sexta-feira, dezembro 23, 2016

Computadores e trabalhadores.

Em 1997, o Deep Blue derrotou Kasparov. Foi a primeira vez que um computador derrotou um mestre de Xadrez a este nível. Em 2016, o AlphaGo derrotou Lee Sedol, um dos melhores jogadores mundiais de Go. Outra estreia mas, para muitas pessoas, foi mais do mesmo. O Pedro Romano deve ser uma dessas pessoas. Acerca do efeito potencial da inteligência artificial no emprego, Romano afirma que podemos «excluir da nossa lista de preocupações prementes o risco de uma sociedade sem empregos» e que a tese de estarmos «a viver uma era de inovação nunca vista, que vai causar conturbações sociais enormes» é incompatível com a tese de que «estamos num período de estagnação» económica, porque «Se cada pessoa produz mais, então […] cada pessoa pode também consumir mais»(1). Está enganado.

O Deep Blue usava uma tabela de parâmetros criada pelos programadores para avaliar as jogadas. Os valores eram ajustados por análise estatística de jogos passados mas os factores a avaliar – controlar o centro, perder um cavalo e assim por diante – foram fixados pelos programadores. Por isso, o Deep Blue era um computador que jogava Xadrez. O AlphaGo avalia cada jogada com uma rede neuronal treinada com um conjunto de partidas de Go sem qualquer especificação prévia sobre o que é importante. O AlphaGo não é um computador programado para jogar Go. É um computador programado para aprender a partir de exemplos.

Tecnologicamente, isto é muito diferente do que aconteceu até agora. Romano admite que «em prazos mais curtos – e o ‘curto’, neste caso, pode bem ser 10 ou 20 anos – é perfeitamente possível que se notem efeitos no mercado laboral» como consequência de inovações tecnológicas. Mas diz ser errado supor «que há um número fixo de postos de trabalho [porque] a procura adicional gerada pelo aumento da produtividade [...] vai implicar um aumento do emprego noutros novos sectores.» Ou seja, 10 ou 20 anos depois de se automatizar uma tarefa, uma nova geração de trabalhadores aprende a desempenhar outras tarefas, ainda não automatizadas. Mas se dez anos era um prazo curto no tempo do Deep Blue, no tempo do AlphaGo é uma eternidade. A mesma tecnologia que permite ensinar* o computador a jogar Go também permite ensinar a conduzir um automóvel, a atender clientes no restaurante ou a cobrar produtos na caixa do supermercado. Os humanos demoram 10 a 20 anos a adaptar-se e aprender novas profissões. Os computadores demorarão 10 a 20 dias. Ou 10 a 20 horas. E isto em qualquer tarefa que possa ser aprendida a partir de exemplos.

Romano também erra na estimativa do efeito económico do aumento de produtividade. Até certo ponto, um aumento de produtividade leva a melhores ordenados, mais consumo e mais emprego. Mas só até certo ponto. Uma pessoa que ganha um milhão de euros por mês não consome o mesmo que mil pessoas a ganhar mil cada uma, e esse efeito já se faz sentir. Escreve Romano que «não há sinal visível de progresso tecnológico acelerado nas estatísticas. Por que digo isto? Porque a produtividade em praticamente todo o mundo desenvolvido tem vindo a cair ao longo das últimas décadas e está hoje mais ou menos estagnada.» Isto é exactamente o que se espera se Romano não tiver razão e a automatização crescente estiver mesmo a prejudicar esta economia baseada na venda de trabalho. O Facebook, por exemplo, tem cerca de mil milhões de utilizadores, dezassete mil milhões de dólares de negócio anual e apenas doze mil empregados. O sucesso do Facebook depende da selecção criteriosa daquilo que cada utilizador vê mas, sem aprendizagem automática, isto iria exigir centenas de milhares de empregados para monitorizar os feeds de tantos utilizadores. Nessas condições, essa gente toda a trabalhar para o Facebook daria um empurrão grande à economia. Mas a automatização permite dispensar esses empregados, trocar trabalho por capital e acumular lucros em offshores. É por isso que os indicadores económicos não reflectem o enorme sucesso de empresas de alta tecnologia como a Microsoft, Amazon, Apple, Google e Facebook. Os rendimentos milionários dos accionistas não têm o mesmo efeito que teriam repartidos em salários.

