Uma nota sobre a nota, parte 2.
Voltando à «nota sobre a ciência»(1), o Desidério aponta, correctamente, que algo não é ciência só por incluir «experiência e […] observação. Pois nesse caso a agricultura empírica seria científica e isso é precisamente o que não é.» Claramente, ser empírico não basta para ser ciência. É preciso também ter teorias, esquemas simbólicos para gerar modelos. Os egípcios e os romanos tinham bons conhecimentos empíricos de construção mas os seus métodos de isto faz-se assim e aquilo faz-se assado não eram científicos. A engenharia civil de hoje é científica porque organiza o conhecimento empírico em esquemas simbólicos, como equações de forças, que permitem gerar descrições detalhadas de cada edifício. Com isto já não estamos limitados a experimentar pirâmides com vários declives até descobrir uma que não desmorone. Podemos prever o comportamento dos edifícios antes até de os construir. Infelizmente, de um parágrafo para o outro, o Desidério deixa de afirmar apenas que a observação e a experiência não são condições suficientes, o que está correcto, e passa a afirmar que a observação e a experiência «não são condições necessárias da cientificidade». Isso já está errado.
Segundo o Desidério, «a observação e a experiência [são] condições necessárias [...] apenas das ciências... empíricas [mas] a matemática tem tanta ou mais cientificidade do que a física ou a química, e no entanto não usa a observação nem a experimentação.» É falso que a matemática não use experimentação ou observação. Sem experiência empírica o matemático seria como um computador, incapaz de escolher axiomas e limitado a manipular símbolos sem perceber o que eles representam. Mas o problema do Desidério não é só este. A matemática permite criar teorias e modelos simbólicos, uma parte indispensável da ciência, mas a ciência, enquanto processo, não se fica pela mera geração de teorias e modelos. Exige que sejam testados. Sem observação e experiência fica-se a meio do processo. O Desidério diz que há duas culinárias, uma que mistura a farinha com os ovos e o açúcar e outra que põe a massa no forno. Não é assim. Ambas as fases do processo são necessárias, na culinária e na ciência.
Por exemplo, Aristóteles propôs que toda a matéria terrena era composta por quatro elementos, fogo, terra, ar e água. Isto é um esquema explicativo que pode ser usado para gerar modelos descrevendo cada substância química como uma certa proporção destes quatro elementos, cumprindo assim um dos requisitos da ciência. No entanto, falta o resto. Por si só, esta proposta não é científica. Para ser aceite como uma explicação científica era preciso considerar as alternativas e recolher dados que indicassem ser esta a melhor explicação. Como isso não aconteceu, classificamos a física aristotélica de filosfia e não ciência.
Criticando o que diz ser «histórias da carochinha», o Desidério depois afirma que «Sempre houve ciência empírica desde que se começou a fazer ciência, na Grécia da antiguidade. O que não havia -- surpresa, surpresa -- era algo como a ideia de que a matemática era aplicável à natureza empírica.» Outro erro. A matemática sempre foi aplicada à “natureza empírica”. Quando Pitágoras demonstrou o seu famoso teorema sabia que os construtores egípcios usavam a relação entre catetos e hipotenusa num triângulo rectângulo para formar ângulos rectos. As operações algébricas de adição, diferença, multiplicação e divisão vêm da necessidade prática de fazer contas acerca da “natureza empírica”. O próprio termo axioma significa algo que é auto-evidente, que vem da experiência e não se deduz. O que faltava à matemática antiga era precisamente o contrário do que o Desidério alega. Faltava a capacidade de se distanciar do evidente e considerar absurdos como curvaturas no espaço-tempo ou números imaginários. E mesmo isso foi ganho pela experiência, que foi revelando um universo muito mais estranho do que inicialmente supunham.
O que faltava antigamente para que fizessem ciência é o que falta agora ao Desidério. A compreensão de que a ciência conjuga, por um lado, a concepção especulativa de modelos simbólicos e, por outro, o teste empírico da adequação desses modelos aos aspectos da realidade que pretendem descrever. É isso, em conjunto, que é ciência. Os engenheiros romanos sabiam amarrar madeiras para arremessar pedregulhos contra os inimigos mas não se preocupavam em modelar forças e trajectórias. Os filósofos gregos teciam elaboradas teorias acerca da origem e natureza das coisas mas não se ralavam com o teste prático das várias alternativas de forma a reunir evidências em favor de uma e em detrimento das restantes. A física de Aristóteles, por exemplo, dominou o pensamento europeu durante séculos mas nunca serviu para prever ou fazer algo que não se fizesse sem ela. Houve excepções pontuais, mas só nos últimos séculos é que se generalizou a ideia importante de submeter a especulação simbólica da filosofia ao crivo empírico da engenharia. É isso que é ciência.
No último parágrafo da sua nota o Desidério afirma que quando «se defende a uniformidade epistémica devidamente certificada e abalizada pelo estado, estamos precisamente a tomar o partido da velha guarda que procurava pôr travão às perigosas ideias novas.» Se isto é uma alusão à discussão sobre a homeopatia, uma das razões pelas quais sou contra que o Estado certifique os homeopatas é precisamente por não competir ao Estado determinar o que é epistemicamente aceitável. Isso é o que faz a ciência. Não a ciência aos pedacinhos, como o Desidério a concebe, partida em ciências de várias cores e sabores, mas a ciência como um todo, o processo contínuo de gerar explicações, considerar alternativas, confrontá-las com os dados, aperfeiçoar e voltar a gerar novas explicações. É isso que permite concluir que a homeopatia é treta, uma boa razão para o Estado não certificar homeopatas.
1- Desidério Murcho, Uma nota sobre a ciência. Ver também a primeira parte deste post.
2- A incompreensão profunda das diferenças cruciais, com seguimento aqui e aqui.