quinta-feira, agosto 06, 2015

Treta da semana (atrasada): Vampiros energéticos.

Declara o guia kármico Mário Portela que, «Por sermos um complexo energético, estamos sujeitos a interacções com várias dimensões de energias que podem ocasionar assimilação ou perda de energia»(1). Assimilamos estas energias por três vias diferentes. «Uma parte da energia que precisamos, obtemos através da alimentação e respiração (cerca de 10%) [...] Outra parte, através da sono e solarização (cerca de 20%) [...] mas a maior parte de energia que precisamos é aquela que vem através do fluido cósmico universal (cerca de 70%).» É o que eu tenho dito à minha mulher repetidamente. O meu peso não tem nada que ver com os chocolates. É o fluido cósmico universal que me dá cabo da linha.

Nesta troca de fluidos energéticos, «Um Vampiro Energético é uma pessoa que tem necessidade de energia vital cósmica e não consegue absorvê-la naturalmente. Por um mecanismo vibracional, de frequência vibracional, o vampiro aproxima-se de pessoas que têm boa carga de energia vital [… e os vampiros …] assim absorvem a energia do outro e, por estarem debilitados, metabolizam e consomem toda energia absorvida e não sobra nada para retornarem à simbiose com a outra pessoa.» É por isso importante identificar e evitar estas pessoas. O que não é difícil porque são pessoas que, entre outras coisas, «fazem perguntas para sondar o mundo da outra pessoa, com propósito de descobrir alguma coisa errada.» Como os cépticos, por exemplo, que venham dizer que esta treta das energias e dos vampiros é um enorme disparate. Esses são de evitar a todo o custo.

Este é um exemplo de uma treta, entre muitas, para a qual a abordagem tradicional do pensamento crítico adianta pouco. O pensamento crítico de raiz filosófica (2) enfatiza quase exclusivamente a análise de argumentos. A categorização de inferências e conceitos, o esclarecimento de termos, a estrutura lógica do argumento, a qualidade das inferências e assim por diante. Só a avaliação das premissas é que, forçosamente, tem de sair do âmbito do argumento, mas até essa tende a focar-se apenas no que é relevante ao argumento. O problema principal deste tipo de análise é promover a avaliação de narrativas pela sua consistência interna e como algo isolado do resto, o que é mau porque o problema principal em alegações como esta dos vampiros energéticos não está nos detalhes das inferências ou na estrutura lógica do argumento. Está em serem explicações claramente inferiores às alternativas que já temos, como a de que obtemos energia pelos alimentos e o resto são aspectos subjectivos e emocionais das relações entre pessoas e não têm nada que ver com “energias” ou vampirismo.

O problema da ênfase excessiva na argumentação é ainda mais grave quando, até para aproveitar este enviesamento, os argumentos são mais minuciosos e complicados. Um exemplo disso é o argumento ontológico para a existência de Deus (3). Uma versão recente, de Plantinga, apela à lógica modal para enunciar um elaborado argumento. A premissa de que é possível existir um ser “maximamente grande”, definido como sendo algo que é “maximamente excelente” em todos os mundos possíveis. Se é possível então existe num mundo possível e se existe num mundo possível e é “maximamente excelente” em todos então existe em todos os mundos possíveis, incluindo no nosso. Este é um excelente argumento porque qualquer pessoa que queira atacá-lo enquanto argumento irá ver-se a braços com a axiomatização da lógica modal, com os contra-argumentos a várias objecções, com as minudências da definição de cada conceito e uma miríade de detalhes complexos. Qualquer crítica a este argumento que tenha menos de 15 páginas e 30 referências à literatura será imediatamente descartada pelos filósofos da religião como coisa de ignorantes. Mas o problema fundamental do argumento ontológico é o mesmo desde há mil anos, quando Anselmo formulou a primeira versão oficial. Sem qualquer poder explicativo ou entrosamento com a realidade que observamos, nunca foi melhor do que explicações alternativas e, com o passar dos séculos e o melhoramento destas últimas, só foi ficando cada vez mais para trás.

