quarta-feira, julho 15, 2015

19 - 1 = 0

A última ronda de “negociações” com a Grécia decorreu normalmente. O Estado grego continuou a ter de lidar, quase exclusivamente, com um tal “eurogrupo” que não tem estatuto oficial, nem regras, nem responsabilidade perante ninguém. E o método de “negociação” seguiu a tradição que se tem enraizado. Ignorar os eleitores gregos, atirar o seu governo ao chão e dar-lhes biqueiradas até dizerem que sim. Para depois retorquir que logo se vê. Mas a tragédia, infelizmente, não será só grega porque os erros políticos que a causaram continuam por corrigir. E não é preciso um oráculo para perceber quem vem a seguir na lista.

Em geral, nenhum país consegue pagar a sua dívida. Nem a Alemanha. Só a vão substituindo por dívida nova conforme os prazos acabam. Em muitos casos isto é garantido por um banco central que pode emprestar sempre, mesmo que os privados não queiram comprar dívida ao país. É assim que o Japão consegue ter uma dívida pública de quase 230% do PIB sem precisar de resgates. O banco central japonês irá rolando essa dívida até ela mirrar com a inflação ou o universo congelar. Mas, por cá, decidiram que o BCE não pode comprar dívida aos Estados e, por isso, estes só podem rolar a dívida nas condições que a banca privada impuser. Por isso, se há chatice “nos mercados”, os países mais fracos ficam em perigo de default. Basta que a banca privada não queira conceder crédito, mesmo que só por uns tempos. Uma justificação para este sistema foi a de que a banca privada iria gerir melhor o risco de crédito dos Estados, o que é obviamente falso. Sempre que a Grécia leiloava títulos de dívida, bancos privados da Alemanha e da França, principalmente, iam atrás do negócio e ninguém quis regular a sua exposição excessiva até o carrossel se partir. Agora há mais restrições à alavancagem mas o problema fundamental permanece.

Outra justificação para ser a banca privada a gerir o crédito dos Estados era a de que os privados teriam medo de falir se arriscassem demais. Mas, ao nacionalizar o prejuízo dos bancos, eliminou-se qualquer incentivo hipotético que a banca teria para ser responsável. Também os efeitos da austeridade punitiva que agora impõem, como aumentar a mortalidade infantil, os suicídios ou a taxa de infecção por HIV (1), não contribuem nada para desincentivar a ganância dos banqueiros ou a corrupção dos políticos. Os cadáveres amontoam-se e o moral hazard fica na mesma. Quanto ao argumento de que os contribuintes alemães e franceses não têm obrigação de pagar estas despesas, é discutível e é irrelevante porque já o fizeram quando os políticos alemães e franceses resgataram os bancos privados. Esses é que ficaram com o dinheiro dos contribuintes. Os gregos só ficaram com mais dívidas.

Como escreve o Pedro Romano, se bem que no sentido contrário ao meu, há aqui um problema de «framing enviesado». Muita gente, como o Pedro, enquadra esta situação num erro grego de endividamento e má negociação. «O “braço de ferro” entre credores e devedores pode ser visto como uma disputa por recursos: os gregos precisam do dinheiro alemão, e a Alemanha não quer emprestar dinheiro à Grécia.» (2) Esta é uma forma completamente errada de descrever a situação. Primeiro, porque não se trata de “emprestar dinheiro à Grécia” no sentido que normalmente damos à expressão. Vamos imaginar que o Pedro deve 200€ a alguém, não tem como pagar e eu compro essa dívida. Depois passo-lhe um papel a dizer “isto vale 200€”, o Pedro entrega-me o papel para eu considerar a dívida inicial saldada e agora fica a dever-me 250€, que é quanto lhe cobro pelo papel. Contabilisticamente, eu emprestei 250€ ao Pedro. É o alegado valor do papel. Mas foi mesmo só contabilisticamente.

Em segundo lugar, de quem é o dinheiro também é questionável. Os bancos alemães e franceses usaram dinheiro dos depositantes para comprar dívida grega em leilão. Depois os governos alemães e franceses usaram dinheiro dos impostos para dar aos bancos alemães e franceses que se afundaram com o negócio. Entretanto, o dinheiro que tinha ido para a Grécia voltou, principalmente para a Alemanha, pelo enorme desequilíbrio nas exportações, razão pela qual a Alemanha também não tinha interesse em regular a concessão de crédito aos PIIGS enquanto tudo corria bem. A economia europeia está tão interligada que dizer que a Grécia precisa do dinheiro alemão é como dizer que Bragança precisa do dinheiro lisboeta. É mais uma verdade contabilística irrelevante porque, sem essas transferências, o sistema desintegra-se e isso é pior para toda a gente.

