente de que o problema está só nos outros, ou porque dizem o que não devem ou porque dão ouvidos a quem não merece. Deixar as pessoas falarem não resolve tudo mas incentiva todos a proteger a democracia. Abusar do poder político para impor opiniões tira esse incentivo a muita gente e empurra votos para quem souber aproveitar-se do descontentamento.

1- Wikipedia, Lady Macbeth of Mtsensk (opera)
2- Wikipedia,
Political correctness
3- PGD Lisboa, Lei n.º 93/2017, de 23 de Agosto
4- CICDR, Posição sobre referências a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental em notícias a partir de fontes oficiais e em meios de comunicação social.
5- DN, Palestra de Jaime Nogueira Pinto cancelada devido a ameaças
6- DN, Ventura imita Trump e também quer censurar Twitter
7- Público, André Ventura multado em mais de 400 euros por discriminar ciganos

sexta-feira, março 08, 2024

O CHEGA.

Durante uma campanha eleitoral abundam os truques de propaganda e demagogia, dos quais todos os partidos, infelizmente, são culpados. Mas o CHEGA destaca-se pela vantagem que tem em dois dos mais importantes: a repetição de mensagens simples, emocionalmente carregadas, e a defesa de posições ambíguas com que o maior número de eleitores julgue concordar.

A razão para isto é que a generalidade dos partidos congrega pessoas com uma visão mais ou menos alinhada de como a sociedade deve ser. Seja comunismo, socialismo, liberalismo, democracia social ou o que for, a missão de um partido normal é convencer os eleitores a apoiar essa visão. E isto obriga a explicar alguma coisa acerca do que querem fazer. O CHEGA é diferente. Como sugere o seu nome e origem, o CHEGA é um partido de protesto que se caracteriza por ser contra. Contra ciganos, corrupção, imigrantes, modernices, o que for, desde que seja contra. Isto reflecte-se no ambiente interno conturbado, com entradas e saídas frequentes por falta de qualquer cola além do discurso revoltado do líder. E nota-se explicitamente nos princípios do partido (1), que se diz contra «todas as formas de totalitarismo», «a criminalidade hedionda e violenta», «todas as formas de racismo, xenofobia e de qualquer forma de discriminação» e o «actual sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de Estado», entre outras coisas das quais ninguém é a favor, que são difíceis de resolver mas que é muito fácil ser contra. E o que diz defender, como a liberdade e a «dignidade da pessoa humana», é suficientemente banal e vago para se poder dedicar ao protesto e a dizer que é tudo uma vergonha sem ter de explicar a utilidade das suas propostas em concreto.

Um exemplo disto é a solução do CHEGA para a corrupção: aumentar as penas, dar mais poderes à investigação e proibir políticos corruptos de se recandidatarem. São propostas simples, fáceis de entender e que ficam bem em qualquer debate. Mas não resolvem os problemas principais. Por um lado, a aceitação cultural da corrupção, como a prática da cunha, do amiguismo e do jeitinho, e até uma certa admiração por corruptos. Ele rouba mas faz. Proibir corruptos de se candidatarem não resolve o problema fundamental de haver tanta gente a votar neles. E, por outro lado, a lei só afecta corruptos incompetentes porque a principal corrupção é legal. Por exemplo, deputados trabalharem para entidades privadas. É corrupção descarada, mas legal, que legisladores sejam pagos por interesses privados enquanto, supostamente, representam os eleitores no Parlamento. Os partidos da esquerda tendem a exigir exclusividade dos seus deputados mas a lei não o obriga e, à direita, é comum deputados trabalharem para empresas. Incluindo no CHEGA. O próprio André Ventura o fez durante vários meses apesar de ter prometido que não o faria (2). Sem motivação para resolver problemas, o CHEGA pode escolher propostas unicamente para propaganda.

Outra vantagem de não ter uma ideologia coerente é que o CHEGA pode ser ambíguo, ou até contraditório, no que defende. A interpretação fica ao gosto de cada potencial eleitor. Por exemplo, nos seus princípios o CHEGA defende a liberdade, um Estado mínimo que deve ser «neutro nas questões religiosas» e repudia explicitamente «todas as formas de racismo, xenofobia e [...] qualquer forma de discriminação». Mas afirma também que o Estado deve reconhecer e respeitar «o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica na estruturação da civilização europeia», que deve exigir de qualquer imigrante «a adopção plena da cultura portuguesa» e que é «indispensável a clara opção por populações com raizes em culturas semelhantes à nossa pelos recém-chegados». Cada um pode concluir daqui o que quiser. Partidos normais, comprometidos com ideologias explicitas e já conhecidas, têm menos liberdade para fazer isto e muitos estão a perder votos para o CHEGA precisamente porque não podem apresentar os seus princípios como um buffet onde cada um petisca o que lhe apetece.

Obviamente, isto só serve para caçar votos. Depois não há um plano concretizável ou sequer uma ideologia consistente que oriente o partido. Como se viu com o Brexit, com Trump ou Bolsonaro, são votos perdidos em pessoas que só querem maximizar o seu proveito pessoal. E, a prazo, isto reforça a ideia de que os políticos não prestam e são todos a mesma coisa. É uma profecia que se faz cumprir a si mesma porque quanto mais eleitores pensam assim menos se preocupam em distinguir entre propostas políticas viáveis e banha da cobra, beneficiando a propaganda demagógica e agravando o problema.

Este problema não pode ser resolvido pelo sistema. É fundamental em democracia que cada um vote como quer. Portanto, tem de ser resolvido individualmente, por cada eleitor. Por isso proponho o seguinte exercício a quem pondera votar no CHEGA por achar que, sendo os políticos todos a mesma treta, ao menos estes dizem algo diferente. Se assumimos serem todos a mesma treta não podemos julgar que André Ventura, depois de 17 anos no PSD, ou os seus companheiros vindos do PNR, PPV/CDC e outros movimentos de extrema direita são mais virtuosos e honestos do que os políticos dos outros partidos. Sob esta premissa, o que sobra para distinguir entre partidos será apenas a ideologia que move os políticos de cada um. O exercício é descartar a demagogia das teses contraditórias ou vagas que o CHEGA deixa à interpretação do eleitor e tentar identificar o cerne ideológico do partido. A mim parece-me que, filtrado o ruído, apenas sobra um nacionalismo visceral e um racismo mal disfarçado como linhas orientadoras deste partido. E isso, espero eu, representa muito menos eleitores do que aqueles que temo irão votar CHEGA no próximo Domingo.

1- Partido CHEGA, Declaração de Princípios e Fins
2- Wikipedia, André Ventura

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Criacionismo e desenvolvimento.

Fui bloqueado de um grupo sobre criacionismo e evolução no Facebook (1). Deu para alguns dias de diálogo com criacionistas que, ironicamente, se queixavam da recusa dos "evolucionistas" em debater com eles. Não me disseram a razão do bloqueio mas alguns dos meus últimos comentários foram sobre o desenvolvimento embrionário e pareciam estar a incomodar.

O criacionismo não pode contribuir para o conhecimento porque dizer "foi milagre" é tão informativo como dizer "não sei". Por isso o criacionista limita-se a argumentar que a evolução é impossível na esperança de vencer por omissão. Alega que nenhum processo natural pode criar informação, que sistemas complexos não podem surgir de sistemas simples, que o aumento de complexidade viola as leis da termodinâmica e outras confusões. Diz também que a evolução é pura especulação porque ninguém viu os milhões de anos que o processo terá demorado. O problema do desenvolvimento embrionário para o criacionista é mostrar como células embrionárias geram galinhas, golfinhos ou humanos num processo que podemos observar em detalhe. Como as células embrionárias diferem entre si muito menos do que os organismos adultos, é o desenvolvimento que faz o trabalho quase todo de criar coisas complexas. Os milhões de anos de evolução precisam apenas de acumular mutações em moléculas como o ADN. Comparado com o que acontece entre a fecundação e o organismo adulto isto é quase trivial.

Há criacionismos light que lidam bem com isto. O criacionismo católico, por exemplo, limita-se a pôr Deus à volta da ciência. Se vemos que o desenvolvimento embrionário transforma uma célula num organismo complexo então Deus criou esse processo natural. Se depois percebemos que é consequência de reacções químicas, então afinal Deus criou as reacções químicas. Quando notamos que a química resulta da física atómica, então o que Deus fez foi a física atómica. Isto é irracional e desonesto, porque cola um "foi Deus" onde a honestidade exigiria um "não sei", mas não exige deturpar nem rejeitar a ciência. Basta um cantinho vazio onde se possa arrumar Deus.

O criacionismo evangélico é diferente. Especializou-se num nicho fundamentalista e o seu negócio de cobrança do dízimo assenta em impingir a Bíblia como infalível e literalmente verdadeira. Isto exige, entre outras coisas, "refutar" a teoria da evolução. Mas quase tudo o que apontam como impossível à evolução acontece durante o desenvolvimento e a tese de que Deus anda a milagrar cada reacção química durante o crescimento de cada organismo é demasiado ridícula até para o criacionismo. Tampouco podem dizer que Deus criou esses processos naturais, como fazem os católicos, porque isso admitiria ser possível haver um processo natural de evolução, contradizendo o Génesis. Pior ainda, a ciência não é um saco de crenças como as religiões. É possível ser cristão acreditando literalmente no Génesis, acreditando que o Génesis é uma metáfora ou sem sequer ligar ao Génesis. Mas a ciência exige que tudo encaixe e não se pode simplesmente amputar um pedaço sem afectar o resto.

Por isso, para o criacionismo evangélico negar a evolução tem de deturpar toda a ciência. Tem de aldrabar conceitos, como dizer que informação exige significado e inteligência e que o ADN tem um código, ou que a segunda lei da termodinâmica impede que a ordem aumente mesmo em sistemas abertos. Tem de fingir que a evolução está isolada da química, biologia e genética. Como o desenvolvimento embrionário ou as reacções metabólicas que transformam dióxido de carbono em células vivas. E têm de aldrabar o método em si para fazer parecer que o criacionismo é uma alternativa ao mesmo nível. Por exemplo, inventam uma "ciência criacionista" e disciplinas como a "baraminologia" (2), baseadas no Génesis, omitindo a parte mais importante da ciência. Se ciência fosse só dizer como as coisas são Darwin teria escrito um parágrafo em vez de centenas de páginas. Mas, em ciência, tão ou mais importante que as conclusões é a descrição detalhada do que se fez, o que se observou, que explicações se considerou e como se chegou a essas conclusões. É isto que permite a verificação independente de cada tese e, assim, chegar ao consenso. Em vez de se fragmentar tudo em crenças diferentes como acontece com as religiões. E é isto que permite corrigir erros, melhorar teses e progredir no conhecimento. É por isso que a teoria da evolução está hoje muito além do que Darwin poderia imaginar enquanto os criacionistas evangélicos ainda andam agarrados a uma fábula da idade do bronze.