A aplicação desta tecnologia a novas áreas de negócio é apenas o início. A aplicação a negócios já estabelecidos, como a restauração, venda a retalho ou transportes, vai demorar um pouco mais porque exige investimento e, em alguns casos, legislação. Mas é inevitável e será num prazo muito mais curto do que os tais 10 a 20 anos. Economicamente, este aumento de produtividade vai concentrar ainda mais a riqueza e agravar a tendência, que já se sente, para uma economia com menos transacções e mais dívidas e manipulação financeira. Uma economia frágil, sem crescimento real e que beneficia uma minoria cada vez mais pequena. E, tecnologicamente, esta inovação não é igual ao que aconteceu no passado porque não se trata de automatizar uma ou outra tarefa específica. O que se automatizou foi a capacidade de aprender e isso permite substituir os trabalhadores humanos não só em quase tudo o que fazem agora mas também em quase tudo que possam vir a fazer.

Isto não é necessariamente uma coisa má. Mas exige repensar a economia e abandonar a ideia de que o rendimento da maioria tenha de vir da venda do trabalho. Porque, em breve, o trabalho humano deixará de ter valor comercial. Como o dinheiro é um veículo importante de informação, que cada um pode usar para indicar as suas preferências, teremos de continuar a distribuí-lo e a manter a economia a funcionar. Mas essa distribuição não poderá ser pela venda de trabalho.

* Termos como “ensinar” e “aprender” sugerem alguma consciência da parte de quem aprende. Mas, neste contexto, uso-os apenas conforme a definição operacional de Mitchell: um sistema aprende se melhorar o seu desempenho numa tarefa conforme lhe fornecemos exemplos.

1- Pedro Romano, Robôs a roubar empregos

12 comentários:


  1. Uma coisa é a produtividade enquanto conceito, enquanto ratio entre quantidades, por exemplo, de produção física e unidade de trabalho, ou unidade de capital…ou de valor da produção e quantidade de fatores, sempre numa perspetiva do custo (preço), em cada momento. Neste caso, a produtividade depende dos valores disponíveis para cada um dos termos da relação. Estes valores são encontrados através de registos, de um determinado período, como por exemplo o PIB.
    Associar a “bondade” da produtividade, sem mais, ao crescimento económico, é algo perverso, porque este pode ser obtido à custa de sacrifícios desproporcionados…
    Outra coisa é a produtividade enquanto realidade (mensurável ou não), que pode ser maior, menor ou igual, à de diferentes períodos e que, ainda assim, varia de setor para setor e de ramo para ramo… Mas, em geral, só conta com “ganhos/perdas de eficiência” empresarial, quando há ganhos/perdas de eficiência das famílias e das instituições, em múltiplos níveis e não apenas dos custos.
    Em ambos os casos estamos a falar de quantidades, independentemente das qualidades e nem sequer estamos a falar de melhorias ou piorias.
    Em termos de valor acrescentado, não podemos ignorar, por exemplo, que o acesso aos computadores e à internet veio revolucionar a relação dos consumidores/famílias/particulares, com os outros agentes económicos, e também o modo como resolvem inúmeros dos seus problemas de autoprodução/autoconsumo.

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  2. Infelizmente, não será para breve que os humanos deixarão de trabalhar. Digo infelizmente porque bom seria que o trabalho fosse feito por robôs e os humanos pudessem viver para a especulação, a conjetura, a investigação, as artes, o desporto, o amor, a justiça, a paz.
    Para além destes, não é fácil vislumbrar domínios em que os robôs não sejam melhores do que nós a fazer o que lhes ensinamos.

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  3. Entretanto, não é de esperar que o crescimento e a produtividade ocorram em cenários de uma concentração dos rendimentos que ultrapasse os limites críticos do consumo, abaixo dos quais aqueles não podem ocorrer.
    De resto, e considerando que existem mecanismos e sistemas de medida e controle das quantidades/tipos de riqueza e respetivas apropriações/distribuições, tudo acabará por ser apenas um problema de cálculo em busca da máxima rendibilidade possível, sim, possível, com mais ou menos robôs.