Mas o problema principal daquele framing é que esta embrulhada não é só por causa dos gregos. É por causa de todos os envolvidos, por igual. Por causa dos banqueiros, dos políticos que não regularam os banqueiros, dos políticos que deram o dinheiro aos banqueiros, dos que criaram um sistema monetário totalmente dependente da banca privada, dos que desrespeitaram os limites do superavit na balança de pagamentos e assim por diante. E é entre todos que isto tem de ser resolvido. Merkel tem razão em dizer que os países europeus têm de ceder soberania, porque a única forma de resolver este problema é com uma união política a sério em vez de uma moeda comum que só sirva para uns exportarem à custa dos outros. Mas os cidadãos têm de permanecer soberanos. É o fundamento da democracia. É por isso que estas coisas têm de ser discutidas em órgãos como o Parlamento Europeu, que representa adequadamente os europeus e é responsável perante estes, e nunca em “eurogrupos” da treta que fazem o que querem à porta fechada. Nem sequer é só pela saúde da economia, porque a União Europeia não é um mero negócio. A União Europeia deve ser um projecto político, social e ético e, para isso, não pode ficar a cargo de um punhado de fanáticos da contagem de feijões.

1 - Kentikelenis, Alexander, et al. "Greece's health crisis: from austerity to denialism." The Lancet 383.9918 (2014): 748-753. (em pdf)
2- Pedro Romano, Era tudo tão, tão, tão previsível

16 comentários:

  1. "É assim que o Japão consegue ter uma dívida pública de quase 230% do PIB sem precisar de resgates." Nada disso, o Japao consegue ter 230% de divida do PIB simplesmente porque a divida e detida internamente. Por exemplo cerca de 70% das obrigacoes publicas sao detidas pelo Banco do Japao...

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  2. «Nada disso, o Japao consegue ter 230% de divida do PIB simplesmente porque a divida e detida internamente.»

    E pode ter a dívida detida internamente porque tem um banco que imprime dinheiro.

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    1. Ludwig,

      Eu não sou economista, mas já tenho visto comentários dos economistas a dizerem que no mundo existe 4 tipos de países: os ricos, os pobres, a Argentina e o Japão, Ao que parece, ninguém sabe muito bem o que dizer ou o que fazer com os últimos 2....

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  3. Pois. Com alguns pormenores bizarros: O dinheiro que a Alemanha irá emprestar à Grécia é para a Grécia pagar aos bancos alemães. Pelo meio ainda ganha juros, com o BCE é criar os euros que lá vão parar.

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    1. É por isso que os bancos são as únicas instituições que conseguem criar dinheiro do nada. É também por isso, que para as empresas "normais" (i.e. não bancos), ter rácios de fundos próprios abaixo dos 30% é um risco (pelo menos é o que os bancos dizem), mas os próprios bancos só precisam de ter 8% de acordo com o BCE... É o que se chama ter a faca, o queijo e a vontade de comer, tudo de uma só vez!

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    2. Quando a economia está em crescimento faz sentido produzir mais dinheiro. Esse dinheiro deverá ser criado na proporção do crecimento economico, de modo que o dinheiro tenha o mesmo valor e se mantenha a equivalencia entre a moeda e a riqueza que existe. Por outro lado, como a nossa sociedade permite que uns poucos acumulem a riqueza quase toda, se não for produzida nova moeda, a malta da parte de baixo dos 1% não leva nada. Por isso, sem grandes alterações em toda a estrutura, eu nem acho que seja tão mau os bancos produzirem dinheiro. O problema está na falta de transparencia de tudo isto. Por exemplo, os bancos combram o "spread" que dizem que é por causa do custo do dinheiro a pagar ao banco central... Não faz sentido. Outra é esta, é quando a coisa corre mal começarem a dizer que são uns malandros os que não querem pagar ao banco o dinheiro que o banco emprestou, que era do banco e não deles. Mas acontece que esse dinheiro foi criado "on the fly", não existia antes do momento de ser emprestado. Acho que com uns "tweeks" aqui e ali, um pouco mais de transparencia, e a coisa podia funcionar sem tretas.