É pena que tanta gente enfie este barrete e perca, além de parte do seu rendimento, a possibilidade de compreender o que é a ciência e como a ciência contribui para a nossa sociedade. E é especialmente grave que façam isto a crianças. O sistema educativo português permite que famílias evangélicas usem a escola pública para enganar os jovens e dificultar-lhes a compreensão da ciência, doutrinando-os nesta caricatura deturpada que o criacionismo lhes apresenta. Mas isso fica para outro post. Este queria concluir com uma sugestão. Se um criacionista vos disser que é preciso muita fé para acreditar que órgãos complexos se podem formar a partir de algo mais simples, perguntem-lhe o que acha que acontece nas duas décadas entre o óvulo fecundado e o humano adulto. Se for no Facebook provavelmente acabam bloqueados, mas só por isso já vale a pena.

1- Criacionismo vs Evolucionismo
2- Answers in Genesis, Baraminlogy, e Wikipedia, Created kind

terça-feira, outubro 17, 2023

J'adoube.

É mais fácil apontar defeitos do que propor soluções. Por isso começo pelos defeitos da reacção de Israel. Pretende isolar Gaza até que libertem os reféns, bombardear edifícios usados pelos terroristas e enviar tropas para destruir o Hamas. Isto vai matar muita gente. Infelizmente, das partes atentas ao conflito, que além dos protagonistas incluem eleitores israelitas, o povo de Gaza e a comunidade internacional, o Hamas é a que menos receia a morte de civis palestinos. Seja para recrutamento, financiamento ou reduzir o apoio internacional a Israel, quanto mais crianças palestinas morrerem melhor será para o Hamas. Chamam-lhes mártires e são um dos activos principais destes grupos terroristas. Além disso, a ameaça de bloqueio é politicamente insustentável. Nem a comunidade internacional nem os israelitas vão tolerar que Netanyahu mate civis sem termo numa tentativa fútil de fazer o Hamas ceder. Parece-me que o governo de Israel está a entalar-se num beco de onde só pode sair recuando.

O objectivo de desmantelar o Hamas também me parece mal pensado. O Hamas não é apenas um grupo de terroristas. É um sintoma. Descendente da Irmandade Muçulmana do Egipto, é uma de muitas secreções daquela doença que mantém milhões de mulheres de cara tapada, que arrastou o Afeganistão e o Irão de volta à idade do bronze, que põe bombas em Madrid, mata desenhadores em Paris e de vez em quando tenta assassinar o Salman Rushdie. Destruir o Hamas é coçar as borbulhas sem tratar a infecção. O alívio é muito breve e pode até piorar o problema, pois não vão faltar voluntários para substituir quaisquer baixas.

Não vejo boas opções. Mas as restrições do problema parecem tão fortes que limitam muito a escolha. Neste momento, Israel não pode fazer cedências nem procurar negociar com o Hamas. Seria recompensar o ataque de dia 7 e incentivar novas tentativas. E uma ofensiva vinda de Israel é precisamente o que o Hamas quer. O fundamentalismo impede o pensamento crítico mas é compatível com a manha e o Hamas sabe que nem rockets nem ataques terroristas vão ganhar esta guerra. O propósito de bombardear Israel a partir de zonas densamente povoadas, e todos os outros actos terroristas, é provocar Israel a matar palestinos. A morte de civis palestinos alimenta o ódio, mantém o Hamas no poder, torna a guerra ainda mais santa e, insha'Allah, há de haver virgens para todos. É só vantagens. A longo prazo têm de manter a natalidade acima das perdas mas para isso o Islão sabe convencer as mulheres a colaborar.

Quando todas as jogadas são más o melhor é não jogar. Israel tem apenas de ajeitar as peças. Tem de melhorar a segurança nas fronteiras, identificar e corrigir as falhas de informação que permitiram este ataque de surpresa e procurar mediadores que convençam o Hamas a devolver os reféns. Mas podia deixar o resto na mesma. Ganhava capital diplomático, frustrava os planos do Hamas e poupava imensas vidas. Infelizmente, mesmo em circunstâncias favoráveis há uma tendência para preferir medidas drásticas. Em momentos como este é ainda mais difícil vender soluções racionais. Especialmente com as forças políticas que agora controlam o governo israelita.

Para terminar, aponto também um defeito a este texto. A racionalidade de um acto depende do seu propósito e esta declaração de guerra é irracional apenas se o governo de Israel estiver à procura de um caminho para a paz. É isso que pressuponho porque acho que devia ser esse o objectivo último de qualquer medida para gerir este conflito. Mas o que deve ser nem sempre é.

terça-feira, maio 09, 2023

A Parada.

Tenho seguido com alguma atenção comentadores que se esforçam por justificar e apoiar a invasão russa. O esforço é cada vez maior, por força das circunstâncias. Um desses comentadores, Miguel Castelo Branco, escreveu há um ano sobre «a grandiosa parada militar celebrativa da Vitória que hoje teve lugar na Praça Vermelha, aos pés das muralhas do Kremlin [...] mostrando que a Rússia está segura do seu poderio, agora confirmado nos últimos desenvolvimentos nos campos de batalha.»(1)

Realmente, em 2022 a parada do 9 de Maio foi impressionante. A deste ano, nem tanto. Em vez de dezenas de carros de combate modernos veio só um T-34, veterano da segunda guerra, em representação dos seus congéneres. A exibição da força aérea foi cancelada e, à parte dos tradicionais misseis nucleares, no resto do armamento a demonstração também foi mais modesta do que é costume (2). Obviamente, isto chamou a atenção da comunicação social. Que, segundo escreve hoje Castelo Branco, é uma «conspiração dos asnos» porque «A Rússia tem 8000 carros de combate e o seu lugar em tempo de batalha decisiva não são os aquartelamentos, mas na frente a caçar Leopardos, pois é na frente e não em desfiles militares que se decide a guerra»(3). Apesar de esfarrapada, a desculpa não surpreende. Há constrangimentos ideológicos que impedem estes comentadores de admitir que a situação militar russa não permite grandes celebrações. Mas fica por explicar como é que, com uns alegados 8000 carros de combate, não encontram sequer uma dúzia para o desfile.

Aponta também Castelo Branco que «O único carro de combate presente foi o T-34, por sinal o melhor blindado da II Guerra Mundial e vencedor de todas as batalhas, de Moscovo, de Estalinegrado, de Kursk e Berlim». Vencedor de todas as batalhas é exagero. O T-34 já estava em serviço quando Hitler traiu o seu aliado Estaline e invadiu a URSS. Apesar do exército vermelho já ter, em 1941, dois anos de prática a invadir a Polónia, a conquistar o Báltico e a espatifar-se contra os finlandeses, nesse primeiro ano de invasão nem tudo correu de feição aos soviéticos. Pode-se dizer que a operação militar especial de Hitler começou bem melhor do que a de Putin. Felizmente, fez-se justiça e acabou mal. Uma valiosa lição histórica que temo não ter sido bem aprendida pela liderança russa. Caso contrário não teriam ficado surpreendidos por os países ocidentais ajudarem o país invadido (4).

Mas desviei-me do tema. O T-34 foi, realmente, um dos melhores carros de combate do seu tempo. E talvez seja aqui que a Rússia procura recuperar o seu poderio militar. Afinal, estão cada vez mais perto, pois agora até enviam para a frente de batalha carros de combate T-55, um modelo de 1948 (4). Os T-55 já defrontaram carros de combate ocidentais como os que a Ucrânia recebeu recentemente. Foi na guerra do Iraque. Está aqui uma imagem (6) mostrando um Challenger 2 (à esquerda) e um T-55 (à direita). Vale por mil palavras.



1- Facebook, 9 de Maio 2022
2- Sky News, How does Russia's scaled-back 2023 Victory Day parade compare to previous years?
3- Facebook, 9 de Maio 2023
4- Os EUA enviaram 75 mil milhões de dólares de ajuda à Ucrânia. O total enviado para a URSS na segunda guerra equivaleria hoje a 180 mil milhões.
5- Forbes, Russia Sent 70-Year-old T-55 Tanks To Ukraine Without Even Upgrading Them
6-Imagem daqui:John (Twitter)

sábado, abril 15, 2023

Receios.

A inovação tecnológica desperta receios mais ou menos racionais. O comboio a vapor, por exemplo, levou à preocupação justificada com os acidentes mas também à convicção de que as vibrações causavam insanidade (1). A reacção à novidade depende também da disposição de cada um. Como dizia Douglas Adams, o que existe quando nascemos é normal, o que é inventado até termos 35 anos é excitante e o que surge depois disso é contra a ordem natural das coisas. E, obviamente, a tecnologia preocupa quem tem de competir com ela no mercado de trabalho. Nisto os modelos de linguagem como o ChatGPT trazem uma novidade importante. Até agora a inovação tecnológica tirou emprego a muitos mas beneficiou os peritos na nova tecnologia. O tractor substituiu trabalhadores agrícolas mas deu emprego a mecânicos e engenheiros. Os computadores eliminaram muitos postos de trabalho mas criaram emprego para informáticos. Agora é diferente. Modelos como o ChatGPT estão a ficar cada vez melhores a explicar, ensinar, programar, resumir conhecimento e outras tarefas que hoje pagamos a peritos para executar (2). Incluindo peritos em informática e inteligência artificial. Talvez isso tenha contribuído para, agora, alguns desses peritos apontarem a perda de postos de trabalho como um perigo desta tecnologia.