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  4. Embora efectivamente a automatização tenha, num primeiro momento, o efeito de baixar os salários e concentrar a riqueza em poucas pessoas, essa concentração só existe enquanto as pessoas tiverem dinheiro para pagar.

    (e não estou de acordo que a "inteligência artificial" vá aumentar muito mais, salvo alguma descoberta fundamental, mas a que vai existir já chega)

    Sim, vai ter que existir uma modificação no modelo económico e social existente. Qual vai ser? Isso suspeito que não se vai chegar a consenso antes de acontecer. Como não se previu a idade dos metais, o império romano, a revolução francesa, o capitalismo.

    Revolução (no sentido de violência e/ou rotura violenta) ou algo que se baseia na boa vontade não vigiada das pessoas palpita-me que não vai ser, não vai funcionar.

    Uma transição lenta para um tecno-feudalismo é possível.

    Pessoalmente gostaria de alguém descobrir algum processo que permitisse uma transição para o capitalismo com boa distribuição de riqueza, não igualdade total, mas isso ia exigir novas ideias. (eu pessoalmente tenho a ideia que uma chave passa pela reforço brutal do IVA - ou seja qual for o nome - excluindo coisas regulamentadas como alimentação básica, medicina, transportes públicos educação e energia até um valor por pessoa e dependendo da localização, e coisas assim, baixando os outros impostos a que é muito fácil fugir).

    Mas a questão é que não se pode ir de A a B sem passar pelos pontos intermédios.Como Darwin já sabia.

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  5. Segunda tentativa de resposta :)

    Antes, uma clarificação. A minha 'tese' é que há razões teóricas para que a inovação aumente o desemprego, e há razões teóricas para que a inovação tenha um impacto nulo no desemprego. A resposta a esta questão, por isso, é necessariamente empírica: é preciso ir buscar dados. E os dados dos últimos 200 anos mostram que o impacto da inovação no emprego é virtualmente nulo. Estou a usar o passado para projectar o futuro.

    Mas aquilo que leio no teu post não é bem um desacordo em relação a esta projecção (ou não é PRIMARIAMENTE isto). É sobretudo uma interpretação do presente. Não estás a discordar da minha antevisão do futuro; estás mesmo a dizer que essa distopia já chegou.

    Mas se já cá está, onde é que se nota?

    Não é no desemprego. O desemprego nas economias mais desenvolvidas está hoje mais baixo do que há 10 anos (sim, há excepções, mas conhecemos bem a razão dessas excepções: recessões cíclicas. Aliás, mais de metade do desemprego nestas excepções vem do sector da construção, que dificilmente será uma vítima da IA).

    Também não é na relação capital/trabalho. A divisão capital/trabalho está mais ou menos estável desde 2006. Novamente, há excepções. Mas essas excepções claramente não coincidem com o mapa dos países onde há mais inovação. [Nota importante: não confundir a desigualdade na repartição entre capital e trabalho com a desigualdade entre trabalhadores - é esta, e não a anterior, que tem aumentado desde os anos 80].

    E há aqui uma parte que nem consigo perceber bem. Mas que suponho que decorra de um tema antigo entre nós:

    «O Facebook, por exemplo, tem cerca de mil milhões de utilizadores, dezassete mil milhões de dólares de negócio anual e apenas doze mil empregados. O sucesso do Facebook depende da selecção criteriosa daquilo que cada utilizador vê mas, sem aprendizagem automática, isto iria exigir centenas de milhares de empregados para monitorizar os feeds de tantos utilizadores. Nessas condições, essa gente toda a trabalhar para o Facebook daria um empurrão grande à economia. Mas a automatização permite dispensar esses empregados, trocar trabalho por capital e acumular lucros em offshores. É por isso que os indicadores económicos não reflectem o enorme sucesso de empresas de alta tecnologia como a Microsoft, Amazon, Apple, Google e Facebook»

    Pelo contrário. Se fosse preciso empregar milhares de pessoas para fazer aquilo, a produtividade seria baixa. É precisamente o facto de ser possível fazer muito com menos que faz com que a produtividade aumente. Se o Facebook está a criar imenso valor acrescentado com poucos trabalhadores, isso devia traduzir-se num aumento da produtividade. Longe de ser um contra-exemplo da hipótese, esse é um exemplo paradigmático da mesma.

