Os ciclos.
Com o aumento de novos casos aumenta também a acusação de falsos positivos. Independentemente do aumento nos internamentos, cuidados intensivos ou óbitos, é tudo falsos positivos porque a um bom conspiracionista os factos não metem medo. Uma variante sofisticada desta alegação é a dos ciclos de amplificação nos testes de PCR. Reza a conspiração que "eles" aumentam o número de ciclos para dar falsos positivos porque o PCR não é fiável acima dos 35 ciclos. É uma boa conspiração porque não só tem os tais "eles" que nos andam a enganar como permite ao conspiracionista passar por entendido sem o trabalho de entender seja o que for. Noutras circunstâncias, esta coisa dos ciclos até teria graça.
O muco que vem na zaragatoa tem células da pessoa testada, bactérias diversas, vários vírus e sabe-se lá mais o quê. Uma forma de testar se a pessoa está infectada com SARS-CoV-2 é usar moléculas que se ligam especificamente a certas proteínas desse vírus. É o que se usa no teste rápido, que assim fica com uma marca visível apenas se a amostra contém essas proteínas do vírus. O problema dos testes rápidos é que a marca só é visível se houver proteína suficiente e, por isso, só são fiáveis num período curto após o início dos sintomas, quando a carga viral é mais alta. Para detectar infecções antes dos sintomas é preciso usar PCR, que aproveita as propriedades do ADN* para conseguir detectar o vírus mesmo em quantidades pequenas.
As moléculas de ADN são longas cadeias formadas pela ligação sequencial de quatro tipos de nucleótidos, as tais letras A, C, G, e T **. Na cadeia de ADN, estes nucleótidos ficam com umas caudas espetadas e há uma forte afinidade entre a cauda de A e a de T, e entre e a cauda de C e a de G. Uma consequência disto é a forte tendência das moléculas de ADN se colarem a moléculas complementares. Se uma tem ACTGAC... vai ficar presa a outra que tenha TGACTG... como um fecho de correr. A outra consequência desta afinidade específica é permitir que enzimas sintetizem uma cadeia de ADN a partir de uma cadeia mãe e um trecho inicial ligando pela ordem certa os nucleótidos complementares. Estas enzimas são as polimerases, o P em PCR.
A ligação entre duas moléculas complementares de ADN é forte mas não tão forte como as ligações covalentes dentro de cada molécula. Por isso, se as aquecermos conseguimos que a agitação as separe sem degradar as moléculas. E quando arrefecem ficam novamente coladas aos pares complementares, porque a afinidade das sequências de nucleótidos é muito específica. Ou seja, podemos separar e juntar os pares sempre que quisermos, bastando aquecer e arrefecer a solução com o ADN. E com isto temos praticamente tudo para o PCR. Faltam só os primers.
O propósito do processo PCR é amplificar trechos específicos de ADN se estes existirem. Dessa forma, mesmo que haja pouco vírus na amostra, com PCR conseguimos aumentar a concentração do ADN correspondente até ser detectável. Para isso vamos juntar à amostra uma quantidade grande de pedaços de ADN, sintetizados artificialmente, cuja sequência encaixa especificamente em partes do ADN viral. Quando aquecemos e arrefecemos a amostra, as moléculas de ADN vão emparelhar e, se houver lá ADN do vírus, vai ficar com esses primers agarrados. Pomos a polimerase a trabalhar e todos os primers que encontraram parceiro vão ser aumentados pela polimerase, sintetizando a partir deles cópias do ADN do vírus. Agora aquecemos e arrefecemos de novo e vamos repetindo o processo. A cada ciclo a quantidade de ADN do vírus duplica, aproximadamente, porque estamos a criar cópias, e cópias de cópias, e assim por diante.
Tipicamente, se a pessoa está infectada com este vírus, ao fim de uns vinte ciclos já há tanto ADN que se nota o sinal de fluorescência no aparelho. Nesse caso o teste deu positivo. Se não houver vírus na amostra, então não acontece nada e ao fim de quarenta ciclos acaba o teste, que nesse caso deu negativo. O tal problema dos 35 ciclos ocorre se o sinal de fluorescência surgir acima deste número de ciclos. Isso é um problema porque sugere que há vírus na amostra mas para o sinal só surgir depois dos 35 ciclos é porque alguma coisa correu mal ou a quantidade inicial de vírus era tão pequena que pode ter sido contaminação. A zaragatoa pode ter tocado onde não devia, alguém espirrou lá perto ou coisa do género. Por isso, nesses casos, manda a DGS que o teste seja repetido do início, incluindo meter outra vez a zaragatoa no nariz do desgraçado que, sem culpa nenhuma, teve um teste inconclusivo.
Em conclusão, se bem que seja verdade que acima de 35 ciclos o resultado positivo não é de fiar, é ridícula a ideia de que "eles" andam a aumentar os ciclos para dar falsos positivos. O número de ciclos depende da amostra. Se não tem nada o teste pára aos 40 ciclos e é negativo. Se houver sinal é no ciclo que calhar. Normalmente é abaixo de 35 e é positivo, mas se calhar acima repete-se. Não há um botão no aparelho para aumentar a taxa de falsos positivos.
* Em rigor, este vírus tem ARN em vez de ADN. Mas o que se faz é usar enzimas que copiam o ARN do vírus para o ADN correspondente, pelo que isto acaba por ser um detalhe irrelevante.
** Adenina, Citosina, Guanina e Timina, mas esta parte não vem para o teste.
em rigor este é um retrovirus
ResponderEliminarVirus ou retrovirus, não sei, porque de virologia entendo menos que nada.
ResponderEliminarMas entendo o suficiente de contas para concluir que a exclusão, pelo Governo, do critério da aceleração ou desaceleração dos contágios está a conduzir a situações caricadas, como a que ocorreu na passada semana em todo o concelho de Elvas: numa situação de inequívoca desaceleração, quando tudo já estava, praticamente, resolvido, foi decretada, com base unicamente no critério da média quinzenal, a imposição de restrições como se de um município 'perdido' se tratasse.
Refleti sobre o tema e, com base no senso comum e na mais rasteira aritmérica, proponho dois critérios alternativos em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/castigos-inuteis-da-covid.html, para onde deito os meus desabafos.
Terei gosto em que visite e, seja o texto digno ou indigno, consinta em comentá-lo.