Mas penso que o receio mais profundo é do que estes avanços revelam acerca de nós. Nota-se em vários detalhes. Por exemplo, chamam "caixa preta" às redes neuronais sugerindo que não se percebe o seu funcionamento porque não se vê o que está lá dentro. Mas todos os parâmetros e operações de uma rede neuronal estão à vista. O que nos impede de a compreender é ter milhões de operações. Chamar-lhe "caixa preta" disfarça o verdadeiro problema: falta-nos a inteligência necessária para perceber algo tão complexo. A expressão "Inteligência Artificial" também permite um equívoco entre os robôs inteligentes da ficção e processos automáticos que um computador executa. Toda a inteligência artificial que temos está nesta segunda categoria, de soluções automatizadas para problemas que nós resolvemos com inteligência. Mas isto significa que o desempenho assombroso destes métodos, que já aproxima ou ultrapassa humanos em muitas tarefas, resulta de mera álgebra. É triste para quem se apelida de sapiens ser ultrapassado por uma máquina de calcular. Talvez seja melhor imaginar tratar-se de um C3PO ou Terminator, mesmo que isso crie medos ridículos como o das "mentes digitais poderosas"(3).

O receio que as características cognitivas que mais estimamos percam valor nota-se especialmente no esforço para demonstrar que os sistemas de IA não compreendem o que fazem. Isto devia ser tão surpreendente como descobrir que um ábaco não sabe matemática. No ChatGPT, as palavras que escrevemos são representadas por uma sequência de números, o computador faz uma carrada de contas e a sequência de números resultante é mostrada no ecrã como palavras. Nós imaginamos que aquilo significa alguma coisa mas o ChatGPT é só a sequência de contas. Que por vezes dá disparate. Mas o espantoso é que muitas vezes dá a resposta certa. Por exemplo, modelos como este podem criar programas funcionais a partir de descrições em texto (4). Eu admito desconsolo ao ver que capacidades que eu julgava necessárias para programar, como raciocínio computacional e compreensão dos algoritmos, afinal podem ser substituídas por operações algébricas executadas sem inteligência. Mas parece-me inútil fingir que a IA é uma "mente digital" só para me sentir superior quando ela se engana.

Não acho que esta tecnologia vá substituir todos os peritos porque estes métodos só servem para interpolar dentro da distribuição dos exemplos de treino. Como não são bons a extrapolar não conseguirão substituir inovadores como Newton, Darwin ou Turing. Mas para a maioria de nós esta limitação trará pouco consolo. Quase tudo o que quase todos fazemos com o nosso talento e inteligência está dentro da distribuição de exemplos conhecidos e poderá ser reproduzido de forma automática. Além disso, ainda estamos no ZX Spectrum desta tecnologia. Vai haver grandes mudanças nos próximos anos. Especialmente no mercado de trabalho. Nenhuma máquina nos vai tirar o gozo de compreender as coisas ou de as fazer por nós mas a necessidade de comprar trabalho humano, mesmo o trabalho de peritos, vai diminuir drasticamente.

A regulação será necessária como é com qualquer tecnologia. Também não queremos que a electricidade sirva para torturar prisioneiros nem a genética para registar o ADN de todos os cidadãos. Por exemplo, as redes neuronais têm grande potencial para coisas como vigilância e censura, e será preciso restringir esses usos. Mas esta tecnologia não é perigosa em si. São só contas; não é material radioactivo nem robôs assassinos. Por isso o que se deve regular são as aplicações. Um sistema de IA não pode cometer erros a conduzir camiões mas pode enganar-se num jogo de estratégia. O enviesamento tem de ser evitado nos empréstimos bancários mas não é grave se um gerador de imagens desenha barba apenas em rostos masculinos. E o "perigo" que a rede gere algo ofensivo ou qualquercoisofóbico resolve-se desaconselhando o uso por crianças e wokes. Os adultos não precisam de protecção contra coisas feias.

O alarmismo dos peritos que invocam perigos abstractos e "mentes digitais" deve ser encarado com cepticismo. Não só pela natureza destes receios como também porque pessoas diferentes têm interesses diferentes. Por exemplo, se a nossa tolerância ao erro fosse como a de alguns peritos que criticam a IA ninguém usava a Internet e a meteorologia seria crime. A IA deve ser regulada de forma democrática, com a participação de todos e não apenas pelos peritos. Deve-se regular aplicações em função de problemas específicos em vez de regular toda a tecnologia por causa de medos vagos. E deve-se sempre ponderar, a par dos riscos, também os benefícios da tecnologia e a liberdade de cada um decidir se estes compensam os riscos.

1) Atlas Obscura, The Victorian Belief That a Train Ride Could Cause Instant Insanity.
2) Este exemplo ilustra bem o potencial desta tecnologia, compreensivelmente assustadora para alguns: Daniel Tait, Sumplete.
3) Future of life, Pause Giant AI Experiments: An Open Letter.
4) Por exemplo, o Copilot, que é a mesma tecnologia mas treinado especificamente para escrever código.

quinta-feira, março 30, 2023

A carta.

Uma carta aberta do instituto Future of Life pede uma moratória à investigação em modelos de aprendizagem automática mais poderosos do que o GPT-4, aquele que a Open AI de momento explora comercialmente (1). Há alguns nomes sonantes entre os signatários mas é fraca a adesão de peritos na área. Como até eu recebi um e-mail a pedir que assinasse esta carta antes de a publicarem, presumo que tenham contactado mesmo muita gente. Mas parece quem nem pessoas da Open AI assinaram, e teriam claro interesse numa moratória à concorrência (2). A explicação, e razão pela qual não assinei, é que a carta faz pouco sentido.

Fundamentam o pedido de moratória afirmando que «Sistemas de IA poderosos só devem ser desenvolvidos depois de termos confiança que os seus efeitos serão positivos e que podemos gerir os seus riscos». Mas só podemos avaliar os riscos depois de compreender bem o potencial e as aplicações de uma tecnologia, e isso exige investigação. É um problema que enfrentamos há séculos porque é intrínseco à ciência. Descobrir coisas tem riscos mas a ignorância não permite perceber nem os riscos nem os benefícios. Isto nota-se até nos exemplos que dão. Alegam que a «sociedade pôs em pausa outras tecnologias com efeitos potencialmente catastróficos para a sociedade», como clonagem humana ou modificação de genes na linha germinal humana. Mas não se suspendeu a tecnologia e muito menos a investigação. Apenas se regula aplicações específicas. A modificação genética humana levanta problemas éticos mas a dos tomateiros, leveduras ou bactérias é menos problemática. E a investigação não parou. Aliás, se tivessem suspendido a investigação em manipulação genética teríamos sofrido um atraso enorme em aplicações como a produção de vacinas e insulina ou técnicas de diagnóstico médico. Uma moratória à investigação é um exagero. Nem com as armas nucleares se faz isso. Regula-se actos específicos como a purificação de urânio mas não se impede os físicos de criarem modelos mais sofisticados do átomo.

Outro problema desta proposta é ter uma minoria de peritos a condicionar o que toda a gente pode usar. Exigem que estes modelos sejam mais «exactos, seguros, interpretáveis, transparentes, robustos, confiáveis e leais» mas a relevância destes requisitos depende do uso que cada pessoa lhes queira dar. Como eu não vou confiar no texto gerado por um modelo estatístico nem me vou ofender ou magoar com as palavras que produza, não quero restringi-lo a ser seguro, exacto, leal ou confiável. Para ter personagens interessantes em jogos de computador, para gerar textos pornográficos, para ter ideias acerca de mundos fantásticos, aprender insultos noutras línguas ou conversar com um amigo imaginário estes requisitos podem não se aplicar. E é cada utilizador que deve avaliar o que quer.

Mesmo que se possa apontar usos prejudiciais, ainda assim é devido respeito pela liberdade de cada um decidir por si, como se faz no caso de religiões, ideologias políticas, superstições e tradições parvas. Não temos peritos a decidir essas coisas pelas pessoas. O mesmo se aplica ao investigador. É verdade que a investigação científica tem valor social e, em média, beneficia-nos a todos. Mas a razão mais importante para permitir que alguém faça investigação é o direito individual de tentar perceber como as coisas funcionam. Não é legítimo limitar os direitos dos utilizadores e dos investigadores só porque alguns peritos invocam a possibilidade vaga de perigos ainda por determinar. Essa limitação só é legítima perante perigos concretos e suficientemente graves. Modelos estatísticos para gerar sequências de palavras parecem estar muito abaixo dessa fasquia.

A carta invoca também perigos para as profissões, que são consequência de qualquer inovação tecnológica e nunca justificaram parar o progresso científico, e o perigo de desenvolver «mentes não humanas», que não tem nada que ver com estes modelos para os quais pedem uma moratória. Não é por minimizar uma função com milhões de parâmetros que se corre o perigo de criar uma mente. A única coisa que me parece razoável nesta carta é exigir mais transparência. Isso já subscrevia se não fosse restrita apenas a modelos estatísticos. Eu gostava que houvesse transparência para eliminar impedimentos à decisão informada. Por exemplo, obrigar fornecedores de software ou serviços baseados em software a divulgar o código fonte para que, colectivamente, os utilizadores pudessem saber o que estes sistemas fazem e discutir os seus riscos e benefícios. Esta medida não exigiria moratórias, melhorava a capacidade de escolha e provavelmente até melhorava a qualidade do software. É como o restaurante ter a cozinha à vista. A proposta de serem os peritos a assegurar-nos de que está tudo conforme os seus critérios não ajuda a resolver este problema. E nem parece bem que seja subscrita pelos peritos.

O problema que enfrentamos neste momento não é a possibilidade de haver um novo ChatGPT que diz menos parvoíces. É a tecnologia concentrar cada vez mais poder de decisão numa minoria cada vez mais pequena pela facilidade com que se monopoliza a informação. Nestas condições, é obviamente má ideia dar a uma minoria de peritos selectos o poder de decidir como vão ser os sistemas a que vamos ter acesso ou até o que se pode investigar. O que precisamos é de garantir o acesso generalizado à informação para que estes juízos de valor, acerca do que queremos que estes sistemas façam, possam ser resolvidos de forma democrática. Os peritos são úteis para resolver problemas técnicos mas não para decidir se suspendemos o uso de ficheiros pdf para voltar a haver ardinas.

1) Future of life, Pause Giant AI Experiments: An Open Letter.
2) Vice, The Open Letter to Stop 'Dangerous' AI Race Is a Huge Mess

quinta-feira, novembro 10, 2022

Mais mulheres.