A capacidade de avaliar criticamente estas coisas é muito importante e cada vez mais importante. Mas o pensamento crítico não deve focar a argumentação, a classificação de falácias e a análise minuciosa de conceitos em detrimento da avaliação da adequação do que é proposto enquanto explicação e da sua comparação com as alternativas. Se nos oferecerem uma roda quadrada para o automóvel a nossa preocupação principal não deve ser com a qualidade do material, o brilho do cromado ou os detalhes dos acabamentos.

Se alguém estiver interessado numa versão mais extensa e académica deste desabafo (com referências e tudo), está na página 31 do livro do II Seminário Internacional de Pensamento Crítico.

1- Portugal Místico, Vampiros Energéticos, parte 1
2- Por exemplo, como descrito no influente Delphi report, da American Philosophical Association
3- Wikipedia, Ontological argument

sexta-feira, julho 31, 2015

Demarcação.

A defesa do aborto como um direito incondicional exige distinguir, por algum critério, o feto que ainda não conta do feto que já tem direitos. Como os atributos que nos tornam pessoas – personalidade, auto-consciência, capacidade de raciocínio, memória biográfica e afins – só surgem gradualmente após o parto acaba por não haver critérios adequados que sirvam o propósito de colocar a fronteira à volta das dez semanas. Mas este é o problema menor. O erro principal nisto é avaliar o acto ao contrário, derivando direitos antes de deveres.

Dizer que eu tenho o direito de que não me matem em virtude de atributos como auto-consciência e afins é uma simplificação conveniente mas fundamentalmente errada. Se eu estiver fechado numa sala com um leão esfomeado eu não tenho qualquer direito de não ser morto porque falta ao leão o necessário para que seja eticamente imputável e tenha um dever moral de não me matar. Terei o direito de não ser morto se estiver num quarto com uma pessoa armada que, pelos seus atributos, já tem o dever de não me dar tiros. É desse dever que surge o meu direito de não ser morto. Ou seja, o direito à vida não advém automaticamente dos atributos do objecto em si, até porque valores não brotam espontaneamente de meros factos. O direito à vida, ou qualquer outro, deriva da avaliação ética daquele acto cometido por aquele agente sobre aquele sujeito naquelas condições. É por aí que temos de começar.

Para isso temos de considerar factores como as limitações cognitivas do agente, a sua liberdade para escolher entre as várias opções e a relação causal entre a sua escolha e os efeitos que dela resultarem. Vou assumir que os primeiros são constantes e focar apenas os efeitos e a sua relação causal com a decisão, dando alguns exemplos concretos. Vou chamar feto-antes ao feto que ainda não tem os atributos considerados necessários para ter direitos e feto-depois ao que já os tem, assumindo apenas que esses atributos têm algo que ver com a mente mas sem me preocupar com quais sejam em detalhe. O primeiro exemplo será o de retirar ou não os olhos a um feto-antes. O que está em causa são décadas futuras de cegueira ou visão, conforme a opção, e essa grande diferença será claramente efeito da decisão de retirar ou não os olhos. Por isso, avaliando o acto, concluímos que é eticamente inadmissível cegar um feto em qualquer estado de desenvolvimento, seja antes ou depois da linha de demarcação. O método inverso, de começar pelos atributos e direitos do feto, chega à mesma conclusão mas revela já um problema. Apesar do feto-antes não ter quaisquer direitos, se o cegarmos então o feto-depois surgirá cego. Como esse tem o direito de não ser cego não é admissível cegar o primeiro, pois tal afectaria o segundo. O estranho aqui é defender que não é legítimo cegar nenhum dos fetos ao mesmo tempo que se defende que só um deles tem o direito de não ser cego.

