Sem indicar a fonte, o Mats traduziu parte de um artigo do Institute for Creation Research, segundo o qual a teoria da evolução terá atrasado a descoberta de que uma espécie de golfinho consegue sentir campos eléctricos fracos (1). A tese é de que os biólogos demoraram tempo a descobrir isto porque assumiram que os poros grandes que os golfinhos têm no focinho, que nesta espécie são sensíveis a campos eléctricos, eram estruturas vestigiais, heranças dos poros onde os mamíferos terrestres têm bigodes. No entanto, nem o Mats nem o artigo original referem qualquer publicação onde os criacionistas previssem que os golfinhos desta espécie tinham esta capacidade, e não é claro que haja vantagem em assumir que tudo foi criado por milagre. Seja como for, o Mats copia vários erros que merecem algum esclarecimento.
Primeiro, a noção de estrutura vestigial não é, ao contrário do que os criacionistas insistem, a de uma estrutura que não tem qualquer função. É, e sempre foi, a de uma estrutura que perdeu uma função importante original. Citando Darwin, «Um órgão servindo duas funções, pode tornar-se rudimentar ou totalmente inadequado para uma, mesmo a mais importante, e ainda ser perfeitamente eficaz a desempenhar a outra»(2). É este o caso. Os golfinhos nascem com bigodes nestes poros, só que os perdem a seguir. Terem-se adaptado à detecção de campos eléctricos não invalida que estes poros sejam vestigiais na sua função original de ter bigodes.
O Mats copia também a alegação de que a evolução convergente é uma desculpa para o que não encaixa na teoria de descendência com modificação e escreve que «não há explicação científica para a origem de um único mecanismo electro-receptor». No entanto, a convergência é uma consequência esperada da evolução. Se há vantagem reprodutiva em voar, em certas condições, é de esperar que várias linhagens desenvolvam essa capacidade, ainda que de formas tão diferentes como o morcego, a mosca, o pato ou o peixe voador. A restrição que a teoria da evolução impõe é que esta característica surja pela adaptação de características ancestrais em vez da criação milagrosa de estruturas novas. Daí que, destes, só o pato tenha penas, e o morcego fique sem braços para poder ter asas enquanto a mosca manteve as patas.
É isto também que observamos nos peixes e mamíferos com sensibilidade eléctrica excepcional. Enquanto que nos peixes há estruturas específicas dedicadas a sentir campos eléctricos, nos mamíferos estes sensores são, essencialmente, terminações nervosas simples inseridas na mucosa. O resultado é que enquanto os tubarões conseguem sentir gradientes eléctricos da ordem dos nanovolt por centímetro, os golfinhos só sentem gradientes mil vezes maiores (3).
Quanto a explicar porque é que isto é assim, quando consideramos todos os dados é mais fácil fazê-lo pela teoria da evolução do que pelo criacionismo. A ideia de que um deus omnipotente e inteligente criou estes animais não é consistente com o golfinho ter um sistema tão rudimentar quando comparado ao do tubarão. Nem com a enorme coincidência dos receptores eléctricos do golfinho não só se encontrarem onde estariam os bigodes mas até lá crescerem pêlos quando o golfinho é novo(4). Em contraste, os sensores eléctricos do tubarão nunca têm pêlos e estão distribuídos de forma a optimizar a detecção em vez de imitar bigodes.
Em traços gerais, a evolução de sensores eléctricos nos poros dos bigodes é relativamente fácil de perceber. Primeiro, logo à partida todos os neurónios são sensíveis a campos eléctricos. Desde não é preciso muita corrente para desestabilizar as membranas das células e fazer o neurónio disparar. Na nossa língua, onde a humidade e os sais facilitam a criação de correntes eléctricas, até um gradiente da ordem de um volt por centímetro é fácil de sentir e uma pilha de 9V já dói. Por isso, qualquer zona especialmente sensível a qualquer estímulo, como pressão ou temperatura, será também mais sensível à electricidade pelo simples facto de ter mais terminações nervosas. Especialmente dentro de água. Além disso, muitos peixes produzem campos eléctricos, uns mais fracos, para detectar outros peixes, mas outros bastante fortes e até letais. É por isso razoável que a sensibilidade aos campos eléctricos fosse útil aos antepassados destes golfinhos mesmo antes de estar tão aperfeiçoada que pudesse sentir os campos eléctricos dos camarões.
O criacionismo não prevê nem explica o que quer que seja, pelo que a única coisa que o criacionista pode fazer é atacar a teoria da evolução. O que é difícil, devido à quantidade de evidências a seu favor. Resta, por isso, a aldrabice. Neste caso, a de fingir que a evolução tem de ir sempre em frente, que nenhuma estrutura ancestral pode ser adaptada para uma função diferente da original ou que as pressões selectivas para uma característica, como bigodes sensíveis, não podem depois possibilitar a resposta a outras pressões selectivas, como para a sensibilidade a campos eléctricos. O Mats, talvez na única parte do post que é mesmo da sua autoria, diz que eu devo estar destroçado com isto dos golfinhos. Destroçado não diria, mas confesso que tenho pena que o Mats se dedique tanto a estas coisas mas que, ao mesmo tempo, faça um esforço tão grande para não perceber nada do que lê.
1- Artigo original: Evolution Delays Discovery of Dolphin Sensory Ability, e o plágio do Mats: Golfinhos: modelo evolutivo impede avanço científico. Professor Ludwig Krippahl destroçado.
2- Da “Origem das Espécies”, via Wikipedia
3- Damal et. al, Electroreception in the Guiana dolphin (Sotalia guianensis).
4- Dolphin Research Center, «When they are born, dolphins have whiskers on their rostrum. A dolphin’s whiskers are about one quarter inch long, and will fall out shortly after birth, as a result of water pressure». Normalmente não cito trechos nestas notas de rodapé, mas como quando se carrega com o botão da direita, nesse site, vem uma mensagem a dizer que é proibido copiar, não resisti a fazer-lhes um manguito. Ctrl-C, Ctrl-V, e vão se lá mas é lixar. Citar é um direito que não me vão roubar.