No passado dia 8, Jónatas Machado (JM) escreveu no jornal «O Público» um artigo em defesa do criacionismo, a propósito da aparente abertura do Papa Bento XVI a esta doutrina. Quero dedicar algumas entradas deste blog ao esforço interdisciplinar deste professor de direito e constitucionalista, e à sua critica de disciplinas tão diversas como a biologia molecular, a paleontologia e a geologia.
No seu artigo no jornal «O Público», JM apresenta uma série de argumentos padrão do movimento criacionista, todos baseados em mal-entendidos (assumindo que são apresentados de boa fé). Em primeiro lugar, JM mostra-se preocupado que o Papa vá a “reboque de teólogos e cientistas, cujas posições estão em constante mutação”. Mudar de opinião pode ser mal visto em teologia, mas em ciência é fundamental Afinal, é esse o objectivo da ciência: mudar a nossa opinião de forma a que esteja sempre o mais possível de acordo com os factos. Como ninguém conhece todos os factos, qualquer cientista (eu diria mesmo qualquer pessoa intelectualmente honesta) tem que estar preparado para mudar a sua opinião se confrontado com factos que a contradigam.
Outro termo revelador que JM usa é “evolucionistas”. A teoria da evolução é uma ferramenta conceptual, algo que nos ajuda a compreender e prever aspectos da natureza. Chamar “evolutionista” a quem a usa desta forma é como chamar “gravitacionista” aos arquitectos e engenheiros civis porque incluem a gravidade nos seus cálculos. Ao contrario do criacionismo, nem o “evolucionismo” nem o “gravitacionismo” são doutrinas. São teorias, ferramentas para aplicar onde aplicável, modificar conforme necessário, e talvez até rejeitar se um dia se revelarem incompatíveis com os factos. Ao contrário dos criacionistas, os cientistas mudam de opinião quando que se justifica.
Mas o que quero abordar aqui é principalmente esta afirmação de JM:
«Os evolucionistas interpretam a existência de semelhanças genéticas como evidência de um ancestral comum, ao passo que os criacionistas as interpretam como evidência de um Criador comum.»
Este é um dos truques do criacionismo, apresentar o problema como uma mera divergência de interpretações dos mesmos factos. E para qualquer pessoa que desconheça os factos pode até fazer sentido. Há semelhanças e diferenças, uns dizem que é porque o deus deles assim o quis, outros dizem que os organismos evoluíram assim. Mas os factos não se restringem á mera presença de semelhanças e diferenças. O mais revelador é o padrão das semelhanças e diferenças, e é nos detalhes que se distinguem as boas explicações das más desculpas.
Consideremos a hipótese de JM, que um deus criou todos os organismos. Neste caso é natural que um rato, um morcego, e um pardal tenham semelhanças e diferenças nos seus genes. O morcego e o pardal têm asas, o morcego e o rato são mamíferos, e assim por diante. E seria de esperar que as diferenças sejam maiores entre o rato e o pardal do que entre o morcego e qualquer um dos outros dois. O morcego talvez seja mais parecido com o rato, ou talvez mais como o pardal, mas seria de esperar que estivesse algures entre o rato e o pardal.
Segundo a teoria da evolução isto não pode acontecer. Entre o rato e o pardal apenas estão os seus antepassados, e ninguém da geração presente. Se o morcego estiver mais próximo do rato (que é o caso), terá que haver tantas diferenças entre o pardal e o morcego como entre o pardal e o rato. O pardal é como um primo afastado e o morcego e o rato como irmãos, e por isso a relação de parentesco entre o rato e o pardal é a mesma que a relação entre o morcego e o pardal.
Temos assim uma grande diferença entre a forma como as duas hipóteses podem interpretar os factos observados. Segundo a hipótese que partilhamos todos um ancestral comum, as espécies modernas formam uma geração da enorme árvore de família que une todos os seres vivos, e por isso nunca pode haver os tais casos intermédios. As espécies modernas têm que se relacionar todas como primos mais ou menos afastados. Isto é uma afirmação extremamente arriscada, mas daquelas que caracterizam uma boa explicação científica. E é precisamente isso que observamos em milhares de espécies estudadas.
A hipótese criacionista, que postula uma criação independente, é incapaz de explicar esta relação que se observa nas diferenças e semelhanças entre os genes de todos os organismos. Pode afirmar que o alegado criador quis criar os genes todos tal e qual como se esperaria se descendessem de um ancestral comum, mas por ser compatível com qualquer observação a hipótese criacionista torna-se inútil como explicação.
Há outro pormenor importante que favorece a teoria da evolução. Os nossos genes são como que receitas para criar proteínas. Os genes e as proteínas são moléculas complexas formadas por moléculas mais pequenas encadeadas em longas sequências, e cada sequência de três destas moléculas no gene especifica uma na proteína. Por exemplo, para a receita genética especificar uma alanina na proteína, no gene podemos ter GCC, GCA, GCG, ou GCT. Qualquer uma destas quatro sequências especifica uma alanina na proteína correspondente.
Se um organismo tiver a sequência GCC e outro organismo a sequência GCA, ambos produzem a mesma proteína apesar de terem uma diferença no gene. Estas sequências são chamadas sinónimas, pois estão escritas de forma diferente mas “querem dizer” o mesmo. Segundo a hipótese criacionista, seria de esperar um número aproximadamente igual de diferenças sinónimas e não sinónimas. Os genes do coelho e do rabanete teriam sido criados por um ser inteligente de forma a dar origem a organismos diferentes, mas o criador podia também ter incluído algumas diferenças sem consequência.
Segundo a teoria da evolução, estas diferenças resultam da acumulação de mutações (não inteligentes) ao longo de muitas gerações. Se uma mutação for sinónima, por exemplo se muda um GCC para GCA, não tem qualquer efeito no organismo, e pode facilmente persistir nas gerações seguintes. Por outro lado, se a mutação não for sinónima é muito provável que seja prejudicial, porque um organismo é algo muito complexo, e altera-lo ao acaso vai provavelmente estragar alguma coisa. Estas mutações serão rapidamente eliminadas por selecção natural. Só muito raramente é que uma mutação não sinónima é neutra ou benéfica para o organismo é passada para as gerações seguintes.
Este mecanismo faz nos prever que serão sinónimas a maioria das diferenças entre os genes das espécies que sobreviveram até hoje, pois as mutações sinónimas as que mais facilmente sobrevivem à selecção natural. E, de facto, as diferenças sinónimas são cerca de mil vezes mais comuns que as diferenças não sinónimas. Mais significativo ainda, quanto mais importante o gene para a sobrevivência do organismo maior a proporção de diferenças sinónimas em relação às que não são sinónimas.
Mais uma vez a teoria da evolução explica perfeitamente as observações, ao passo que o criacionismo apenas nos deixa pasmados com um criador supostamente inteligente que investiu 99.9% do trabalho em diferenças inconsequentes.
Em suma, é fácil argumentar que algo tão vago como “semelhanças genéticas” pode ser interpretado de inúmeras maneiras. Pode ser evolução, um deus, vários deuses, extraterrestres, ou até o Monstro do Espaguete Voador . Mas quando consideramos os detalhes, a teoria da evolução é claramente melhor que as alternativas para explicar a complexidade de observações da genética e da biologia molecular.
Os interessados podem encontrar aqui muito material acerca deste tema:
Theobald, Douglas L. "29+ Evidences for Macroevolution: The Scientific Case for Common Descent." The Talk.Origins Archive. Vers. 2.83. 2004. 12 Jan, 2004
E aqui um texto que eu escrevi acerca do ensino do criacionismo em Portugal.