Treta da semana (passada): Cultura na economia.
Segundo um relatório dos ministérios da cultura e economia da França, a cultura contribui cerca de 3% para o PIB francês e «o valor acrescentado da cultura [57,8 mil milhões de euros] aproxima-se do da agricultura e indústrias alimentares (60,4 mil milhões de euros) [e é] sete vezes superior ao do sector da indústria automóvel (8,6 mil milhões).»(1) À primeira vista é um resultado surpreendente porque sugere que os franceses gastam tanto em literatura e arte quanto gastam em comida. Mas, segundo o relatório, o que se passa é que usaram «uma definição alargada das actividades culturais» que inclui publicidade, parte do negócio dos supermercados por venderem livros e revistas e actividades indirectas como o consumo de electricidade pela indústria audiovisual e as reparações de edifícios históricos (2). Assim, é menos surpreendente que o total disto tudo seja quase tanto quanto a indústria alimentar e maior do que a produção de automóveis.
Mas o que me incomoda não é a inclusão destas coisas na cultura. Pelo contrário. O que me preocupa é o que deixam de fora, e porquê. Por exemplo, o ensino público francês tem um orçamento anual de 64,6 mil milhões de euros (3). É estranho que deixem a educação fora da cultura. Ou a investigação científica, com mais 26 mil milhões (4). Há, infelizmente, uma visão pedante da cultura segundo a qual um filme a preto e branco ou um livro de poesia são cultura mas a matemática ou a química não são. Ainda em Novembro passado, o nosso secretário de Estado da cultura afirmou que «cerca de 10% dos estudantes universitários em Portugal estão em cursos associados à cultura»(5). Não sei o que é que julga que aprendem os outros 90%. Mas não deve ser por pedantismo que o relatório francês exclui tanta coisa que devia incluir no “valor da cultura”, visto que incluem o dinheiro gasto em televisão, publicidade e revistas vendidas nos supermercados.
O critério parece ser o de considerar que só é cultura aquela cujo acesso é restrito e pago, e que o seu valor económico só se mede pelo negócio que se faz à custa dessas restrições e cobranças. É como dizer que o Mosteiro da Batalha só é cultura nas partes com acesso pago e que o seu valor é a receita da bilheteira. Um problema de assumir que cultura é só o que tem acesso pago é que deixa de ser razoável considerar que o dinheiro ganho com isto está a contribuir para a economia. Muito desse valor vem do pagamento de licenças de cópia e distribuição e não paga qualquer bem ou serviço útil. Se déssemos aos restaurantes o poder legal de licenciar a confecção de comida em casa também poderíamos contabilizar os milhões de euros pagos por essa licença e medir a quantos porcento do PIB corresponderia. Mas não seria um contributo para o PIB. Pelo contrário. O mais certo seria reduzir o PIB por canalizar fundos para rendas improdutivas e incentivar a criação de restaurantes que não faziam nada para servir comida de jeito mas apenas lucravam com o negócio do licenciamento. Análogo ao que acontece na tal “indústria cultural”.
Mas o mais preocupante é o efeito insidioso desta concepção de cultura na forma como a sociedade vê as restrições legais ao acesso e à distribuição de informação. Vistas bem as coisas, o peso da cultura no PIB é 100%. As nossas capacidades inatas, como bocejar ou abrir os braços se vamos cair, têm um valor comercial irrisório. Tudo o que contribui para o PIB teve de ser aprendido, ensinado, inventado e copiado. Ou seja, cultura. As técnicas agrícolas, o desenho e fabrico de automóveis e a tecnologia das telecomunicações são tão cultura quanto museus e telenovelas. Infelizmente, alguns têm interesse em ignorar isto porque, nos 97% do PIB que está fora daquela definição que lhes dá jeito, é evidente que a cultura vale muito mais, quer como cultura quer como motor da economia, precisamente quando é partilhada sem restrições.
A cultura tem imensa importância. Sem cultura não há PIB, nem sociedade, nem espécie humana enquanto tal e a preservação e difusão da cultura sempre foi fundamental para o nosso desenvolvimento. Quase se pode medir o progresso de qualquer civilização apenas contando escolas, museus e bibliotecas. Neste momento, com a Internet, bastaria pouco mais que uma alteração da lei para termos uma biblioteca mundial que tornasse toda a nossa cultura acessível a toda a gente. Essa devia ser a missão prioritária de todos os ministérios da cultura. Infelizmente, a malta que controla aqueles empolados 3% do PIB também controla a comunicação social e muitos políticos e sabe propagar esta ideia de que só é cultura o que se vende à unidade.
1- L'Express, La culture rapporte sept fois plus au PIB de la France que l'automobile
2- Ministére de la Culture et de la Cummunication, L’apport de la culture à l’économie en France (rapport)
3 Wikipedia, Education in France
4- Nature, Science safeguarded in French budget
5- governo de portugal, Jorge Barreto Xavier sublinha a importância de ligar a cultura «às políticas de desenvolvimento económico e aos fundos comunitários»
É a visão elitista da cultura como erudição.
ResponderEliminarLimita a cultura à leitura dos clássicos, arte e música erudita.
Tudo o resto são ofícios.
Muito francês e traduzido em calão para a mentalidade portuguesa.
PUÉS PRIMEIRO O QUE É KULTUR
ResponderEliminarSEGUNDO SENDO A FRANÇA O PRINCIPAL DESTINO CULTURAL DA EUROPA
É NATURAL QUE OS MUSEUS TORRES EIFÉIS E TRIANON'S E QUEJANDOS RENDAM 55 MIL MILHÕES
DIFICILMENTE A VENDA DE LIVROS OU OS CINEMAS TODOS JUNTOS REPRESENTARÃO UMA FRACÇÃO DOS RESTANTES BENS CULTURAIS À VENDA
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