Há menos mulheres que homens nas tecnologias de informação e comunicação (TIC). Assumindo ser um problema, propõe-se coisas como «banir a ideia de “empregos de raparigas” versus “empregos de rapazes”, promover a importância das disciplinas STEM, educar os jovens sobre as possibilidades de carreira dentro destas áreas, chamar a atenção para as mensagens com preconceito de género» (1). Penso que quem defende isto falha no diagnóstico e subestima a dificuldade de convencer as mulheres a fazer o que outros julgam ser melhor para elas.

O gráfico abaixo mostra a distribuição de inscritos pela primeira vez no primeiro ano de um curso superior em 2021, por área de estudo e sexo. Mais esbatidos estão os valores para os anos de 2016 a 2020 (2). As mulheres são minoria em TIC mas são a maioria na saúde, educação, humanidades, artes e direito. E são a maioria no ensino superior, diferença que tem diminuído mas que ainda é de seis porcento a favor das mulheres. Suspeito que não há muitas mulheres à espera que lhes digam que curso tirar. Por isso, trazer mulheres para as TIC implica convencê-las a desistir de outros cursos que tenham escolhido ou então apanhá-las ainda crianças, antes de decidirem por si. E como se tem de atrair mulheres sem atrair os muitos homens de outras áreas, o que iria estragar as estatísticas, é preciso tomar medidas discriminatórias como prémios (3) ou programas de formação (4) que excluem quem não tem os genitais seleccionados.



O primeiro problema desta empreitada é o diagnóstico errado. Muitas mulheres em jornalismo, sociologia, direito e outras profissões alegam que as mulheres não vão para TIC por causa do sexismo e estereótipos como o dos «“empregos de raparigas” versus “empregos de rapazes”». Mas esta alegação nunca vem na primeira pessoa. Refere sempre mulheres hipotéticas e anónimas, sendo difícil encontrar uma advogada, médica ou escritora que lamente não ter sido engenheira informática ou de telecomunicações por culpa do sexismo e estereótipos. Também não é plausível que as jovens universitárias acreditem que as TIC são só para homens. A racionalização é que são enviesamentos inconscientes que, tal como Deus, sabemos que existem porque não os vemos. Mas nada disto é consistente com os dados. As mulheres estão em maioria em direito e medicina, profissões mais conservadoras que as TIC e que foram dominadas por homens durante séculos, enquanto as TIC, disciplinas recentes vindas da matemática, tinham muito mais igualdade de género antes de despertarem o interesse dos homens. A tese de que o sexismo impede as mulheres de irem especificamente para as TIC quando não as impede de dominar outras disciplinas outrora exclusivas para homens não faz sentido.

A distribuição de géneros pelas áreas dos cursos sugere que trabalhar com máquinas atrai mais homens e trabalhar com pessoas atrai mais mulheres. O pequeno número de mulheres em TIC explica-se mais facilmente por estar no extremo desta gama. Há poucos homens que gostam de passar o dia a olhar para linhas de código, e mulheres ainda menos. Mas apesar de se invocar diferenças entre os sexos para justificar que é preciso mais mulheres em TIC, não é politicamente correcto admitir que essas diferenças possam fazer as mulheres preferir outras profissões. É isto que obriga a presumir que as mulheres precisam de ajuda para escolherem o curso certo.

O outro problema de «trazer mais mulheres» (5) para as TIC é ético. Há poucos homens em ensino e enfermagem mas, não sendo impedidos de ingressar nesses cursos, se não há é porque não querem. Ninguém tenta "trazer" os homens para curso nenhum, nem para o seu bem, nem para promover diversidade genital nem para beneficiar a indústria. Cada homem decide por si. As mulheres não. No caso delas não é uma escolha individual; «é uma questão de igualdade de género mas também é uma questão económica e social» (5). E, como são mulheres, não se pode assumir que saibam o que é melhor para elas. Tem de se insistir que «escolham de entre todo o leque de áreas que existem, porque não há áreas exclusivamente femininas ou masculinas» até escolherem opções que garantam a tal igualdade nas estatísticas. É uma perversão do valor ético da igualdade.

A igualdade que devemos promover é a da liberdade de cada um escolher por si em vez da igualdade dos números. E é uma violação grosseira deste dever pressionar as mulheres em função da suposta conveniência da indústria, de igualdades estatísticas ou por presumir saber melhor que elas o que elas querem. Isto é tão óbvio que não se faz com os homens, e muito menos se aceitaria que uma faculdade de direito ou medicina criasse bolsas exclusivas para homens em nome da igualdade e da diversidade. Mas este truque de criar tachos, comissões e publicidade à custa de um falso problema está a trocar o feminismo justo da mulher como pessoa, com a mesma autonomia e responsabilidade de um homem, por uma caricatura da mulher como vítima indefesa que tem de ser protegida de tudo, desde «mensagens com preconceito de género» até às suas próprias preferências.

1- Experis.pt, Atrair as Mulheres Para a Tecnologia e Reduzir a Desigualdade de Género
2- Dados da DGEEC, Vagas e Inscritos. Há dados desde 2013, mas nos primeiros anos a categorização das áreas é diferente e mesmo tentando fazer a correspondência por cursos ficam uns milhares de alunos sem área identificada, por isso usei só os dados de 2016 em diante.
3- Por exemplo, Medalhas de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência ou Feedzai Women in Science
4- Technovation Challenge Portugal
5- SAPO Tek, “As mulheres criam valor e reforçam áreas TIC que precisam de talento e diversidade”

domingo, novembro 06, 2022

Conversas.

Muitas divergências nas redes sociais acabam em frustração e ataques pessoais. Algumas até em bloqueio. Mas há outras que estimulam conversas produtivas precisamente por os participantes discordarem. Proponho que o factor determinante é o propósito da conversa. É o que queremos com o diálogo que determina se vamos ter frustração ou proveito.

Para dar um exemplo, há tempos João Vasco Gama propôs ser inconsistente apoiar os ucranianos contra a invasão russa sem apoiar os palestinos contra a ocupação israelita (1). Eu discordei porque, apesar de condenar muito que Israel faz, também não consigo apoiar os palestinos. Os vizinhos de Israel há décadas que tentam obliterar esse país, é constante o ódio e o terrorismo contra os judeus e mesmo antes de Israel existir já os palestinos tentaram aliar-se a Hitler para "resolver o problema" dos judeus naquela região. Discordarmos nisto levou a uma troca interessante (para mim) de comentários sobre guerras, genocídios e ocupações até Gama declarar a conversa terminada porque «já expusemos todos os argumentos que consideramos relevantes» e nenhum ia conseguir convencer o outro. Dizendo-se cansado da conversa, exigiu até que me calasse ou continuasse noutro lado.

Parece-me que a causa desta frustração é tentar convencer. Qualquer opinião minimamente ponderada enquadra-se numa rede de premissas, dados e valores. Esta nossa divergência não se limita à Ucrânia e à Palestina. Inclui diferenças políticas, ideológicas, de ponderação de factores históricos, e até da estimativa do que aconteceria aos judeus se os palestinos tivessem maior poder militar. Para um de nós mudar de opinião tem de refazer toda essa rede que lhe dá contexto e isso leva tempo. É possível, mas não é provável que ocorra numa breve troca de comentários no Facebook. Por isso, quem conversa nas redes sociais com o desejo de lhe darem razão ou só conversa com quem já concorde ou vai ficar frustrado.

Dialogar para convencer também tem o defeito de focar a conversa nas pessoas em vez dos assuntos, o que leva a ataques pessoais, zangas e uma atitude de antagonismo. Até torna difícil terminar o diálogo de forma civilizada, levando a mandar calar o outro ou a bloqueá-lo. Eu prefiro uma abordagem diferente, que não me traz frustração. Dialogar com quem discorda é uma oportunidade para ver um assunto pensado de forma diferente. Mesmo que esse pensamento me pareça errado, o diálogo ajuda a questionar premissas e a tornar ideias mais claras. E numa conversa focada nas ideias em vez dos participantes não importa quem ganha, quem se convence ou quem muda de opinião. Pode-se aproveitar as divergências para ajudar a perceber melhor o assunto em apreço. É por isso que nunca senti esse cansaço que Gama invocou nem a necessidade de mandar calar os meus interlocutores ou de os bloquear.

E isto funciona mesmo que a outra parte não queira colaborar. Há casos, como por exemplo criacionistas, teólogos, anti-vacinas ou aqueles que tentam racionalizar a invasão da Ucrânia, em que o objectivo da outra parte é criar o máximo de confusão para disfarçar os problemas das teses que defende. Mas mesmo assim o diálogo pode ser proveitoso. Por um lado porque a nossa confiança numa posição não deve assentar apenas nas razões a seu favor. Devemos também verificar se não há boas razões para escolher uma alternativa. Por exemplo, quando as melhores justificações que me apresentam para Putin invadir a Ucrânia são dissuadir países de se juntar à NATO ou as «afinidades com as pessoas de língua materna» russa na Ucrânia (2), eu fico mais confiante na minha conclusão de que esta invasão foi um erro trágico motivado por ambição e incompetência. Se o maior ataque à nossa posição equivale a bater latas e atirar poeira ao ar provavelmente estamos no bom caminho.

Por outro lado, a resistência empenhada ajuda a afinar explicações. Por vezes encontro auto-proclamados peritos que escrevem vários parágrafos a dissertar sobre a minha ignorância, e arrogância por discordar deles, mas não conseguem explicar os meus supostos erros. Mesmo não me proclamando perito prefiro não fazer tão triste figura. O diálogo ajuda a tornar as ideias mais claras e, mesmo que aquela pessoa não esteja receptiva a explicações, eventualmente saber explicar será útil. Nunca chegamos à perfeição mas a prática ajuda a ficar mais perto.

Por isso, nas redes sociais, não me preocupo se mudo as ideias dos meus interlocutores. Há muito poucas pessoas cuja opinião individual realmente importa na minha vida e com essas não é nas redes sociais que converso. É verdade que me preocupa a popularidade de algumas opiniões. Vivemos numa democracia e a opinião dominante afecta-nos a todos. Mas isto não se deve a esta ou àquela pessoa em particular. E é também porque a opinião pública importa que é melhor evitar amuos, birras, bloqueios e esses surtos de imaturidade que assolam quem só quer que lhe dêm razão. Dedicar a conversa a explorar os assuntos e a tornar as ideias tão claras quanto possível não só é menos frustrante como também contribui para um debate público mais racional.

1- A conversa estava aqui no Facebook, 7 de Julho de 2022 mas entretanto fui bloqueado portanto não sei se é possível ler sequer o que eu escrevi.
2- Nesta conversa com Paulo Gil no Facebook: 12 de Outubro de 2022
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domingo, agosto 14, 2022

O género.