No caso do aborto as conclusões divergem. Se começarmos por avaliar o acto concluímos o mesmo que no caso anterior. Matar o feto-antes é inadmissível porque toda aquela vida que seria vivida se não o matássemos não será vivida se o matarmos, e isto claramente por causa da opção de o matar. Mas se começarmos pela atribuição de direitos podemos considerar que, ao contrário da cegueira, a morte só conta na altura em que o feto-antes é morto e como nunca surge sequer um feto com direitos então não há problema. Ou seja, apesar do feto-antes não poder ser cego porque o feto-depois tem o direito de não ser cego, o feto-antes pode ser morto mesmo que o feto-depois tenha o direito de não ser morto porque nunca chega a existir um feto com os atributos necessários para ter direitos.

Consideremos então a possibilidade de retirar ao feto-antes tudo aquilo que, nessa abordagem dos direitos, iria conceder o direito à vida. Seja auto-consciência, raciocínio, memória, o que for. Amputamos uma parte do cérebro em formação e garantimos que esse feto irá crescer fisicamente normal mas num estado vegetativo permanente, desprovido de qualquer atributo de pessoa. Será até uma fonte conveniente de órgãos para doação, se algum parente próximo precisar. Avaliando o acto, a conclusão é a mesma. Há uma diferença enorme entre as duas alternativas. Por um lado, uma vida plena e, por outro, uma vida em estado de vegetal. E essa diferença tem por causa principal a nossa decisão de obliterar parte do cérebro do feto. Por isso, é inadmissível fazer isto a qualquer feto. Mas se começarmos pelos atributos e direitos, concluímos que, tal como no caso do aborto, como nunca chega a surgir nada que possa ter direitos não se viola direitos de ninguém e o acto será admissível. Mesmo sabendo que aquele corpo de vinte anos está ali a babar-se virado para a parede em vez de no cinema com a namorada só porque decidimos amputar-lhe parte do cérebro no início do seu desenvolvimento. Eu proponho que isto está errado. Não proponho que esteja errado por causa deste exemplo, que serve só para ilustrar o problema. Proponho que está errado porque os direitos são reflexo de deveres que resultam da avaliação ética dos actos e, por isso, é um erro tentar avaliar os actos começando por atribuir ou negar direitos*. Os exemplos servem apenas para ilustrar o disparate que daí resulta.

Resta o problema dos espermatozóides. Muita gente acha necessário fundamentar a avaliação nos atributos do objecto da acção para evitar ter de proteger os gâmetas, que também têm o potencial de resultar numa vida consciente e com direitos. Além disto ser uma aldrabice, porque se vamos fundamentar a ética conforme o que é mais conveniente então mais vale deitarmos fora a ética e fazermos o que nos dá na gana, é desnecessário porque um factor importante para avaliar um acto é a relação causal entre a escolha e os seus efeitos. Já escrevi sobre isso antes** mas voltarei ao problema num próximo post.

*Um erro que não surge apenas nestes exemplos mas também, historicamente, em todos os casos de escravatura, racismo, genocídios, discriminação e afins, onde se começou igualmente por decidir que um certo grupo não tinha direitos porque lhe faltava certos atributos em vez de pensar nos actos em si e na sua legitimidade. Passa-se o mesmo agora com os direitos dos animais também.
**Várias vezes, mas aqui vai uma relativamente recente: Dawkins, a filosofia, e o aborto.

quinta-feira, julho 30, 2015

Treta da semana (atrasada): Legalizar a tortura.

Ana Sá Lopes, no Jornal i, criticou asperamente as alterações que a coligação PSD/CDS introduziu à legislação sobre o aborto. Lopes diz ser a favor da introdução de uma taxa moderadora no aborto porque «não há, na minha opinião, nenhuma razão lógica para que o acto médico do aborto não fique sujeito às mesmas medidas que qualquer outro acto médico»(1). Concordo com o princípio, que também defendo como critério para avaliar estas medidas. Mas discordo da conclusão. Uma taxa moderadora serve apenas para evitar a utilização desnecessária de um serviço público. É adequada para coisas como as consultas ao médico de família, por exemplo, às quais muita gente gosta de ir só para conversar. Mas é absurdo cobrar taxas moderadoras a grávidas. Esta taxa moderadora pelo aborto é contrária ao princípio de tratar o aborto como qualquer outro acto médico.

