Treta da semana (atrasada): Vampiros energéticos.
Declara o guia kármico Mário Portela que, «Por sermos um complexo energético, estamos sujeitos a interacções com várias dimensões de energias que podem ocasionar assimilação ou perda de energia»(1). Assimilamos estas energias por três vias diferentes. «Uma parte da energia que precisamos, obtemos através da alimentação e respiração (cerca de 10%) [...] Outra parte, através da sono e solarização (cerca de 20%) [...] mas a maior parte de energia que precisamos é aquela que vem através do fluido cósmico universal (cerca de 70%).» É o que eu tenho dito à minha mulher repetidamente. O meu peso não tem nada que ver com os chocolates. É o fluido cósmico universal que me dá cabo da linha.
Nesta troca de fluidos energéticos, «Um Vampiro Energético é uma pessoa que tem necessidade de energia vital cósmica e não consegue absorvê-la naturalmente. Por um mecanismo vibracional, de frequência vibracional, o vampiro aproxima-se de pessoas que têm boa carga de energia vital [… e os vampiros …] assim absorvem a energia do outro e, por estarem debilitados, metabolizam e consomem toda energia absorvida e não sobra nada para retornarem à simbiose com a outra pessoa.» É por isso importante identificar e evitar estas pessoas. O que não é difícil porque são pessoas que, entre outras coisas, «fazem perguntas para sondar o mundo da outra pessoa, com propósito de descobrir alguma coisa errada.» Como os cépticos, por exemplo, que venham dizer que esta treta das energias e dos vampiros é um enorme disparate. Esses são de evitar a todo o custo.
Este é um exemplo de uma treta, entre muitas, para a qual a abordagem tradicional do pensamento crítico adianta pouco. O pensamento crítico de raiz filosófica (2) enfatiza quase exclusivamente a análise de argumentos. A categorização de inferências e conceitos, o esclarecimento de termos, a estrutura lógica do argumento, a qualidade das inferências e assim por diante. Só a avaliação das premissas é que, forçosamente, tem de sair do âmbito do argumento, mas até essa tende a focar-se apenas no que é relevante ao argumento. O problema principal deste tipo de análise é promover a avaliação de narrativas pela sua consistência interna e como algo isolado do resto, o que é mau porque o problema principal em alegações como esta dos vampiros energéticos não está nos detalhes das inferências ou na estrutura lógica do argumento. Está em serem explicações claramente inferiores às alternativas que já temos, como a de que obtemos energia pelos alimentos e o resto são aspectos subjectivos e emocionais das relações entre pessoas e não têm nada que ver com “energias” ou vampirismo.
O problema da ênfase excessiva na argumentação é ainda mais grave quando, até para aproveitar este enviesamento, os argumentos são mais minuciosos e complicados. Um exemplo disso é o argumento ontológico para a existência de Deus (3). Uma versão recente, de Plantinga, apela à lógica modal para enunciar um elaborado argumento. A premissa de que é possível existir um ser “maximamente grande”, definido como sendo algo que é “maximamente excelente” em todos os mundos possíveis. Se é possível então existe num mundo possível e se existe num mundo possível e é “maximamente excelente” em todos então existe em todos os mundos possíveis, incluindo no nosso. Este é um excelente argumento porque qualquer pessoa que queira atacá-lo enquanto argumento irá ver-se a braços com a axiomatização da lógica modal, com os contra-argumentos a várias objecções, com as minudências da definição de cada conceito e uma miríade de detalhes complexos. Qualquer crítica a este argumento que tenha menos de 15 páginas e 30 referências à literatura será imediatamente descartada pelos filósofos da religião como coisa de ignorantes. Mas o problema fundamental do argumento ontológico é o mesmo desde há mil anos, quando Anselmo formulou a primeira versão oficial. Sem qualquer poder explicativo ou entrosamento com a realidade que observamos, nunca foi melhor do que explicações alternativas e, com o passar dos séculos e o melhoramento destas últimas, só foi ficando cada vez mais para trás.
A capacidade de avaliar criticamente estas coisas é muito importante e cada vez mais importante. Mas o pensamento crítico não deve focar a argumentação, a classificação de falácias e a análise minuciosa de conceitos em detrimento da avaliação da adequação do que é proposto enquanto explicação e da sua comparação com as alternativas. Se nos oferecerem uma roda quadrada para o automóvel a nossa preocupação principal não deve ser com a qualidade do material, o brilho do cromado ou os detalhes dos acabamentos.
Se alguém estiver interessado numa versão mais extensa e académica deste desabafo (com referências e tudo), está na página 31 do livro do II Seminário Internacional de Pensamento Crítico.
1- Portugal Místico, Vampiros Energéticos, parte 1
2- Por exemplo, como descrito no influente Delphi report, da American Philosophical Association
3- Wikipedia, Ontological argument