    Não sei bem de onde vem isto, mas eu suponho que venha da identificação entre 'lucros' e 'milhões' com PIB. Mas não há nenhuma relação entre eles. O PIB é o somatório de bens e serviços produzidos por um país. Se as empresas estão a ter lucros ou prejuízos é irrelevante para o PIB. Imagina a produtividade como o número de batatas produzido pelo Robinson Crosué num ano. A produtividade é um rácio entre o a quantidade produzida e as horas trabalhadas. Ela existe independentemente de haver trocas, um mercado, lucros ou salários.

    (Leitura porreira: https://growthecon.com/blog/Manufacturing/ )

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  6. Pedro,

    «os dados dos últimos 200 anos mostram que o impacto da inovação no emprego é virtualmente nulo. Estou a usar o passado para projectar o futuro.»

    Só que nestes 200 anos aumentou imenso a fracção da economia dominada pelo Estado, o emprego no sector público, o tempo de escolaridade e o subsídio do emprego privado por parte do Estado. Portanto, se tu estás a inferir daqui que a inovação tecnológica não tem impacto no emprego olhando apenas para a taxa de desemprego, que desconta a malta com vinte e tal anos na faculdade, o grande número de funcionários públicos, toda a gente em programas temporários de formação e assim, coisas que não havia há 200 anos, escapa-te as medidas que foram sendo tomadas para compensar o impacto da inovação tecnológica no emprego.

    Isto também me parece ser um factor importante na manutenção da produtividade. A produtividade não pode ir aumentando porque isso irá deslocar a proporção de capital para trabalho e, visto que muito do consumo vem do rendimento obtido pelo trabalho, isso daria chatice a longo prazo. Mas aumentar o sector público reduz a produtividade em média visto que o sector público tem produtividade negativa, por qualquer métrica de produtividade baseada no tal “added value” que corresponde ao lucro.

    Por isso, a minha visão destes últimos 200 anos é radicalmente diferente da tua. Tu vês um sector privado a ajustar-se constantemente à inovação tecnológica sem problemas, mantendo esses indicadores económicos praticamente constantes. Eu vejo o Estado à rasca a aumentar imenso o seu peso na economia para tentar mitigar os efeitos da inovação tecnológica, e com um sucesso apenas parcial quando olhas para outros indicadores como o peso do uso especulativo do capital, a desigualdade nos salários, etc.

    Daí a parte do Facebook. «Se o Facebook está a criar imenso valor acrescentado com poucos trabalhadores, isso devia traduzir-se num aumento da produtividade.» Para o Facebook sim, isso é inegável. Mas para a economia como um todo não porque aqueles três mil milhões de euros de lucro anual vão ficar acumulados num punhado de accionistas e o Estado vai ter de ir arranjar outras formas de distribuir dinheiro por toda aquela gente que não vai ser paga dessa fatia porque o Facebook não precisa deles. Por exemplo, subsidiando os trabalhadores da Wal-Mart e da McDonalds com food stamps para conseguirem sobreviver com os ordenados de miséria fazendo com que a produtividade da sua actividade seja economicamente negativa (no global; para a McDonalds e Wal-Mart está bem, porque são os contribuintes que pagam a conta).

    A razão pela qual me parece que a IA vai obrigar a mudar isto rapidamente e radicalmente é que não me parece possível o Estado continuar a compensar o impacto da inovação tecnológica na produtividade. Se os trabalhadores da Wal-Mart e da McDonalds forem todos trocados por programas inteligentes vai ser preciso repensar rapidamente a ideia de que só quem trabalha é que recebe...

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  7. «Só que nestes 200 anos aumentou imenso a fracção da economia dominada pelo Estado, o emprego no sector público, o tempo de escolaridade e o subsídio do emprego privado por parte do Estado. Portanto, se tu estás a inferir daqui que a inovação tecnológica não tem impacto no emprego olhando apenas para a taxa de desemprego, que desconta a malta com vinte e tal anos na faculdade, o grande número de funcionários públicos, toda a gente em programas temporários de formação e assim, coisas que não havia há 200 anos, escapa-te as medidas que foram sendo tomadas para compensar o impacto da inovação tecnológica no emprego.»