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  4. Um vídeo que me parece bastante esclarecedor: https://www.youtube.com/watch?v=C8xAXJx9WJ8

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    1. O caso japonês está aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Njp8bKpi-vg
      E o caso dos EUA aqui: https://www.youtube.com/watch?v=2ziodZHZGpU

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    1. Pus aqui um comentário mas não o vejo :/

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    2. É algo que acontece no qtreta ocasionalmente. Eu acho que é obra do perspectiva.

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    3. Pedro,

      Não vejo nada encravado no spam nem recebi nada por email...

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  6. A sonda New Horizons mostra que a superfície de Plutão corrobora uma idade recente e desmente os modelos dominantes de formação e datação do sistema solar.

    Na verdade, os cientistas que acreditam na "evolução cósmica", e na formação do sistema solar há 4,4 mil milhões de anos, apresentam-se confusos, por verem as suas previsões desmentidas.

    Eles pergunram:

    “Who would have expected to see such young surfaces? They are absolutely spectacular and fascinating.”

    Pergunta: nunca ninguém viu o Universo a formar-se ha 4,5 mil milhões de anos atrás. Mas todos podemos ver que a superfície de Plutão é jovem. Será que os factos realmente observáveis serão alguma vez suficientes para convencer os evolucionistas?

    Escusado será dizer que para os criacionistas bíblicos, as observações da sonda New Horizons nada têm de surpreendentes...


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    1. Algumas questões:
      1) o que é que Plutão e a sonda New Horizons tem a ver com o tema deste post? Que insistência em misturar alhos e bugalhos.

      2) porque é que o facto de Plutão ter uma superfície "jovem", indica um planeta ou um sistema solar jovem? A idade da superfície de Plutão está estimada em "não mais de 100 milhões de anos", o que é bem mais do que os famosos 6000 anos que o pessoal Terra Jovem diz, incluindo o site que está no link. De notar que a Terra tem uma idade estimada em cerca de 4500 milhões de anos, e mesmo assim, tem uma superfície jovem, tudo graças a processos geológicos naturais, e o mesmo se passa com Plutão e as interacções gravíticas com a sua lua principal Caronte e inclusive ventos durante os curtos períodos com atmosfera.
      (ver http://www.space.com/43-pluto-the-ninth-planet-that-was-a-dwarf.html)

      3) os cientistas não "acreditam" no sentido que lhe está a atribuir que tem conotações religiosas. É mais correto dizer que os cientistas tem provas suficientes para aceitar esta ou aquela ideia, e daí formularem um modelo (teoria) que inclua todos os factos conhecidos. Chama-se a isto método científico e acredito que já tenha ouvido falar dele. Por outro lado, se entretanto forem apresentados novos factos ou novas observações, a comunidade não tem problemas em colocar na prateleira da História as ideias antigas - foi o que aconteceu por exemplo com a física newtoniana, a teoria do éter luminífero, com as teorias catastróficas (da geologia), etc. Sempre gostaria que me indicassem um caso desses na religião, alguém que deixe cair um conceito teológico sem ser para formar uma nova religião.

      4) se nunca ninguém viu o universo a ser criado, também é verdade que nunca ninguém viu Deus a criar o que quer que seja. Nem sequer sabemos quem escreveu a Bíblia... Pelo menos o pessoal do Islão sabe quem escreveu a primeira versão do Alcorão, e não foi Maomé! A diferença é que uns acreditam sem ver, outros, têm factos que os levam a aceitar. Pode ser uma pequena diferença, mas é muito importante.

      5) para convencer os "evolucionistas" (creio que o termo é criacionista e não existe verdadeiramente), seria necessário algo de muito simples: apresentar uma alternativa viável, sujeitar à apreciação dos pares, e ver se convence, ou se, como tem acontecido até hoje, só apresentam ideias sem qualquer base.

      Mais uma vez, a oeste nada de novo!

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  7. Mais um caso interessante em que as observações corroboram a Bíblia:

    Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás , e pó comerás todos os dias da tua vida. (Gênesis 3:14)

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    1. Que eu saiba não existe uma única serpente que se alimente de pó. Se conhecer, agradeço que partilhe, eu estou sempre pronto para aprender algo de novo.

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