Contar feijões.
O Pedro Cosme Vieira sugeriu que a educação em Portugal deixasse de ser sem custos para o utilizador e passasse a «SCUMA - Sem custos para o utilizador no momento da apropriação do bem»(1), mas paga mais tarde, em prestações, descontando-se ao ordenado de cada um o custo da sua educação. Penso que é um bom exemplo de dois problemas comuns neste tipo de argumento económico: seleccionar tendenciosamente os factores a considerar e, pior do que isso, inferir dos alegados factos juízos de valor.
Estima o Pedro que a educação custa uns 70.000€ ao Estado, 100.000€ se for de medicina, pelo que acha «interessante a canalhada brava, esquerdista, recém licenciada vir para a rua gritar que não contribuiu em nada para a dívida pública quando mamou 70000€ no Estado (mais aos país e pelos anos de chumbo).» Como provavelmente sou o que ele considera “canalhada esquerdista”, devo esclarecer este ponto. O Estado gasta uns 100 mil milhões de euros por ano, cerca de dez mil euros por pessoa. Eu pago uns quinze mil em impostos directos, mais uns três ou quatro mil em IVA e nem sei quanto em impostos que o Estado cobra à produção e que se reflecte no preço de venda. Contas por alto, devo pagar ao Estado o dobro do que o Estado gasta em média por pessoa. É provável que, ao longo da minha carreira, acabe por dar mais do que recebo. O que é justo, porque o posso fazer com menos sacrifício do que muitos outros, mas pago do meu trabalho o que o Estado me dá e ainda pago por quem não pode dar tanto.
Mas o argumento central do Pedro é que Quem tem mais escolaridade [tem] um salário mensal mais elevado [e] a probabilidade de um licenciado estar desempregado é 30% menor que a média [...] Desta forma, cria-se a injustiça social de as pessoas que não usufruem da escola terem que pagar o ensino de quem usufrui.» Esta análise falha em dois pontos que deviam ser óbvios até para um economista. Primeiro, se o salário é 30% maior, os impostos que paga são maiores numa percentagem ainda mais elevada, pois quem ganha mais paga uma fracção maior do que ganha. Em segundo lugar, a educação gratuita, mesmo que só alguns tirem um curso, tem benefícios para todos. Se o curso de medicina custasse 100,000€ ao médico, mesmo que descontados mais tarde, haveria menos pessoas a seguir medicina e quem seguisse cobraria mais pelo seu trabalho, por um lado por haver menos oferta e, por outro, para compensar os custos. Isto ia aos bolsos de todos. O que o Estado poupasse nas faculdades de medicina pagava depois nos hospitais públicos e o que o cidadão poupasse nos impostos que não pagava para os estudantes de medicina pagava depois nas consultas ou, pior ainda, ficava sem médico a quem recorrer.
Isto não é só para medicina. Saber ler e escrever, por exemplo, não parece grande coisa mas quem quiser investir numa empresa precisa de empregados capazes de fazer contas, gerir stocks, preencher papelada e afins. Se cada pessoa tivesse de pagar 50.000€ do seu ordenado para ter educação o custo desse trabalho seria muito maior. Isso não só prejudicava todos os clientes da empresa como também prejudicava os donos. No fundo, quem beneficia mais, individualmente, da educação gratuita são os grande accionistas. Pode ser que um empregado da Sonae ganhe mais umas centenas de euros do que ganharia sem a educação que tem. Mas o Belmiro de Azevedo ganha muitos milhões por não ter de pagar a educação dos seus empregados e por poder comprar, mais barato, o trabalho de tantas pessoas qualificadas.