    Não é só a taxa de desemprego. É a relação capital/trabalho, indicadores de procura/oferta de mão de obra (Curva de Beveridge, por exemplo), horas trabalhadas, e por aí fora.

    Mas mesmo no caso específico da taxa de desemprego essa suposição é demasiado esticada. Os indicadores que tu citas variam de forma drástica entre países - e ao longo do tempo - para que se possa rejeitar com segurança a ideia de que é o tamanho do sector público, os estágios profissionais e coisas afins que tem permitido estancar uma tendência secular para o aumento do desemprego. Basta comparar Singapura com a Europa, os o EUA ao longo dos séculos.

    (Já para não referir o óbvio: nada disto aconteceu, ou foi decidido, como resposta ao desemprego friccional. Se a tua hipótese está correcta, então não estamos apenas na presença do mais bem sucedido programa de pleno emprego dos últimos dois séculos: encontrámos também a maior conspiração internacional da nossa história, organizada em natação sincronizada por centenas de Governos e ocultada de todos os Parlamentos nacionais).

    «(...) Mas aumentar o sector público reduz a produtividade em média visto que o sector público tem produtividade negativa, por qualquer métrica de produtividade baseada no tal “added value” que corresponde ao lucro (...)»

    Não é verdade, não tem nada a ver uma coisa com outra. Já tentei explicar isto vezes: produtividade e lucros são coisas completamente distintas. E enquanto continuares a raciocinar em termos de 'lucros das empresas', associando isso a métricas de desenvolvimento (PIB, RNB, etc.), vai ser difícil ter um diálogo produtivo, porque inevitavelmente estaremos a usar as mesmas palavras para designar realidades distintas.

    «Mas para a economia como um todo não porque aqueles três mil milhões de euros de lucro anual vão ficar acumulados num punhado de accionistas e o Estado vai ter de ir arranjar outras formas de distribuir dinheiro por toda aquela gente que não vai ser paga dessa fatia porque o Facebook não precisa deles. Por exemplo, subsidiando os trabalhadores da Wal-Mart e da McDonalds com food stamps para conseguirem sobreviver com os ordenados de miséria fazendo com que a produtividade da sua actividade seja economicamente negativa (no global; para a McDonalds e Wal-Mart está bem, porque são os contribuintes que pagam a conta).»

    Voltamos ao mesmo. Não há uma 'produtividade da McDondalds' e uma 'produtividade' da economia. Estás a trocar conceitos. Claro que ninguém tem o monopólio da semântica, e podes usar produtividade para te referir ao que quiseres. Mas se usares produtividade no contexto da contabilidade nacional (que é o contexto relevante para analisar estas questões), então isto nem sequer faz sentido.

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  8. Pedro,

    A produtividade é o valor acrescentado dividido pelas horas de trabalho. Isto pode ser aplicado a uma empresa ou à economia como um todo. E se algo é produzido cujo valor acrescentado é negativo – por ter mais custos do que proveito económico, como um programa de vacinação gratuita, por exemplo – isso baixa a produtividade.

    Se uma inovação tecnológica que aumenta a produtividade de um certo processo (mais valor acrescentado por menos horas de trabalho) deslocar parte desses trabalhadores para outros trabalhos com produtividade muito baixa ou negativa (e.g. vão trabalhar para a junta de freguesia a limpar sarjetas ou algo assim), quando medes a produtividade global dessa economia não notas grande diferença.

    E se o salário dos trabalhadores deslocados cai, o preço dos produtos vai ter de diminuir, o que por sua vez vai reduzir ainda mais a produtividade. Assim, podes passar de 100 horas de trabalho por televisor para 10 horas de trabalho por televisor produzido e não ter aumento de produtividade quando somas tudo.

    O mesmo acontece com o rácio de capital e trabalho, que será agregado pelos vários sectores. E isto parece-me ser o tal mistério que mencionaste da inovação tecnológica não se reflectir num aumento grande na produtividade e na economia.