Eu não sou do género masculino. Eu sinto-me do género masculino como eu o concebo, e sinto como enquadro os outros nas minhas categorias de género. Mas não existem géneros objectivos. Os géneros são algo que cada um sente acerca de si, acerca dos outros e acerca de como se relaciona com os outros. Sendo subjectivos, variam muito de pessoa para pessoa. Por exemplo, eu sinto-me do género masculino porque nasci com pénis e testículos, e sinto que quem nasceu com vulva e ovários é do género feminino. Isto é apenas uma descrição grosseira porque eu não defini nada disto de forma explícita e deliberada. Estou a tentar exprimir o que sinto. E é óbvio que outras pessoas poderão sentir isto de forma diferente. Por exemplo, em 2020 a actriz Ellen Page declarou ser do género masculino e mudou de nome para Elliot. Claramente, Page tem uma concepção dos géneros diferente da minha, tal como as outras pessoas terão as suas.

Não devia ser necessário mencionar isto, mas o fervor ideológico em torno deste tema obriga-me a deixar explícito que não desejo mal algum a pessoas transgénero. Defendo incondicionalmente a liberdade de viverem, de se exprimirem e de se relacionarem com os outros de acordo com as categorias de género que sentem. E condeno sem reservas quem as coagir, ameaçar ou agredir só porque discorda dessas categorias de género. Mas isto não é apenas para pessoas trans. É um direito humano. Ninguém deve ser obrigado a fingir categorias de género diferentes daquilo que sente ou a exprimir-se e relacionar-se com os outros de forma que não lhe seja natural.

Infelizmente, a subjectividade das categorias de género choca com os objectivos políticos de quem quer impor umas aos outros. Uma vez mencionei esta subjectividade num grupo de Facebook e a administradora acusou-me de “violência simbólica”. Para me castigar, decidiu referir-se a mim com pronomes femininos para eu sentir o terrível sofrimento que a minha tese estaria a causar. Não teve o efeito desejado. Mas vamos supor que em vez desta infantilidade alguém sinceramente me categorizava no género feminino. Nem seria muito descabido. Eu não sei conduzir, não ligo ao futebol, não cumpri o serviço militar e não sei caçar. Por outro lado, tenho muita experiência a mudar fraldas, a dar banho a bebés, a cantar para adormecerem e a coser peluches lesionados. Quem conceber os géneros em função destes estereótipos em vez dos genitais pode bem achar que eu sou mais mulher que homem. É-me indiferente. Estou satisfeito com o que sou e não me ralo com as categorias dos outros. E esta talvez seja a maior diferença entre pessoas como eu e pessoas como Page, porque alguém que se submete a cirurgias e tratamentos hormonais para alterar o aspecto do seu corpo provavelmente nem está bem consigo nem é indiferente ao que os outros pensam.

É aqui que surge o argumento da empatia: as pessoas transgénero sofrem tanto que temos o dever de fingir que pensamos nelas no género que elas preferem. Mas ter empatia e pena não implica o dever de ser hipócrita. Elliot Page tem todo o direito de dizer-se a si e a mim no género masculino e colocar Ellen Page no género feminino, de acordo com os géneros como Page os concebe. Mas eu tenho o mesmo direito de sentir que Elliot e Ellen estão ambas no género feminino, como eu o concebo, e que é diferente do masculino em que me categorizo, e ambos diferentes dos que Page concebe. Lamento que Page não se sinta bem com o seu corpo mas isso nada tem que ver com a liberdade de termos categorias de género diferentes. Além disso, esta abordagem da “empatia” é prejudicial porque não distingue entre o normal e o patológico. Que uma pessoa de um sexo sinta que o seu género é outro não é doença nem merece pena. É um sentimento subjectivo. Mas amputar partes saudáveis do corpo, tomar hormonas só para mudar a aparência e viver obcecado com os pronomes que os outros usam são sintomas de patologia. É um erro grave fingir que isto é tudo normal e saudável, ao ponto de se dar hormonas a crianças para impedir a puberdade. Isto não é empatia e até devia ser crime.

À direita, os mais conservadores querem impor categorias de género baseadas no sexo alegando que o sexo é objectivo. Se bem que as características sexuais sejam objectivas, é subjectivo se as usamos para conceber os géneros. Eu uso, mas é legítimo não o fazer. E à esquerda querem dar a certas pessoas o poder de ditar aos outros como categorizar os géneros. Assumem que uma pessoa é objectivamente de um género se disser que é desse género. Mas quando Page diz ser do género masculino está a referir-se a esse género como Page o concebe. Isso não tem nada que ver com o meu conceito de género masculino, que é diferente do de Page. Cada pessoa sente estas coisas de forma diferente e ninguém consegue definir objectivamente o que é ser masculino ou feminino. Portanto, se alguém se referir a mim como “a Ludwig” não está a dizer nada acerca do meu género como eu o concebo. Está apenas a exprimir-se de acordo com as suas categorias de género, que nada têm que ver com as minhas. Não há por isso qualquer justificação para ser eu a ditar-lhe que pronomes pode usar ou como me deve categorizar.

Se admitirmos que as categorias de género são subjectivas todos os problemas parvos que se tem inventado desaparecem. Quando é necessário objectividade, ignora-se o género. Exames à próstata são para quem tem próstata, seja de que género for. No desporto, tal como as categorias de peso dependem do que está na balança e não do atleta se sentir esbelto ou rechonchudo, também as provas femininas devem ser para atletas do sexo feminino seja qual for o seu género. Resta o problema real de quem sofre demasiado com o seu corpo e com que os outros pensam, mas esse é um problema de saúde para os médicos resolverem. Nós temos é de resistir a qualquer tentativa de nos impor conceitos de género ou restringir como os exprimimos. O que cada um sente é consigo e mais ninguém tem legitimidade para mandar nisso.

sexta-feira, agosto 12, 2022

É moeda, só que não.

Hugo Ramos é um guru português da Bitcoin. É o autor do price to time model, segundo o qual cada Bitcoin iria valer $200000 no final de 2021 (1), e de vários canais no YouTube intitulados «F U Money»(2). Em Maio, Ramos reagiu a uma conversa sobre cripto-activos entre Mariana Mortágua e Adolfo Mesquita Nunes (3). O estilo do discurso torna o vídeo doloroso de assistir mas Ramos revela aspectos do evangelismo da Bitcoin que é importante conhecer, especialmente se alguém pensa meter-se nisto. Antes de mais, devo declarar que até há uns anos fui entusiasta desta tecnologia e talvez volte a ser se alguma coisa sobrar depois dos reguladores acabarem com as aldrabices. Mas por agora só estou fascinado a ver o camião do lixo a arder.

Ramos começa por contradizer Mortágua afirmando que a Bitcoin é uma moeda e não um activo financeiro, e explica que só não é moeda porque legalmente não é reconhecida como tal. O que é estranho porque uma moeda distingue-se de um activo precisamente pelo seu estatuto legal. Depois diz que é moeda em El Salvador. Realmente, lá o governo obriga os comerciantes a aceitar Bitcoin e tentou que a população adoptasse a Bitcoin como moeda. Não teve sucesso (4) mas, legalmente, em El Salvador Bitcoin devia funcionar como moeda. No entanto, quando Mortágua apontou que tinham perdido dinheiro por comprar Bitcoin mais cara do que está agora, Ramos disse que não porque só se perde dinheiro com um activo financeiro quando se vende esse activo e, além disso, muitos ganharam porque compraram quando o preço estava inferior ao que está agora. Para quem estiver na dúvida acerca do que é a Bitcoin, é simples: é o que der mais jeito, moeda quando sobe para contar logo o ganho e activo quando desce porque nesse caso só conta como perda se venderem. O importante é que comprem sempre.

Acerca do uso ilegal de activos criptográficos, Ramos aponta que há mais uso criminoso de dólares do que de Bitcoin. Mas isto diz pouco. Não só porque há muito mais valor em dólares do que em activos criptográficos mas, e especialmente, porque o mercado destes activos não é regulado e muito que seria crime em dólares não foi ainda declarado ilegal com Bitcoin. Por exemplo, as transacções de activos criptográficos parecem ser maioritariamente falsas (wash trading), sendo o vendedor também o comprador (5). Isto serve para manipular preços ou dar uma ideia falsa de liquidez e é crime em mercados regulados. Como este mercado não tem regulação legal, ninguém foi preso por isto. Este mercado é regulado apenas pela decência natural que sabemos caracterizar quem quer ganhar dinheiro seja por que meios for.

Outro aspecto interessante da apologia da Bitcoin é uma ideologia libertária que Mortágua descreve como infantil mas que eu julgo ser demasiado hipócrita para tal benevolência. Por exemplo, Ramos defende que o princípio fundamental que justifica a Bitcoin é a liberdade das pessoas criarem o seu dinheiro e não serem oprimidas pelo Estado. Mas ao mesmo tempo Ramos opõe todos os activos criptográficos que não sejam Bitcoin, aos quais chama shitcoins, e aplaude a decisão do governo de El Salvador de obrigar os comerciantes a aceitar Bitcoin quer queiram quer não. A retórica de Ramos acerca da economia também é confusa e contraditória. Insurge-se repetidamente contra o que chama “economia Keynesiana”, ser ser claro o que quer dizer, e protesta contra a inflação apontando que imprimir dinheiro tira valor ao dinheiro que as pessoas têm. Mas depois pergunta porque é que o Estado cobra impostos se pode imprimir dinheiro. Pois é precisamente para mitigar a inflação que de outra forma resultaria ao pagar polícias, professores, médicos e assim por diante. Neste contexto, Ramos alega que a Bitcoin é a forma mais segura de guardar valor porque é impossível de roubar ou confiscar e não depende do Estado. Mas basta aos meliantes uma corda e um barrote para em poucos minutos persuadir Ramos a dar-lhes as chaves criptográficas e assim roubar-lhe irreversivelmente as Bitcoin. Ramos precisa de um Estado que o proteja destas coisas, mais ainda do que se tivesse o dinheiro no banco. A ideologia supostamente libertária que Ramos apregoa parece ser só demagogia para disfarçar o problema da utilidade prática da Bitcoin ter morrido afogada em especulação.

