Nos comentários ao post sobre a dignidade, o João Vasco escreveu que «A moral surge da necessidade de conciliar vontades»(1). Se bem que concorde que sem conflito não é preciso moral nem ética, o conflito, por si, não produz moral. A necessidade de conciliar vontades sem qualquer moral é muito comum. A águia quer comer o coelho, a este isso não dá jeito mas algum irá ceder, resolvendo o conflito. Mesmo quando há moral, no sentido lato de normas sociais, esta pode não servir para conciliar vontades de forma justa. A moral da alcateia dita que o lobo dominante coma antes dos outros. A moral no Irão dita que a apostasia deve ser punida. Muitas regras morais parecem ter como propósito impor comportamentos em vez de conciliar seja o que for. Recorro novamente à citação de Pio XII que colei no outro post: «A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la.» As religiões são exímias a inventar regras morais que lhes convenham.
Concordo, no entanto, que conciliar vontades é um problema ético do qual a moral devia depender*. Mas, se bem que o problema só se ponha se houver conflitos, como o João Vasco escreveu, não é do conflito em si que surge a ética. O fundamental é uma escolha pessoal. A ética vem da opção de submeter as regras morais ao crivo de valores imparciais, independentes das nossas tradições, do hábito ou do que nos dá jeito. Basicamente, da decisão de ter consideração pelos outros e conciliar as vontades de forma justa.
O Nuno obstou porque «Se a dignidade humana dependesse de algo tão subjectivo quanto o apetite à consideração que cada um tem por cada qual, era num estalar de dedos que alguém ta podia retirar se para aí estivesse virado.» Precisamente. «E que fundamento materialista arranjas tu para esse respeito automático pela subjectividade alheia? É e deve ser automático porquê?» Não é automático nem tem “fundamento materialista”. É uma escolha e, por ser opcional, pode sumir num estalar de dedos. Pior ainda, apesar de facilmente aprendermos regras morais, a ética tem sido uma coisa rara na nossa história. Basta ver, por exemplo, o tempo que demorou até a maioria perceber que a escravatura é uma coisa má e o que ainda hoje custa, em tantos sítios, explicar que devemos ser todos iguais perante a lei e governados por quem nos representa. Temos muito mais facilidade em aprender a fazer coisas porque “é assim que se faz” do que aferir, de forma crítica, se será essa a opção mais justa.
A ética é frágil precisamente porque é opcional. Entre as tribos do Afeganistão e até aqui por Lisboa, em certos sítios, pode-se ver facilmente como a dignidade e os direitos humanos valem pouco quando a opção de lhes dar valor não é consensual. E um dos maiores perigos para a ética é ignorar essa fragilidade com a ilusão de um fundamento sólido e transcendente que mantenha o universo nos eixos. O Faroleiro comentou que «Para determinar o Mal é necessário um referencial exterior ao sistema senão esse "Mal" é sempre relativo, dependente das relações de força vigentes na sociedade». A ética, realmente, procura uma perspectiva fora de qualquer sujeito. O objectivo não é ver as coisas como eu quero, como tu queres ou como Deus quer mas sim encontrar normas independentes de qualquer sujeito em particular. Mas isso não é um referencial exterior ao sistema. Isso é o sistema, e é um erro confundir a opção pessoal de procurar esses critérios com a imposição de critérios alheios: «Se o amor não corresponder a um mandamento divino, a sua validade lógica é a de uma simples idiossincrasia pessoal ao mesmo nível de uma outra idiossincrasia pessoal qualquer.» Se o amor corresponder a um mandamento divino então não terá nada que ver com a ética. A ética não tem que ver com obediência mas sim com autonomia e responsabilidade.
O que queremos da ética não é uma simples idiossincrasia pessoal mas só podemos ter ética se compreendermos que é uma opção pessoal. Se nos comportamos de certa forma por mandamento, por medo do castigo ou por hábito então temos apenas uma moral sem fundamento ético. As regras estão lá, mas não somos responsáveis por elas nem por garantir que são justas ou boas. Foi essa atitude que permitiu milhares de anos de escravatura, opressão, injustiças e desrespeito até que, nos últimos séculos, finalmente se começou a perceber que a ética não vem de fora – de deuses, bispos ou reis – mas que tem de ser criada por cada um de nós. Infelizmente, delegar os juízos de valor nos “superiores” continua a dar jeito aos que se dizem superiores. O José Policarpo, por exemplo, desaconselha protestos (2) e recomenda respeito pelos órgãos de soberania (3). Em grande parte, a tolerância que a maioria tem pela injustiça que vem de cima – de legisladores, ministros, juízes, bispos e afins – deve-se à ilusão de que a moral também vem de cima, dos soberanos, deuses ou seus representantes, em virtude de estarem lá em cima, e o que importa cá em baixo é obedecer aos mandamentos.
É importante desfazer esta ilusão. A compreensão de que ninguém é “dono” da moral só por ser rei, papa ou deus foi uma grande conquista dos últimos séculos. Deu-nos a democracia, a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e assim por diante. Mas implica que todos nos temos de responsabilizar pela avaliação crítica das normas sociais. É trágico quando a maioria se esquece desta responsabilidade e aceita cegamente ideologias políticas ou mandamentos divinos. É esse o perigo do «referencial exterior». Por outro lado, se tivermos consciência de que cada um só é tão ético quanto queira ser estaremos muito mais atentos às tretas que nos querem impingir e teremos muito mais cuidado com o poder que damos aos que nos governam e aos que policiam o nosso comportamento.
* Há quem use “moral” e “ética” como sinónimos, mas eu prefiro distingui-las e chamo moral às normas de conduta e ética à avaliação crítica dessas normas com o intuito de as fundamentar em princípios justos e imparciais.
1- Dignidade, graças a Deus.
2- Económico, ”Não se resolve nada contestando”
3- Expresso, Cardeal aconselha prudência no exercício dos direitos constitucionais