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    1. Ludwig, a contabilidade nacional tem uns 70 anos (ou 250, se adoptarmos uma definição menos restrita). Eu teria coisas muito pouco simpáticas a dizer das centenas de economistas que se dedicaram a criar o sistema se o resultado final fosse uma coisa tão arbitrária e permeável a distorções como as que tu sugeres no teu comentário.

      Isto pode parecer técnico, mas só para me debruçar sobre as duas questões mais óbvias:

      A) O valor acrescentado do Estado não é negativo. Claro que se retirares a receita dos serviços públicos aos seus custos obtens um número menor que zero, mas isso resulta do facto de o Estado não cobrar preços economicamente significativos, e não do facto de não produzir nada que se veja. Por essa razão, o VAB do Estado é calculado de forma diferente, evitando assim o absurdo de se concluir que a há um sector produtivo a destruir valor.

      B) O preço dos produtos é irrelevante para calcular a taxa de variação da produtividade. A descida ou subida de preço é capturada pelo valor da inflação. Se produzes mais televisões com menos horas de trabalho, isso traduz-se sempre como um aumento da produtividade - a descida de preço que pode decorrer desse aumento surge nas estatísticas como uma alteração do valor do deflator do PIB nominal, e não como uma alteração do PIB real (o tal que é usado para a produtividade).

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  9. Pedro,

    Tu podes estimar a produtividade de actividades do Estado descontando o facto do Estado não cobrar mas, mesmo assim, há actividades do Estado que resultam em produtividade negativa.

    Por exemplo:
    http://www.forbes.com/sites/clareoconnor/2014/04/15/report-walmart-workers-cost-taxpayers-6-2-billion-in-public-assistance/#722222cc7cd8

    O governo federal do EUA gasta 6.2 mil milhões de dólares por ano a subsidiar os salários dos empregados da Walmart. Para a Walmart, os seus empregados são produtivos. Vamos supor que paga $1000 a um trabalhador e tem daí $1200 de negócio. Mas depois o Estado paga mais $300 ao trabalhador, que na realidade tem uma produtividade negativa quando comparamos o total que está a receber com o valor do seu trabalho.

    Mas isto não é só este caso pontual. Quando somas os custos de educação, assistência médica e assim que estão a subsidiar o trabalho, muitos trabalhadores irão ter uma produtividade negativa. Essa foi uma das coisas que tem vindo a acontecer no último século e que não acontecia em 1900: o Estado tem assumido uma fatia cada vez maior dos custos do trabalho.

    Não só por estes subsídios mas pelo emprego directo. Não sei bem como contabilizam o valor acrescentado do sector público, mas suspeito que uma estimativa realista do valor comercial de varrer folhas do será inferior ao ordenado mínimo e o Estado tem de pagar pelo menos o ordenado mínimo aos varredores de rua.

    Quanto ao preço dos produtos não é nada irrelevante. A inflação é uma medida agregada enquanto que o preço dos televisores é o preço dos televisores e a produtividade do trabalhador que faz televisores depende do preço dos televisores. Se o preço dos televisores cai, a menos que haja uma deflacção igual a essa queda (o que não será normal), a produtividade do fabrico de televisores será menor. Um trabalhador produzir 50 televisores de 100€ tem a mesma produtividade de um que produza 100 televisores de 50€, sendo o resto igual (menos os custos do material, etc, mas não vale a pena complicar essas contas). A inovação tecnológica permite produzir mais coisas com menos trabalho mas, ao baixar o preço dessas coisas, reduz o impacto dessa inovação na produtividade quando medida em valor acrescentado. E às tantas pode até tornar um negócio economicamente inviável, como se vê com o negócio da cópia de músicas e filmes.

    Mas isto não é o principal. São detalhes engraçados, mas o mais importante é que a automação tem estado mesmo a destruir empregos. Imensa gente trabalhava na agricultura e hoje em dia há muito menos empregos na agricultura. Imensa gente trabalhava em fábricas e agora há menos empregos em fábricas. A IA é o tractor dos serviços e já não há outro tipo de coisa que se possa fazer. A automatização dos serviços foi muito pequena até recentemente, e só agora, com empresas como a Google e Facebook é que começamos a ver um impacto significativo da automatização neste sector. Quando acontecer aos serviços o que aconteceu à agricultura não haverá outro sítio para onde deslocar esses desempregados, nem mesmo repetindo o enorme investimento público em educação que as deslocações anteriores exigiram.