Se se conseguir resolver os problemas de escala, consumo de energia, e regulação, esta tecnologia de transacções distribuídas pode ter alguma utilidade. Mas o valor económico desta aplicação será talvez uma milésima do que alegam ser agora o valor total dos activos criptográficos. O preço de uma Bitcoin multiplicado pelo total em circulação dá quase quinhentos mil milhões de euros. Só que isto nem corresponde ao dinheiro disponível para comprar Bitcoin nem deriva de qualquer negócio que justifique os 23 mil euros por Bitcoin. O preço cai sempre que ao volume regular de transacções fictícias se junta uma fracção a trocar Bitcoin por dinheiro porque para isso é preciso gente disposta a meter dinheiro no sistema. É essa necessidade de aguentar a pirâmide que orienta o discurso dos cripto-evangelistas, as “mãos de diamante” e os olhos de laser.

Eu não tenho qualificações para dar conselhos sobre investimento financeiro. Mas se alguém estiver interessado em investir nestes activos recomendo o esforço de ver o vídeo de Ramos (3). Oiçam Ramos tendo em mente que quem investiu nisto só lucra se outros a seguir investirem mais ainda.

1- YouTube, P2T Model (Bitcoin) Revealed for the First Time on Tone Vays Channel - 3rd Jan 2021
2- Ver mais em fyoumoneypod.com
3- YouTube, F You Money! [#12] Hugo Responde à Amiga Mariana Mortágua Sobre a Bitcoin - Take #2
4- Investing, NBER: El Salvador’s Bitcoin Legal Tender Adoption Failed To Take-Off
5- Pennec et al., Wash trading at cryptocurrency exchanges

sábado, julho 02, 2022

Consciência, Inteligência Artificial, e porque é que estamos tramados.

Um engenheiro da Google, entretanto despedido, alegou que o LaMDA, um modelo linguístico dessa empresa, se tinha tornado consciente (1). Muitas pessoas apontaram que é disparate mas as justificações que tenho visto não me deixaram satisfeito. Uns alegam que LaMDA não pode ser consciente porque apenas calcula probabilidades de frases e palavras. Além de isto subestimar a complexidade destes modelos, muito mais complexos do que aquilo que um ser humano consegue conscientemente fazer, mesmo tarefas simples podem ser feitas com consciência. Contar pelos dedos, por exemplo. Portanto, não é por "apenas" estimar probabilidades que não pode ser consciente. Outra justificação é que as palavras produzidas por LaMDA não têm intencionalidade, aquela propriedade de ser acerca de algo. Quando uma pessoa diz que subir ao monte Evereste é um grande feito, sabemos que diz essas palavras referindo aquele monte e conceito. Quando LaMDA dá essa resposta (2), são apenas palavras. Só na mente do leitor é que referem alguma coisa. Isto é verdade mas só diz que LaMDA não é consciente porque não é consciente. Neste contexto, intencionalidade e consciência acabam por ser o mesmo.

Eu proponho que o problema está na forma como o algoritmo é materializado. Um algoritmo é uma sequência abstracta de instruções que podem ser executadas de forma automática. Por exemplo, para calcular a área do triângulo somamos o comprimento dos lados, dividimos por dois, subtraímos a esse valor cada um dos lados, multiplicamos esses quatro valores (o total e as diferenças) e calculamos a raiz quadrada desse produto. Isto em abstracto. Em concreto, o melhor é arranjar algum suporte material e convencionar uma correspondência com estes passos. Marcas num papel ou a posição das contas de um ábaco, por exemplo. Ou, melhor ainda, cargas e tensão num circuito electrónico. Aí corre tudo automaticamente e no final só temos de interpretar o resultado. É assim que LaMDA funciona. Em abstracto, uma frase como "porque é que as pessoas sobem ao monte Evereste?" é mapeada numa tabela de números, esses números são multiplicados e somados a outros números, dá uma tabela ainda maior de números, faz-se isso várias vezes com muitos milhões de números e várias funções e no fim saem números indicando a probabilidade de cada palavra que pode vir a seguir*. Mas isso é o algoritmo em abstracto. Em concreto não vamos lidar com números mas sim com cargas e tensões num circuito que, para nós, representam esses números e essas operações. No final aparece uma mancha no ecrã que interpretamos como sendo uma resposta à nossa pergunta.

O que eu proponho é que a consciência não vem do algoritmo, que é abstracto, mas depende do suporte físico em que este for materializado. Um algoritmo simples materializado num cérebro humano é executado de forma consciente. Se o humano usar um ábaco ou um lápis, a consciência continua no humano e não no ábaco ou no lápis. E se materializar o algoritmo num circuito electrónico, também não é o circuito que fica consciente. Se LaMDA for consciente, então todos os aparelhos electrónicos serão conscientes também, o que não é plausível.

Isto não presume nada de sobrenatural ou imaterial acerca da consciência. É um problema mais genérico. Por exemplo, podemos pensar num algoritmo para construir um muro de tijolos, com todos os cálculos para posicionar os tijolos e colocar a argamassa em função das dimensões do muro e dos tijolos. E podemos materializar esse algoritmo fazendo as contas de cabeça, usando papel e lápis ou um computador sem que nada disso produza um muro de tijolos. Apenas vai produzir alguma representação do muro. Para termos mesmo um muro de tijolos o algoritmo terá de ser materializado num sistema físico que assente mesmo os tijolos e ponha a argamassa. Tal como assentar tijolo, a consciência também deve ser uma actividade específica que não surge automaticamente em qualquer materialização de algoritmos. Exactamente como a poderemos obter não sei, mas o que me parece é que não é empurrando electrões de um lado para o outro num circuito para representar operações algébricas. Deve ser preciso algo mais do que isso.

Se isto for verdade, então nem LaMDA é consciente nem qualquer rede neuronal ou programa de IA que se implemente neste tipo de computadores será consciente. Enquanto estivermos a materializar os algoritmos nestes ábacos electrónicos, por muito rápidos os ábacos e complexos os algoritmos, nem vão assentar tijolo nem gerar consciência. O que me preocupa é a capacidade destes modelos parecerem humanos aliada à sua capacidade sobre-humana de ter milhões de conversas personalizadas ao mesmo tempo. LaMDA é mais sofisticado do que apenas um modelo linguístico, porque a Google incluiu métricas como relevância, correcção factual, "segurança" (i.e. ser politicamente correcto) e afins (2). Mas os objectivos podiam ser outros. Podiam ser o de persuadir as pessoas a votar num candidato ou de as convencer que a democracia é uma experiência falhada e precisamos é de um ditador, por exemplo.

Um sistema sofisticado destes, capaz de criar conversas aparentemente inteligentes, gerar imagens falsas, criar artigos automaticamente e o que mais for preciso para persuadir pode ter um impacto enorme na nossa sociedade. E em vez de prepararmos as pessoas para resistir a isto andamos a fazer o contrário. Ensinamos os jovens que as palavras "ferem" e que por isso se deve evitar o que é desagradável ou nos contradiz. Proibimos que se divulguem factos que possam ofender alguém. Treinamos as pessoas a criar bolhas onde só entra o que lhes agrada. Exigimos que sejam os outros a verificar se o que vemos é verdade, para nem termos de pensar no assunto. Soltar sistemas como LaMDA neste meio vai ser uma razia. O meu medo não é que a inteligência artificial se torne consciente. O que me preocupa é a consciência natural estar cada vez menos inteligente, precisamente na altura em que isso é mais perigoso.

* O grande poder desta abordagem, de aprendizagem profunda, é que podemos começar com estes números todos ao acaso e depois, cada vez que o resultado não for o que queremos, ajeitamos os valores para reduzir um pouco o erro. Fazendo isso milhões de vezes conseguimos encontrar um algoritmo, que será aquela sequência de operações com aqueles números, que dá os resultados desejados. Mesmo sem sabermos como. Esta abordagem permite pôr o computador a resolver problemas que nós não sabemos como resolver. Por exemplo, o de calcular a probabilidade das palavras de uma resposta dada uma pergunta qualquer.

1- Washington Post, The Google engineer who thinks the company’s AI has come to life.
2- ResearchGate, LaMDA: Language Models for Dialog Applications.

sábado, julho 31, 2021

Crianças de alta competição.

Um post de Joana Amaral Dias chama atenção para o problema de Leonor Baptista, uma ginasta de 11 anos, pelas minhas contas (1), que «foi campeã nacional este ano, [...] Tem declaração da federação atestando “atleta de elevado potencial desportivo" [e] treina cinco horas por dia» (2). Por isso, defende Dias, devia ter um lugar na escola Filipa de Lencastre, que fica perto de sua casa. Dias lamenta também que o Estado não apoie a Leonor, que «o desporto que deveria estar no nervo da educação, que é tão importante para a coesão nacional, é assim tratado. As crianças, que são o nosso futuro, desprezadas. Portugal mata o sonho e a realização dos mais novos, desportistas ou não» e assim por diante. Eu acho que todas as crianças deviam ir para escolas próximas de suas casas, dentro do possível, mas discordo que o Estado discrimine crianças pelo "potencial desportivo" ou incentive que as treinem para alta competição.

A prática moderada de desporto é saudável mas o treino de alta competição não visa a saúde dos praticantes. Visa maximizar o desempenho dos atletas na competição. É para ganhar medalhas. Isto não é apropriado para crianças, cujo desenvolvimento pode ser prejudicado pelo treino excessivo e demasiado especializado. Além disso, o dever do Estado é incentivar todas as crianças à prática saudável de desporto e não o treino intensivo de algumas seleccionadas por clubes ou federações pelo seu potencial para ganhar. É uma falácia justificar o treino de alta competição de algumas crianças invocando que o desporto traz saúde a todos.

A competição cria conflitos de interesse entre o atleta e pessoas e instituições envolvidas na sua formação. Se bem que isto seja mais notório nas competições de topo, que geralmente (mas nem sempre) envolvem adultos, seria ingénuo assumir que as crianças que participam em torneios nacionais ou internacionais não estão sob pressão para ganhar. Ou que os treinadores e clubes não estão sob pressão para maximizar o número de troféus que os atletas conquistam*.

Isto é evidente nos argumentos pelos incentivos ao treino de alta competição. Não defendem o desporto pela saúde das crianças. Isso seria exigir aulas de natação para crianças com peso a mais, por exemplo. O que exigem é o treino de crianças com "potencial desportivo" para glória do clube, federação e país. É para "ganharmos" medalhas. Esta instrumentalização dos atletas é admissível com a Patrícia Mamona ou o Jorge Fonseca porque são adultos e sabem no que se estão a meter. Se querem ganhar medalhas e os portugueses querem sentir vicariamente que também ganham, todos beneficiam se o Estado ajudar. Mas com crianças é diferente.