Mas este é o problema mais saliente aqui. Qualquer outro acto médico depende de uma apreciação técnica que conclua ser esse o acto mais adequado para resolver aquele problema de saúde. Seja tirar um apêndice, tomar antibióticos ou engessar uma perna. É verdade que no meu corpo quem manda sou eu mas no Serviço Nacional de Saúde devem mandar pessoas que apliquem os tratamentos apenas quando são os mais indicados para tratar os problemas de saúde e que recusem aplicá-los se não forem. A legislação vigente faz do aborto uma excepção ao dispensar qualquer justificação médica. Quem decide é o utente. É de salientar que o referendo perguntava apenas sobre a despenalização do aborto e não sobre se o aborto deveria ser oferecido gratuitamente a todas as grávidas sem qualquer justificação médica. Suspeito que o resultado do referendo teria sido diferente se fosse essa a pergunta, e a forma como este foi transposto para a lei viola o tal princípio razoável de que, sendo o aborto um acto médico legal, devia ser um acto médico como os outros.

Mas, se a lei obriga o SNS a oferecer o aborto como solução para problemas que nada têm que ver com a saúde da grávida – problemas pessoais, financeiros, sociais ou profissionais – então é razoável que se foque esses problemas e se tente procurar, com a grávida, soluções alternativas. Uma razão forte para despenalizar o aborto era a de que retirar a ameaça legal permitiria atacar os factores que levavam as mulheres a abortar e tentar resolver com elas os verdadeiros problemas dos quais o aborto é um sintoma e não uma solução. Infelizmente, mas como era previsível, uma vez passado o referendo a retórica caiu e passou a apregoar-se o aborto como um direito em vez de um problema. Agora nem querem sequer que se discuta a miséria que obriga a mulher a abortar. Se o acto médico do aborto é para ser parecido com os outros, então terá de ser incluído num processo que averigúe qual é realmente o problema e procure a melhor forma de o resolver. Como muitas vezes apontam, presume-se que a mulher não aborta porque lhe apetece mas porque se vê forçada a isso contra a sua vontade. Sendo assim, mais vale eliminar esses constrangimentos do que eliminar o feto.

Além do aborto ser excepcional por ser um acto médico ditado pela vontade do utente, mesmo sem justificação médica, é também excepcional por ser eticamente questionável. Quer se pense que temos o dever de preservar um feto humano às dez semanas ou só a partir das onze, é evidente que a questão não está resolvida. Tanto que se permite aos médicos recusar participar neste acto médico por objecção de consciência, coisa que não se permite na generalidade dos casos. Um médico pode ser contra a pílula ou as transfusões de sangue mas é profissionalmente obrigado a seguir as boas práticas da medicina mesmo contra tais convicções pessoais. Excepto com o aborto porque não só tende a faltar justificação médica para o acto como não há consenso que o aborto seja mesmo um direito da grávida e não uma violação dos direitos do abortado. Neste contexto, faz todo o sentido garantir que a grávida percebe o problema ético e as suas implicações, especialmente sendo ela a única responsável pela decisão final.

Lopes dá um bom exemplo disto. «É como pôr [...] crentes que são contra as transfusões de sangue a fazerem “aconselhamento” junto dos médicos do serviço de urgências.» Pensemos no caso ao contrário. Um paciente com filhos menores recusa uma transfusão de sangue por motivos religiosos e os médicos sabem que isso causará a sua morte, deixando as crianças órfãs. Certamente não será tortura apontar a essa pessoa o conflito entre o seu direito de recusa e o bem estar dos seus filhos. Quando um acto médico suscita dúvidas éticas é razoável que quem toma a decisão o faça consciente destes aspectos da sua escolha.

