Treta da semana (atrasada): hipóteses.
A possibilidade de Portugal acolher pouco mais de três mil refugiados tem levado algumas pessoas a protestar que temos de ajudar primeiro “os nossos” antes de ajudarmos “os outros”. É difícil estimar quanta gente terá mesmo esta opinião. Podem ser poucos a protestar muito ou muitos a pensá-lo mas guardando-o para si. Seja como for, é estranho que esta opinião tenha tanta projecção quando há apenas quatro décadas meio milhão de portugueses tiveram de fugir das ex-colónias abandonando tudo o que tinham. Não devia ser difícil, mesmo para a geração de agora, ter contacto com quem saiba pessoalmente o que é ser refugiado.
Uma hipótese que muitos apresentam para explicar esta reacção é a da xenofobia, ou mesmo racismo, se bem que os sírios não aparentem ser muito diferentes de nós. Se o Bashar al-Assad fosse meu vizinho não o julgaria estrangeiro só de olhar para ele. Mais ar de estrangeiro tenho eu. Infelizmente, parece-me uma hipótese errada. Porque se o problema fosse mesmo os sírios serem “os outros” e termos de ajudar primeiro “os nossos”, já se teria tudo mobilizado para ajudar “os nossos” há muito tempo e ainda estamos longe disso. Na verdade, e contrariamente ao que ditaria a razão, a desculpa de que estamos em crise até tem servido para lixar cada vez mais os pobres.
Uma explicação alternativa seria a do egoísmo encapotado. Dizem que querem ajudar “os nossos” primeiro mas, na verdade, querem é o melhor para si e os outros que se lixem. Mas mesmo esta explicação não parece encaixar nas evidências. Um egoísmo racional levaria a uma redistribuição muito mais eficaz do que aquela que temos. Gastamos imenso dinheiro a manter na cadeia gente que só se dedica ao crime porque não têm dinheiro para viver uma vida honesta. Sairia mais barato dar-lhes esse dinheiro. A má redistribuição também obriga muita gente a desenrascar-se de formas que prejudicam os restantes. A semana passada, por volta das seis e meia da manhã, vi um casal de meia idade nos contentores da reciclagem. Ele estava a empurrar o dos papeis para abrir a parte de baixo e ela estava a escolher e tirar os cartões maiores. Ao pé deles estava uma carrinha velha cheia de cartão. Tirar cartão da reciclagem e depois vendê-lo para reciclagem é uma forma de ganhar uns trocos. Encontraram uma oportunidade de negócio, criaram os seus postos de trabalho e essas coisas. É o empreendedorismo. Mas ficávamos todos melhor servidos se simplesmente lhes déssemos o dinheiro de que precisam para viver em vez de os forçar a fazer coisas destas. O egoísmo, pelo menos o egoísmo racional, não explica a má distribuição. Se cada um quisesse o melhor para si muitas pessoas seriam a favor de pagar para corrigir estes problemas.
Resta uma hipótese, pior do que estas duas mas que, infelizmente, explica melhor o que observamos. É a nossa propensão para ver como justa e merecida qualquer vantagem que tenhamos em relação ao outros, mesmo que tal vantagem não seja nem merecida nem justa (1). Isto é pior do que o egoísmo porque pode até conduzir a acções que prejudicam todos, incluindo o próprio agente, em defesa de uma noção errada e irreflectida de justiça. Por exemplo, uma objecção comum a um rendimento básico universal é a aversão a dar dinheiro a quem não trabalha. Mesmo que esta seja a forma mais barata de combater a criminalidade e mesmo que, em abstracto, todos considerem prioritário eliminar a pobreza, parece injusto dar o dinheiro de quem tem mais a quem não tem nada porque, intuitivamente, se têm mais é porque merecem ter mais. A noção absurda da caridade também vem desta visão distorcida do que é justo. Absurda porque classifica como virtuoso aquele que, tendo muito, dá uma parte irrisória do que tem para ajudar minimamente aquele que não tem nada. Dar uma esmola, passar umas férias a pintar as casas dos pobrezinhos ou fazer voluntariado no Banco Alimentar deixa muita gente orgulhosa da sua generosidade apenas pela incapacidade de perceberem quão injusto foi, logo à partida, terem nascido numa situação tão melhor do que aquela em que está quem ajudam. Essa incapacidade é o maior obstáculo.
É por isso que é tão difícil encontrar uma solução para estes problemas. A maioria das pessoas, mesmo as que são xenófobas ou racistas, reconhece que há algo de errado na xenofobia e no racismo. Se fosse pelo egoísmo também a coisa se resolvia, não só porque há razões pragmáticas para ajudar quem precisa mas porque o egoísmo também é universalmente reconhecido como reprovável. Infelizmente, o problema fundamental está na própria noção de justiça. Quem está numa situação mais favorável interpreta essa vantagem como algo justo e merecido. Irreflectidamente, parece-lhe justo que tenha nascido num país melhor, numa cidade mais próspera ou numa família mais rica e, por isso, não sente qualquer obrigação de repartir melhor essa sua sorte. É isto que é preciso corrigir. O racismo e a xenofobia são apenas efeitos secundários e não a causa principal. Os apelos à generosidade e à caridade são até contra-producentes por, implicitamente, reforçarem a ideia de que a vantagem é merecida e que, por isso, é virtude abdicar sequer de uma minúscula parte dela. O que precisamos é de compreender que o mundo é injusto na sua indiferença e que somos colectivamente responsáveis por mitigar essa injustiça.
1- Esta palestra de Paul Piff, na TED, mostra bem este efeito: Does money make you mean?
Sem comentários:
Enviar um comentário
Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.