O fabrico de ganhadores é muito ineficiente e as crianças não só são incapazes de avaliar adequadamente o custo de dedicarem anos a treinar cinco horas por dia como não conseguem perceber quão improvável é terem os benefícios com os quais são aliciadas. Se lhes mostram o exemplo da Sunisa Lee vão ficar maravilhadas com o seu percurso e motivadas a imitá-la no esforço e dedicação. Se lhes elogiarem o talento vão ficar convencidas de que podem chegar onde Lee chegou. Mas não vão perceber que por cada Sunisa Lee há centenas de crianças que sacrificaram o mesmo mas nunca chegaram às medalhas. Ou até sacrificaram mais em lesões e outros problemas. Não podemos assumir que uma criança que entra aos sete ou oito anos neste processo o faz de forma voluntária e consciente. Pelo contrário. O mais provável é que vá ao engano, com ilusões irrealistas acerca do seu percurso e empurrada por interesses que não são necessariamente os seus. Sem garantia que o sacrifício é voluntário e consciente não é aceitável que o Estado incentive a transformação de crianças em ganhadores de medalhas.

Esta minha posição tem beneficiado de algumas críticas que me fizeram. Uma é a de ser paternalista. Admito que sim mas proponho que o paternalismo é inteiramente justificado em questões com impacto na vida de crianças tão jovens. Outra é que a alta competição incentiva crianças a praticar desporto, o que é saudável. A essa crítica contraponho que a alta competição não incentiva as crianças a praticar desporto de forma saudável. Será melhor usar outros incentivos. Finalmente, há o testemunho seleccionado de pessoas que devem o seu sucesso ao treino de alta competição ou que competiram e correu tudo bem. O problema desses exemplos é o enviesamento. O enviesamento na amostragem, por seleccionar em retrospectiva os casos mais convenientes, e o enviesamento pessoal análogo a quem defende o direito de dar palmadas aos filhos porque também levou e não lhe fez mal nenhum. Se uma criança treina cinco horas por dias dos 8 aos 18 anos e mais tarde perguntarmos se valeu a pena, é de esperar alguma resistência à conclusão que mais valia ter dado prioridade à brincadeira e outras coisas. Estas críticas não resolvem o problema fundamental: enquanto é de louvar a dedicação extrema do medalhado adulto, o mesmo sacrifício vindo de uma criança de 8 anos, ou 11, ou 15, deixa a dúvida se será realmente voluntário ou se a criança está a ser manipulada contra os seus interesses por quem quer medalhas e glória. Esse risco é suficiente para justificar a mesma prudência com que lidamos em geral com tudo o que afecta as crianças.

Se uma criança quer passar cinco horas por dia a fazer ginástica, defendo que seja livre de o fazer. Se a querem treinar para ganhar medalhas, seria bom mitigar o risco da criança se sacrificar por interesses de terceiros e em detrimento dos seus mas não sei como regular esta forma de trabalho infantil. O que me parece claro é que o Estado não deve incentivar que façam isto às crianças com "elevado potencial desportivo". Não só porque o incentivo à prática de desporto devia ser para todos, e para que praticassem desporto de forma saudável, como também porque incentivos ao treino de competição iriam agravam riscos já significativos para crianças, que por serem especialmente vulneráveis são quem o Estado tem maior obrigação de proteger.

* Os meus filhos mais velhos participaram em competições quando eram pequenos. Não era alta competição. Nem perto disso. Mas mesmo assim a pressão de pais e treinadores sobre as crianças era tão grande, tão ridiculamente grande, que eu disse aos meus filhos que o importante no desporto não é vencer mas sim humilhar completamente o adversário. Os meus perceberam que era piada mas temo que para muitos era a sério...

1- Venceu na categoria de infantis em 2018 e na de iniciados em 2019, GCP, campeões
2- No Facebook

quinta-feira, julho 29, 2021

A ciência não prova.

Em países como o nosso, os crentes religiosos resolvem a contradição entre as suas crenças e a ciência apontando que a ciência não pode provar que não existem deuses, que não há alma e essas coisas*. É uma solução modesta. Acreditar só por não se provar o contrário é pouco exigente. E se bem que isto esteja superficialmente correcto, porque a ciência não pode provar o que quer que seja, no fundamental é uma confusão acerca da prova e do que a ciência faz.

Conseguimos provar que 4 é um número par porque tudo o que é relevante para esta afirmação está sob o nosso controlo. Definimos nós o que são números inteiros, o que é a divisão, o que é um múltiplo de 2 e assim por diante, por isso 4 ser número par não depende de qualquer hipótese acerca da qual haja incertezas. Esta é uma condição necessária para se poder provar algo**. Já agora, aplica-se o mesmo a provar que 4 não é um número ímpar. Se alguém alegar que não pode provar uma negativa, está enganado. Isso não é problema nenhum. O problema é a incerteza inevitável quando lidamos com a realidade. Fora do domínio controlado da lógica e da matemática falta-nos as certezas necessárias à prova. Por exemplo, não podemos provar que a Lua existe porque pode ser uma ilusão criada por extraterrestres, podemos estar a viver numa simulação e assim por diante. Sem controlo absoluto sobre as premissas não se pode provar nada. Portanto, a ciência não pode provar a inexistência de deuses pela razão trivial de não se poder provar seja o que for acerca da realidade. Provar é só para conceitos abstractos.

Sendo fútil tentar provar hipóteses isoladas acerca da realidade, o que a ciência faz é avaliar comparativamente as alternativas em função do que contribuem para as melhores explicações. Esta inferência à melhor explicação lida sem problemas com elementos sobrenaturais, negativas e o que mais calhar. Marcha tudo. Consideremos, por exemplo, o mito grego das estações do ano. Perséfone, filha de Deméter, tem de passar metade do ano com Hades porque comeu sementes de romã quando lá esteve. Isso faz Deméter ficar triste e, como é a deusa da fertilidade, temos o Outono e o Inverno. Quando Perséfone volta a casa Deméter fica feliz e vem a Primavera e o Verão. A ciência não pode provar que esta hipótese é falsa. Tem elementos sobrenaturais, seria provar uma negativa, mas nada disso é o problema. O problema é que não se pode provar nada acerca da realidade. No entanto, a ciência pode comparar esta hipótese com a explicação alternativa de que as estações do ano são consequência do ângulo de 23.5º entre o eixo de rotação da Terra e a perpendicular ao seu plano orbital. E esta explicação é bem melhor.

O ângulo do eixo de rotação pode ser medido de forma independente do seu papel na explicação das estações do ano. Deméter, Perséfone e companhia são postuladas ad hoc para servir a explicação. O ângulo tem de ser mesmo 23.5º para encaixar na duração do dia e da noite ao longo do ano, em cada latitude, e o percurso aparente do Sol no céu. A rábula da Perséfone, Deméter e Hades pode ser adaptada de muitas maneiras. Deméter é a esposa de Hades e Perséfone é amante ou Perséfone fugiu com Hades e a mãe está zangada com ela, por exemplo. Porque entre a narrativa e os dados há uma folga enorme. A orientação do eixo da Terra explica porque é que as estações não são simultâneas nos dois hemisférios. O mito grego pode ser adaptado para explicar isso. Se calhar Deméter tem uma casa na Áustria e outra na Austrália. Mas é outra coisa que tem de ser inventada ad hoc sem confirmação independente. Por estas razões, a orientação do eixo da Terra é uma explicação melhor para as estações do ano. E é assim que a ciência nos permite rejeitar o mito grego. Não por provar que é falso, porque isso seria impossível, mas por mostrar que há explicações melhores.

É teoricamente possível que fumar faça bem à saúde e que todos os indícios em contrário resultem de uma enorme conspiração. Mas o mais plausível é que faça mal. Não podemos provar que a bruxaria não funciona mas a melhor explicação para a ineficácia observada de feitiços e previsões com búzios e cartas é que é tudo treta. É este o problema que a ciência cria aos dogmas religiosos. É um método de comparação de hipóteses que não favorece o que os religiosos gostariam que favorecesse. Por exemplo, a hipótese de termos uma alma imortal e indestrutível não só postula esta entidade sem justificação como exige muitas explicações ad hoc para o efeito observado de lesões cerebrais, que nos podem privar de memórias, impedir raciocínio, tirar vontade e agência e até alterar a personalidade. O cristianismo alega que o criador deste universo se revelou a uma pequena tribo na idade do bronze e encarnou, mais tarde, como fundador de uma seita minoritária dessa tribo. A melhor explicação para o cristianismo é que resulta do mesmo tipo de acidentes sociais e políticos que popularizaram o islão, o hinduísmo, o budismo e por aí fora, que obviamente não podem ser todas a única e verdadeira religião.

As religiões são incompatíveis com a ciência. Não se pode conciliar a procura pelas melhores explicações com a abordagem dogmática de presumir verdades. E este problema não desaparece alegando que são domínios diferentes ou que é impossível provar uma negativa porque a função da ciência não é produzir provas dedutivas. A função da ciência é explicar, que é algo muito mais abrangente e poderoso. É graças a isso que, por exemplo, agora tratamos a epilepsia com medicação em vez de exorcismos. Não por ter ficado provado que demónios não existem mas porque se encontrou explicações melhores para esta patologia.

* Em países como o Irão e a Arábia Saudita ainda recorrem a soluções medievais.
** Mas, como Gödel demonstrou, não é condição suficiente.

sábado, julho 10, 2021

O vestido.

Depois de apreciar o tronco nu do Renato Saches e criticar o vestido da Lenka da Silva, Fernanda Câncio justificou-se como quem quer sair de um buraco escavando o fundo. Explicou que o problema não é o vestido da Lenka mas «O princípio constitucional [...] da igualdade de género [e] "a prossecução de políticas ativas de igualdade entre mulheres e homens" como "dever inequívoco de qualquer governo e uma obrigação de todos aqueles e aquelas que asseguram o serviço público em geral"». É por isto que Câncio quer que o Estado combata os tais «estereótipos de género» regulando o que as mulheres vestem na TV. Mas só as mulheres. Os homens até podem aparecer em tronco nu, que Câncio aprecia, porque «os estereótipos de género não objetificam nem sexualizam os homens» (1). Estranha igualdade.