Se o aborto fosse um acto médico como qualquer outro seria recusado na maior parte dos casos por não haver justificação médica para abortar. Se, por outro lado, vamos usar o SNS para resolver problemas pessoais, profissionais ou sociais, então é evidente que se tem de considerar também esses problemas para tentar identificar o problema certo. E sendo o acto em si eticamente dúbio – é infundada a certeza absoluta que muita gente tem de que o feto até às 10 semanas é totalmente diferente do que é das 11 em diante – é um direito e um dever do utente compreender bem as implicações da sua decisão. Quanto a ser uma tortura, o termo é incorrecto. Ninguém recorre à medicina quando tudo está bem e estes processos podem implicar sofrimento, diálogos desconfortáveis e decisões difíceis. Há casos muito mais trágicos do que uma gravidez indesejada, que nem sequer é propriamente uma doença. Mas diagnosticar o problema, aconselhar o paciente e procurar a melhor solução tem de fazer parte do processo, por muito incómodo que seja fazê-lo. A ideia de que basta deitar fora o feto para que tudo se resolva, sem perguntas ou diálogo, é uma ilusão politicamente atraente mas prejudicial.

1- Jornal i, Legalizar a tortura das mulheres que querem abortar

terça-feira, julho 28, 2015

Treta da semana (atrasada): as passwords.

Tem-se noticiado que um tal “plano B” de Varoufakis incluiria, entre outras coisas, «piraterar passwords de contribuintes»(1) ou «piratear dados dos contribuintes»(2). Com este tipo de jornalismo, não admira que depois o pessoal julgue que Varoufakis «preparou-se para aceder a um programa que não era dele (hacking) para de maneira ardilosa “sacar” dinheiro (pishing) para criar uma banca paralela»(3) e disparates do género. Talvez se os jornalistas tivessem ouvido o que ele disse antes de escreverem as notícias a confusão teria sido menor (4).

O plano de Varoufakis era criar um sistema que permitisse ao Estado grego continuar a pagar prestações sociais, salários e compras mesmo que, como aconteceu, o BCE paralisasse a banca grega para forçar o governo a aceitar quaisquer condições que a troika quisesse impor. Foi, aliás, esse o propósito destes meses de “negociações” em que a Alemanha, principalmente, rejeitou sempre qualquer proposta da Grécia. Era só uma questão de tempo até começarem a vencer os empréstimos da “ajuda” e os gregos ficarem entalados. Para escapar a essa forma previsível de coação, Varoufakis planeou organizar uma base de dados e aplicações que permitissem ao Estado grego atribuir uma linha de crédito a cada contribuinte grego, onde creditaria pensões, salários e outros rendimentos. Cada contribuinte teria então um PIN que lhe permitiria transferir esse crédito para outros e, assim, a economia poderia continuar a funcionar mesmo com os bancos fechados.

Se isto fosse feito em qualquer país normal, o ministério das finanças teria acesso fácil aos dados dos contribuintes e à informação necessária para organizar esse sistema. Que não exige bisbilhotar passwords nem piratear coisa nenhuma. Bastaria implementar essa funcionalidade adicional nos servidores das finanças, criar uma aplicação para o telemóvel, e enviar a cada contribuinte um SMS com o PIN e instruções para fazer as suas transferências. Só que, na Grécia, essa informação é gerida e monitorizada por Bruxelas. O ministério grego das finanças não pode aceder aos dados dos contribuintes gregos sem passar por burocratas estrangeiros o que impedia que Varoufakis preparasse este plano de contingência sem a troika saber. Foi apenas por isso que o ministério grego das finanças teve de contornar as protecções do software do próprio ministério para ter acesso à informação que está normalmente acessível a qualquer ministério das finanças em qualquer país que não esteja em regime de colonato. A “pirataria” que ele estava a fazer é igual à “pirataria” que o nosso ministério das finanças faz quando nos manda emails a lembrar que temos contas para pagar. Nada mais do que isso.

