Treta da semana (atrasada): razões.
No seu blog sobre ciência e fé, Miguel Panão estranha haver «quem pense que os que acreditam em Deus, em realidades espirituais, são pessoas irracionais que não pensam ou fazem uso da razão». Como prova aparente da racionalidade destas crenças, aponta «os diversos estudos, livros, revistas com arbitragem internacional, cursos universitários, doutoramentos, conferências internacionais, centenas de milhares de livros sobre ciência e religião.»(1)
O primeiro indício de irracionalidade está na deturpação daquilo que quer contrapor. O que está em causa não é se um crente é capaz de usar a razão. Ninguém está a dizer que Panão, os criacionistas ou os imãs são irracionais em tudo. Apenas que foi irracional adoptarem aquelas crenças específicas acerca dos deuses. E o segundo indício de irracionalidade está na inconsistência de critérios. Há muitos livros sobre o catolicismo, escolas católicas e artigos católicos. Mas também há muitas madraças e livros sobre o Islão e doutores dessas matérias. E escolas evangélicas e artigos sobre o “design inteligente”. Apesar de Panão não considerar isto evidência adequada da racionalidade do Islão ou do criacionismo evangélico, invoca-o como prova de que a sua crença é racional. Esta inconsistência é irracional. No fundo, o mais estranho aqui é a estranheza de Panão. Panão estranha que considerem irracional que ele faça aquilo que ele considera irracional nos outros.
Depois, o truque do “cientificamente”. «Se eu acredito que apenas se considera real o que posso testar cientificamente, então, há muita coisa que irei considerar como ficção, mesmo que não seja. Por exemplo, ter uma ideia. Por que razão é possível ter uma ideia?» O “cientificamente” dá ideia de que há diferentes formas de testar. Está será num laboratório, com instrumentos e bata branca ou algo assim. Mas o científico não é a forma de testar. É testar. Se inventamos uma hipótese e ficamos por aí, isso não é científico. Mas se a compararmos com alternativas e tentarmos encontrar as que melhor explicam o que nos intriga, então isso é científico. E é isso que nos permite concluir que as pessoas têm ideias e as torradeiras não: explica-se melhor o comportamento das pessoas assumindo que estas têm ideias mas assumir que as torradeiras têm ideias é desnecessário.
Outro truque é a mudança subtil da questão. Panão começa por falar no que se considera real e dá um exemplo: «Por exemplo, ter uma ideia.» Será que ter ideias é real? Claro que sim, todos sabemos que é, e saber que animais têm ideias e que estruturas neuronais estão envolvidas são áreas activas de investigação científica. Por isso, Panão tem de lhe dar um jeito: «Por que razão é possível ter uma ideia?». E aqui o leitor pensa “aha, isto a ciência não responde”. É claro que Panão também não tem resposta para isto, mas não importa. E de seguida baralha ainda mais: «Como justifico cientificamente ter uma ideia? E qual o método científico que me permite avaliar se o conteúdo dessa ideia a revela como uma ideia com conteúdo?» Além das perguntas serem confusas, o “cientificamente” e “científico” não estão lá a fazer nada. Sem essas palavras, as perguntas são exactamente as mesmas. No fundo, Panão está a dizer que queremos compreender como o cérebro funciona. É um objectivo meritório mas isso faz-se com ciência. Não se faz com criacionismo bíblico, nem com o Islão nem com o catolicismo.
Continuando nesta linha, Panão defende que não é “cientificamente” que sabemos o que é real mas sim pela experiência: «O crente em Deus faz uma experiência de Deus.» A experiência é um dos factores que temos de considerar para saber o que é real. Mas, para interpretar a experiência, temos de conjecturar. É isso que Panão faz quando especula que a sua experiência é “de Deus”. Conjectura. E o melhor método para avaliar conjecturas à luz da experiência chama-se ciência. A epilepsia é um bom exemplo. A experiência de um ataque epiléptico é de uma assustadora perda de controlo. Uma conjectura que pretendia explicar esta experiência era a de que demónios possuíam o corpo da pessoa. Graças a explicações melhores, que a ciência permitiu encontrar, hoje temos tratamentos mais eficazes do que o tradicional exorcismo. A “experiência de Deus” é análoga. A experiência em si é real, mas atribuí-la a um deus é mera conjectura, uma explicação fraca que pode ser substituída por explicações melhores que dispensam o sobrenatural. E é importante ter em conta que mesmo quem adora deuses que Panão considera não existirem relata exactamente as mesmas experiências. Se Panão fosse consistente nos seus critérios, isto bastaria para desconfiar das conclusões a que chega.
Eu não acho que todos os crentes sejam irracionais. Pelo contrário. Alguns são tão racionais que me espanta serem crentes. Mas não há nada que se explique conjecturando deuses e “realidades sobrenaturais” que não se explique melhor ainda dispensando essas coisas e, se o objectivo for apurar a verdade, adoptar estas crenças é irracional. O que deve ser óbvio para crentes como Panão, perfeitamente capazes de perceber que os factores que invocam como justificação racional da sua crença são exactamente os mesmos que rejeitam como insuficientes para justificar as crenças dos outros. Isto e o cuidado que dedicam aos truques de retórica para fingir que há um método não científico de compreender a realidade, ou “as realidades”, sugerem que esta irracionalidade não é um mero lapso mas sim um acto deliberado. No entanto, chamar a isto irracional presume que o que importa é a verdade. Talvez não seja. O compromisso com uma crença religiosa afecta muito o ambiente social e até as oportunidades económicas do crente. Adoptar certas crenças, ou aparentar adoptá-las, pode trazer vantagens e renegá-las pode ter custos elevados. Assim, esta atitude até pode ser uma estratégia racional pelas vantagens que traz. No entanto, se for racional, não o será pelas razões que dizem fundamentá-las. A crença em Deus pode ser uma crença útil mas não é uma crença verdadeira.
1- Miguel Panão, Tanto tempo a discutir tão pouco…