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  10. Ludwig, continuas a fazer uma confusão de conceitos, e nalguns casos o tiro sai completamente fora de órbita. Por exemplo, no exemplo do ordenado mínimo e da produtividade do sector público: na verdade, é exactamente o contrário - o consenso entre estaticistas é que a produtividade do sector público tende a ser muito subestimada, e não sobrestimada. Mas se não me consegui explicar no resto dos comentários, nem vale a pena tentar neste :) novamente, concordemos em discordar.

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  11. Pedro,

    Eu não acho que o problema seja na minha confusão dos conceitos. É que esses conceitos, como o da produtividade, não têm uma definição operacional única. É precisamente por isso que, como os tais estaticistas que referes, eu também acho que a produtividade do Estado é bastante mais alta do que se estima com essas métricas, mas é difícil definir operacionalmente o que se entende com o termo.

    Por exemplo, é óbvio que o valor comercial do serviço de varrer as ruas é mais baixo do que aquilo que a câmara paga aos varredores. Se não fosse, rapidamente uma empresa privada recrutaria esses trabalhadores oferecendo salários melhores e venderia esse serviço com lucro. Mas isto pode bem ser porque há uma data de externalidades positivas que essa empresa não conseguiria cobrar. Conseguiria cobrar o serviço aos moradores mas muita gente que passa ali naquelas ruas iria beneficiar sem pagar. O problema é como é que conseguimos contabilizar isso tudo para calcular a produtividade do varredor de rua.

    E se fizermos isso, também podemos descobrir que, no sector privado, há muitas actividades com produtividade negativa porque não pagam externalidades negativas como a poluição ou o uso de recursos não renováveis.

    O que mencionaste até agora não me pareceu demonstrar um erro específico da minha parte mas é apenas reflexo da complexidade subjacente a estes conceitos.

    Mas isto é irrelevante. Os pontos mais importantes são estes:

    - Tu pareces defender que o aumento de produtividade é sempre bom para a economia. Eu acho que não, e não só pelos problemas de como medir essa produtividade, mas também pelas consequências que isso traz no emprego e no comércio. Um exemplo extremo disto é a venda de cópias de músicas. A produtividade da cópia de músicas aumentou tanto que as lojas desapareceram e os sistemas de distribuição online que as substituiram têm muito menos empregados.

    - Tu alegas também que o número de empregos não é finito e, por isso, quando a automatização reduz empregos num lado surgem novos empregos noutro. Eu acho que isso é falso, e temos evidências disso. Os empregos na agricultura e na indústria desapareceram e não voltaram. O que acontece é que parte das pessoas se desloca para tarefas que ainda não foram automatizadas ou trabalha por um preço suficientemente baixo para competir com a automatização. Isto é o que acontece com os trabalhadores da McDonalds e Walmart nos EUA, que trabalham por tão pouco que o seu salário tem de ser subsidiado pelo Estado.

    Fui à Pordata e comparei o PIB de Portugal dividido pela população activa com o rendimento médio dos trabalhadores. Em 1985, o rendimento médio de cada trabalhador era 3.52% do PIB por trabalhador. Em 2014 era de 3.17%. Nestes trinta anos, os trabalhadores perderam 10% da fatia do PIB (em média; penso que se for a mediana ainda será mais tramado). Por outro lado, o risco de pobreza antes e depois das transferências sociais era de 37% e 23% respectivamente em 1994 mas 43% e 19% em 2015. Isto parece-me sugerir que, ao contrário das tuas previsões, os trabalhadores têm estado a ficar numa situação pior e o Estado tem suportado cada vez mais os custos da economia mais desequilibrada que resulta do aumento da produtividade.

    E isto sem grande automatização dos serviços, que só agora com IA é que se consegue começar a automatizar. É por causa destas coisas que eu prevejo que vai ser preciso mudanças profundas na economia porque este processo não aguenta a aceleração da automatização que aí vem.

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