Há nesta história dois aspectos claramente merecedores de serem notícia. Um é o poder que o BCE tem sobre qualquer país do Euro, que lhe permite atropelar a democracia e sobrepor-se à vontade dos eleitores a menos que se tome medidas extremas como a de criar um sistema financeiro independente dos bancos. O outro é a ingerência dos credores nas instituições gregas. Só porque compraram a dívida da Grécia aos bancos privados, para salvar os bancos privados, agora até controlam o acesso do ministério das finanças aos dados dos contribuintes. Mas em vez de focar estes problemas sérios e que nos dizem bastante respeito, os jornais e telejornais portugueses propagam um relato absurdo segundo o qual Varoufakis andaria a piratear passwords. Normalmente, prefiro não atribuir ao dolo aquilo que se pode explicar por mera incompetência. Mas neste caso é difícil.

1- TVI 24, Plano secreto de Varoufakis incluia piraterar passwords de contribuintes
2- DN, Plano B de Varoufakis incluía piratear dados dos contribuintes
3- Observador, Gravação áudio. Já pode ouvir Yanis Varoufakis a falar do Plano B
4- Teleconferência (mp4)

domingo, julho 26, 2015

Treta da semana (atrasada): Dragões aos nós.

O Mats tem defendido regularmente a coexistência histórica entre humanos e dinossauros, até agora sempre com fundamentos questionáveis. Mas, desta vez, apresenta evidências sólidas. Nomeadamente, que «Plínio o Velho escreveu sobre dragões» (1). Perante isto, será difícil insistir na ideia, contrária ao registo audiovisual, de que os dinossauros se extinguiram milhões de anos antes do nascimento dos Flintstones.

Esta evidência é sólida, em primeiro lugar, porque foi Plínio o Velho quem a escreveu. Como salienta o artigo que Mats traduziu, Plínio o Velho «foi um autor, naturalista, e filósofo natural [...] e passou a maior parte do seu tempo a estudar, a escrever ou a investigar os fenómenos naturais e geográficos in loco» Ora, como todos sabemos, um naturalista que passe o seu tempo a estudar fenómenos naturais não vai escrever falsidades. A menos que seja Darwin, é claro, que os evolucionistas e as suas «sempre flutuantes opiniões» nunca são de fiar. Por isso, Plínio o Velho nunca iria escrever sobre dragões se os dragões não existissem. É óbvio que não existem mas, como o Mats aponta e muito bem, Plínio o Velho falava de dragões referindo-se a dinossauros. Plínio o Velho é como a Bíblia: é uma fonte infalível e totalmente fiável de informação, mas é preciso que seja correctamente interpretado por pessoas como o Mats.

Em segundo lugar, Plínio o Velho descreveu dragões da Índia, onde Plínio o Velho nunca esteve mas de onde recebia notícias por viajantes que conheciam quem conhecesse a região. O relato de um viajante que tem um conhecido cujo primo viu um dragão nunca será exagerado – por que razão haveriam de exagerar tais histórias? – pelo que, se alegavam existir dragões gigantes que atacavam elefantes, isto é evidência sólida para a existência de dinossauros na Índia nos tempos do Império Romano. Curiosamente, o hinduísmo não parece contar dinossauros entre as suas divindades. Tem vacas, cavalos com penas, elefantes, cágados, bois, ratos, pavões, bodes e cães (2) mas, aparentemente, os hindus acharam que um dinossauro comedor de elefantes não era algo que merecesse sequer ser mencionado neste contexto. Talvez por o hinduismo não ser a Única e Verdadeira Religião™.