A ideia de que quem tira um curso é o único beneficiário desse investimento é um disparate. A educação beneficia muita gente, e não é só em euros. Quanto maior o nível de educação dos meus vizinhos, nem que sejam licenciados em literatura medieval ou escrita cuneiforme, é mais provável que vacinem os seus filhos, que tomem os antibióticos de forma responsável, que não sejam criminosos e que sejam melhores vizinhos do que se não tiverem ido à escola. Mas assumir que o licenciado é o único beneficiário da licenciatura nem é o maior problema do argumento do Pedro. O pior é inferir daqui que, por isso, cada um deve pagar a sua educação. É uma inferência falaciosa, que parece fazer sentido quando não faz. O propósito do Estado não é cada um comprar o que pode. Não é preciso Estado para cada diabético pagar a sua insulina, cada habitante pagar o seu pedaço de estrada e cada um pagar a investigação do crime de que foi vítima. O papel fundamental do Estado é garantir a todos certas coisas importantes – como saúde, segurança e educação – distribuindo equitativamente o esforço de as pagar. Quando os economistas conseguirem garantir que todos nascem em famílias igualmente ricas e generosas podemos deixar estas coisas por conta do mercado. Se todos puderem participar nas transacções com igual poder de negociação, o princípio do utilizador pagador pode ser justo. Mas, até lá, as coisas mais importantes não podem ficar só para quem pode pagar, e a educação é das coisas mais importantes. Para todos.
1- Económico-Financeiro, Cortar na despesa - a educação.
"Contas por alto, devo pagar ao Estado o dobro do que o Estado gasta em média por pessoa. É provável que, ao longo da minha carreira, acabe por dar mais do que recebo."
ResponderEliminarMas é que não tenha dúvidas em relação a isso...Se fizer bem as contas (é uma questão de paciência e de não nos esquecermos de nenhuma parcela)se calhar é mais do que o dobro...
Certamente que a frase "Como a dívida pública são "apenas" 20000€/pessoa, já estamos a ver que os escolarizados são os culpados da nossa dívida colectiva" do Cosme Vieira é de uma imbecilidade atroz, economista ou não, mas também é verdade que quem paga 15 mil euros anuais de impostos directos não ganha o ordenado médio (que ronda os 800 euros/mês, salvo erro). Para esse nível de ordenado, se considerarmos que IRS+TSU=30%, então os descontos anuais serão cerca de 3300 euros.
ResponderEliminarHugo Monteiro,
ResponderEliminar«mas também é verdade que quem paga 15 mil euros anuais de impostos directos não ganha o ordenado médio»
Sim. Mas essa parte está certa. Eu não me queixo dos impostos em si, que são um mal necessário para a sociedade funcionar. O problema é esta ideia de que quem deve é quem trabalha, ou quem estudou. É falso. Eu ganho mais por causa dos estudos, mas também pago mais porque ganho mais, e o que pago serve à vontade para cobrir os meus estudos. O problema está em quem contrata mil pessoas com o 12º ano, como os estudos dessas pessoas foram pagos pelos impostos pode comprar o seu trabalho mais barato, como toda a sociedade é mais rica por causa da educação pública e outros investimentos públicos pode vender o produto desse trabalho mais caro, mas depois não paga impostos sobre esse lucro na proporção da parte desse lucro que é devida ao investimento público que lhe permite lucrar assim. O resultado é que a maior parte dos impostos recai sobre aquele que vende o seu trabalho e só uma pequena parte recai sobre a revenda do trabalho alheio. Se isto fosse mais justo resolvia-se o problema do défice sem cortar investimento público e sem estrangular a economia.
Sim, eu compreendo esse problema. Estipular a quantidade ideal (e justa) de impostos directos e indirectos também é uma façanha particularmente complexa.
ResponderEliminarMas quem tem o 12º ano (principalmente no sector privado) só raramente ganha mais do que o ordenado médio. Pelas contas que fiz acima, assumindo que estão correctas, cada uma dessas pessoas teria de utilizar o total dos seus impostos directos durante cerca de 15 anos para pagar só a sua educação (só os gastos do Estado). Julgo que a principal discussão que a sociedade portuguesa deve ponderar é onde, e em que quantidade, vai buscar estes fundos.
Quando alguém se agrega numa universidade apenas com meia dúzia de publicações, sendo a maior parte actas de congressos ... desconfio da sua qualidade e não me surpreende tal raciocínio. Tb não me surpreende que mande estas postas de pescada porque sabe que ele não terá de pagar. Pelo discurso, pelo currículo e pelas fotos da 1ª comunhão parece-me mais um meninó com pouca obra e muita opus.
ResponderEliminar