A igualdade de género que faz sentido é a igualdade perante a lei. Mas para isso bastava fazer como a igualdade de direitos em função da beleza ou da inteligência: omitir da lei qualquer referência a esses atributos. É claro que isto não impede as pessoas de discriminar feios e belos ou burros e inteligentes. Mas isso compete a cada um decidir, bem como se valoriza estas coisas mais numas pessoas que noutras. Câncio parece querer o contrário. Quer regulação intrusiva e discriminatória para combater a «visão diferenciada do que é suposto valorizar-se nas mulheres e nos homens». Que não lhe compete nem a ela nem ao Estado decidir pelos outros. Eu dou mais importância à beleza nas mulheres do que nos homens, reivindico o direito de o fazer e não reconheço ao Estado legitimidade para me regular estes valores. O papel do Estado é garantir direitos. Não é manipular preferências. Se Câncio quer igualdade nisto, então que dê ela mais importância à beleza nos homens. Eles não se vão queixar e evita usar o Estado para forçar as pessoas a terem todas os mesmos gostos que ela.

Além do abuso do poder do Estado, é fútil regular os vestidos na RTP para alterar estereótipos de género. Mesmo que Lenka vá para o Preço Certo de fato de treino e gola alta, continua a ter página no Instagram, as mulheres continuam a vestir-se como querem na rua e há partes da Internet cheias de estereótipos de género em várias posições, combinações e número de participantes. E nem adiantava censurar tudo isso, como evidencia a persistência de estereótipos de género em países onde as mulheres são obrigadas a disfarçarem-se de saco preto. A razão da futilidade está na origem destes estereótipos, que não são causados pelo vestido da Lenka mas sim por milhões de anos de evolução que criaram na nossa espécie dois sexos especializados em aspectos diferentes da reprodução, com estratégias diferentes, preferências diferentes na selecção de parceiros e comportamentos diferentes.

É por isso que não se consegue igualdade de género declarando que não há géneros. Seria o mais prático. Acabava de uma vez a desigualdade, a discriminação e essas coisas todas. Mas não funciona porque os géneros são consequência dos sexos. É algo tão profundo no ser humano, e tão resistente a propaganda e programas de televisão, que há pessoas que recorrem a tratamentos drásticos ou se suicidam por o seu corpo não corresponder ao que concebem ser o seu género. Na verdade, combater estereótipos de género é combater a identidade de género. Cada pessoa tem de conceber e generalizar características que distinguem os géneros para se categorizar e para se relacionar com os outros. Mas essa generalização conceptual exige estereótipos. O que é ser homem ou ser mulher, por exemplo. Câncio quer usar o Estado para alterar a forma como certas pessoas concebem os géneros, violando o dever de respeitar a autonomia de cada um nestas matérias.

Esta ideologia woke é inconsistente, demagógica e até hipócrita. Diz ser pela igualdade e justiça mas a igualdade que defende é injusta. Em vez de ser igualdade nas liberdades quer forçar igualdade de preferências e escolhas, que ninguém deve ser obrigado a ter igual aos outros. Combate estereótipos sem reconhecer que os estereótipos fazem parte de como cada um pensa acerca de si e dos outros. Daquela identidade que dizem defender e que não deve ser alvo de regulação governamental. Combate a sexualização das mulheres de forma claramente discriminatória (o tronco nu do homem não tem problema) e sem perceber que as competições desportivas sexualizam os homens como os vestidos curtos sexualizam as mulheres.

A "objectificação" é mais uma treta. Objectificar uma pessoa é tratá-la como um objecto, em oposição a tratá-la como um ser humano. Mas se bem que quando apreciamos a apresentadora de mini saia ou o futebolista de tronco nu não os estamos a valorizar em toda a sua dimensão humana, a atracção sexual é caracteristicamente humana. Muito mais objectificado é quem recolhe o lixo, desentope sarjetas ou desempenha tantas outras profissões nas quais as pessoas, principalmente homens, fazem papel de coisa e até seriam substituídas por máquinas se ficasse mais barato. E raramente conhecemos alguém com tal intimidade que o possamos apreciar plenamente como ser humano. É o vizinho, o colega, a professora, todos objectificados em maior ou menor grau em função da relação que tenhamos com cada um. O termo "objectificação" como Câncio o usa apenas disfarça o puritanismo desigual com que encara a sexualidade, segundo o qual ser sexualmente atraente é bom para homens mas desumanizador para as mulheres.

Esta esquerda evangélica abandonou a luta por liberdades e direitos e está fixada em usar o Estado para doutrinar. O combate aos estereótipos, a exigência de igualdade em valores e opções e a demagogia envolvente visam politizar opiniões pessoais para justificar restringi-las àquilo que declaram ser correcto. Quem preze a democracia, mesmo que se considere de esquerda, deve opor esta tentativa de eliminar a fronteira entre o Estado e a opinião de cada um.

1- DN, O preço (errado) de uma polémica

sábado, julho 03, 2021

Os ciclos.

Com o aumento de novos casos aumenta também a acusação de falsos positivos. Independentemente do aumento nos internamentos, cuidados intensivos ou óbitos, é tudo falsos positivos porque a um bom conspiracionista os factos não metem medo. Uma variante sofisticada desta alegação é a dos ciclos de amplificação nos testes de PCR. Reza a conspiração que "eles" aumentam o número de ciclos para dar falsos positivos porque o PCR não é fiável acima dos 35 ciclos. É uma boa conspiração porque não só tem os tais "eles" que nos andam a enganar como permite ao conspiracionista passar por entendido sem o trabalho de entender seja o que for. Noutras circunstâncias, esta coisa dos ciclos até teria graça.

O muco que vem na zaragatoa tem células da pessoa testada, bactérias diversas, vários vírus e sabe-se lá mais o quê. Uma forma de testar se a pessoa está infectada com SARS-CoV-2 é usar moléculas que se ligam especificamente a certas proteínas desse vírus. É o que se usa no teste rápido, que assim fica com uma marca visível apenas se a amostra contém essas proteínas do vírus. O problema dos testes rápidos é que a marca só é visível se houver proteína suficiente e, por isso, só são fiáveis num período curto após o início dos sintomas, quando a carga viral é mais alta. Para detectar infecções antes dos sintomas é preciso usar PCR, que aproveita as propriedades do ADN* para conseguir detectar o vírus mesmo em quantidades pequenas.

As moléculas de ADN são longas cadeias formadas pela ligação sequencial de quatro tipos de nucleótidos, as tais letras A, C, G, e T **. Na cadeia de ADN, estes nucleótidos ficam com umas caudas espetadas e há uma forte afinidade entre a cauda de A e a de T, e entre e a cauda de C e a de G. Uma consequência disto é a forte tendência das moléculas de ADN se colarem a moléculas complementares. Se uma tem ACTGAC... vai ficar presa a outra que tenha TGACTG... como um fecho de correr. A outra consequência desta afinidade específica é permitir que enzimas sintetizem uma cadeia de ADN a partir de uma cadeia mãe e um trecho inicial ligando pela ordem certa os nucleótidos complementares. Estas enzimas são as polimerases, o P em PCR.

A ligação entre duas moléculas complementares de ADN é forte mas não tão forte como as ligações covalentes dentro de cada molécula. Por isso, se as aquecermos conseguimos que a agitação as separe sem degradar as moléculas. E quando arrefecem ficam novamente coladas aos pares complementares, porque a afinidade das sequências de nucleótidos é muito específica. Ou seja, podemos separar e juntar os pares sempre que quisermos, bastando aquecer e arrefecer a solução com o ADN. E com isto temos praticamente tudo para o PCR. Faltam só os primers.

O propósito do processo PCR é amplificar trechos específicos de ADN se estes existirem. Dessa forma, mesmo que haja pouco vírus na amostra, com PCR conseguimos aumentar a concentração do ADN correspondente até ser detectável. Para isso vamos juntar à amostra uma quantidade grande de pedaços de ADN, sintetizados artificialmente, cuja sequência encaixa especificamente em partes do ADN viral. Quando aquecemos e arrefecemos a amostra, as moléculas de ADN vão emparelhar e, se houver lá ADN do vírus, vai ficar com esses primers agarrados. Pomos a polimerase a trabalhar e todos os primers que encontraram parceiro vão ser aumentados pela polimerase, sintetizando a partir deles cópias do ADN do vírus. Agora aquecemos e arrefecemos de novo e vamos repetindo o processo. A cada ciclo a quantidade de ADN do vírus duplica, aproximadamente, porque estamos a criar cópias, e cópias de cópias, e assim por diante.

Tipicamente, se a pessoa está infectada com este vírus, ao fim de uns vinte ciclos já há tanto ADN que se nota o sinal de fluorescência no aparelho. Nesse caso o teste deu positivo. Se não houver vírus na amostra, então não acontece nada e ao fim de quarenta ciclos acaba o teste, que nesse caso deu negativo. O tal problema dos 35 ciclos ocorre se o sinal de fluorescência surgir acima deste número de ciclos. Isso é um problema porque sugere que há vírus na amostra mas para o sinal só surgir depois dos 35 ciclos é porque alguma coisa correu mal ou a quantidade inicial de vírus era tão pequena que pode ter sido contaminação. A zaragatoa pode ter tocado onde não devia, alguém espirrou lá perto ou coisa do género. Por isso, nesses casos, manda a DGS que o teste seja repetido do início, incluindo meter outra vez a zaragatoa no nariz do desgraçado que, sem culpa nenhuma, teve um teste inconclusivo.

Em conclusão, se bem que seja verdade que acima de 35 ciclos o resultado positivo não é de fiar, é ridícula a ideia de que "eles" andam a aumentar os ciclos para dar falsos positivos. O número de ciclos depende da amostra. Se não tem nada o teste pára aos 40 ciclos e é negativo. Se houver sinal é no ciclo que calhar. Normalmente é abaixo de 35 e é positivo, mas se calhar acima repete-se. Não há um botão no aparelho para aumentar a taxa de falsos positivos.

* Em rigor, este vírus tem ARN em vez de ADN. Mas o que se faz é usar enzimas que copiam o ARN do vírus para o ADN correspondente, pelo que isto acaba por ser um detalhe irrelevante.
** Adenina, Citosina, Guanina e Timina, mas esta parte não vem para o teste.