Treta da semana: à vossa saúde!
Segundo um teaser online, a Visão desta semana tem uma entrevista com «Bal Krishna, presidente da Associação Nacional de Acupunctura», que «garante que a ingestão de urina "funciona como uma vacina"»(1). Não sei se é como uma vacina por fornecer antigénios e estimular o sistema imunitário se é por ser desagradável de tomar. Mas, segundo a notícia, «A ingestão de urina para prevenir problemas de saúde é um método milenar, praticado na Ásia, que tem vindo a ser divulgado no Ocidente.»
Nunca percebi a suposta virtude de ser milenar. Só quer dizer que se fazia há mil anos, e as coisas há mil anos não eram assim tão boas. Concubinas aparte, é melhor a minha vida de classe média do que a de qualquer imperador do século X. E com o que se sabia nessa altura sobre doenças venéreas, talvez eu viva melhor mesmo considerando as concubinas.
A ideia de beber urina pela saúde também não é consensual entre orientalistas. Um livro de Hatha Yoga que tenho tenta persuadir o leitor que somos naturalmente vegetarianos alegando, entre outras coisas, que «A análise química dos caldos de carne, que se costuma dar aos enfermos, tem revelado uma composição bem próxima à da urina» (2). Tem razão, porque tanto o caldo de carne como a urina são 95% água e sal. Mas os picuinhas como eu preocupam-se mais com os restantes 5% de ureia e compostos tóxicos na urina.
A ureia resulta da decomposição de aminoácidos e não é tóxica. É um fertilizante comum e é até usada em produtos para branquear os dentes, cigarros, pastilhas elásticas, gelados e cosméticos (3). Mas também não é especialmente útil para a saúde e a urina em si é moderadamente tóxica, irritante e a sua alegada utilidade como bebida para quem está a morrer à sede também não faz sentido. Quando estamos desidratados a urina é concentrada, com muitos sais, e desaconselhada mesmo como último recurso (4).
Dizem os proponentes que a urina é maravilhosa porque reúne «todas as experiências do corpo, físicas e psicológicas. Reintroduzindo a urina no corpo força o sistema imunitário do corpo a confrontar as mesmas experiências uma segunda vez, o que lhe dá um segundo incentivo para lidar com o problema»(5). Exageram. Não há evidências nem que a urina guarde tal registo nem que sirva de alguma coisa reviver essas experiências de forma tão insalubre. Excepto em certas circunstâncias. Muitas drogas são eliminadas na urina. Há uns séculos na Sibéria, onde pouco havia para fazer além de rapar frio, os mais ricos drogavam-se com Amanita muscaria e os mais pobres, sem cogumelos, bebiam a urina dos abastados (6). Enfim, povos e costumes...
Se alguém quiser beber urina, bom proveito. Em moderação deve fazer menos mal que o tabaco, não incomoda os outros e nem dá um hálito tão desagradável. Mas se o fizer convencido que isso cura foi enganado. Dizem que a urina é um elixir maravilhoso que só é pouco usado por causa da malvada industria farmacêutica (7). Mas se a urina tivesse valor terapêutico dava fortunas a quem vendesse os princípios activos numa bebida mais apelativa. Além disso, a ureia já é um produto importante na industria química e a indústria farmacêutica também extrai fármacos da urina (8). O que vale a pena aproveitar já se aproveita. O resto é melhor ir para a sanita.
Como de costume, o fundamento aqui é a ideia ridícula de que há um remédio milagroso para todas as maleitas. Nem sequer nos automóveis é assim, e um automóvel é muito mais simples que nós. As doenças e os problemas da idade são demasiado complexos para se tratar com uma mijinha.
Já agora, aproveito o espaço que me sobrou para referir a Associação Nacional de Acupunctura, «tão especial que o seu nome pode ser lido de trás para frente»(9). Arutcnupuca ed Lanoican Oãçaicossa? Penso que queriam dizer acrónimo em vez de nome. Mas gostei da página, concebida a pensar nos daltónicos tantas vezes esquecidos pelos web designers. E, como treta puxa treta, refiro também o despique entre dois representantes do budismo português, que descobri ao procurar mais informação sobre Bal Krishna.
No blog da Heloisa Miranda, que promete ser um rico filão para esta rubrica semanal, um budista de nome Carlos Amaral e cognome Lama Khetsung Gyaltsen escreve sobre cristais e mais uma baralhada de coisas. Segue-se um comentário do presidente da União Budista Portuguesa, declarando que «não pode garantir a fiabilidade da orientação budista das actividades do Sr. Carlos Amaral e declina qualquer responsabilidade pelas mesmas» e um tortuoso e prolongado contraponto do Carlos Amaral (9), cujos textos e vídeos (10) recomendo a quem sofra de insónias.
Penso que estes senhores deviam dar um exemplo da serenidade e do bom humor budista e reconciliar-se. Talvez se fossem tomar um copo...
1- Visão, E se alguém lhe disser que beber urina faz bem?. Obrigado ao Francisco Burnay pela referência.
2- Hermógenes, Autoperfeição com Hatha Yoga, Record, Rio de Janeiro, 1993. Pág. 148.
3- Kemi, Urea, e também Wikipedia, Urea
4- Wikipedia, Urine.
5- InnerSelf, Healing Yourself with Urine
6- The Vaults of Erowid, History of Amanita muscaria
7- Por exemplo, Filosofia e Tecnologia, A CURA PELA URINOTERAPIA.
8- Wikipedia, Premarin
9- Zen, Cristais: A Discussão Instala-se.
10- Vídeos de Lama Khetsung Gyaltsen, O Direito Primordial à Felicidade