Em terceiro lugar, temos o detalhe e o realismo das descrições de Plínio o Velho quando relata a forma como estes dinossauros atacavam os elefantes: «com tal grandiosidade que eles podem facilmente se envolver e se enrolar em torno dum Elefante, e com tudo isto, agarrá-los com um nó. Neste conflicto, eles morrem, tanto um como o outro. O Elefante cai morto como se tivesse sido conquistado, e com o seu enorme peso esmaga o dragão que se encontra envolvido e agarrado a ele.» Plínio o Velho não só descreve com rigor o que hoje sabemos ser o comportamento típico dos predadores mais perigosos, que é enrolar-se à volta da presa, dar um nó e morrer esmagado, como é exactamente assim que imaginamos um dinossauro – um tiranossauro, por exemplo – a atacar um elefante. Enrola, dá nós, caem os dois e morrem.

Perante isto, comenta Mats que «Um animal que seja capaz, sozinho, de atacar um elefante, e matá-lo, tem que ser um animal com um tamanho e/ou força considerável. A alegação evolucionista de que todos os outros animais citados por Plínio são animais reais, mas o dragão é “mitológico”, é difícil de ser logicamente sustentada. A explicação mais económica para estes “dragões” é que eles são os animais que hoje em dia chamamos de “dinossauros”.» Na verdade, é pouco plausível que um mesmo texto tenha referências a animais reais, como um rato, um coelho e um gato sorridente, mas também inclua seres fictícios, como um chapeleiro louco ou uma carta falante da rainha de copas. E também se pode rejeitar a hipótese de um «naturalista, e filósofo natural» que passe «a maior parte do seu tempo a estudar, a escrever ou a investigar os fenómenos naturais» se vá enganar ou ser enganado. Por isso, temos de descartar a obra de Darwin como errada, face aos relatos de Plínio o Velho sobre animais que claramente teriam de ser dinossauros visto que teriam de ter tamanho e-barra-ou força considerável para se enrolarem à volta de elefantes e morrerem esmagados.

1- Mats, Plínio o Velho escreveu sobre dragões
2- Animal Deities

quarta-feira, julho 15, 2015

19 - 1 = 0

A última ronda de “negociações” com a Grécia decorreu normalmente. O Estado grego continuou a ter de lidar, quase exclusivamente, com um tal “eurogrupo” que não tem estatuto oficial, nem regras, nem responsabilidade perante ninguém. E o método de “negociação” seguiu a tradição que se tem enraizado. Ignorar os eleitores gregos, atirar o seu governo ao chão e dar-lhes biqueiradas até dizerem que sim. Para depois retorquir que logo se vê. Mas a tragédia, infelizmente, não será só grega porque os erros políticos que a causaram continuam por corrigir. E não é preciso um oráculo para perceber quem vem a seguir na lista.

Em geral, nenhum país consegue pagar a sua dívida. Nem a Alemanha. Só a vão substituindo por dívida nova conforme os prazos acabam. Em muitos casos isto é garantido por um banco central que pode emprestar sempre, mesmo que os privados não queiram comprar dívida ao país. É assim que o Japão consegue ter uma dívida pública de quase 230% do PIB sem precisar de resgates. O banco central japonês irá rolando essa dívida até ela mirrar com a inflação ou o universo congelar. Mas, por cá, decidiram que o BCE não pode comprar dívida aos Estados e, por isso, estes só podem rolar a dívida nas condições que a banca privada impuser. Por isso, se há chatice “nos mercados”, os países mais fracos ficam em perigo de default. Basta que a banca privada não queira conceder crédito, mesmo que só por uns tempos. Uma justificação para este sistema foi a de que a banca privada iria gerir melhor o risco de crédito dos Estados, o que é obviamente falso. Sempre que a Grécia leiloava títulos de dívida, bancos privados da Alemanha e da França, principalmente, iam atrás do negócio e ninguém quis regular a sua exposição excessiva até o carrossel se partir. Agora há mais restrições à alavancagem mas o problema fundamental permanece.

Outra justificação para ser a banca privada a gerir o crédito dos Estados era a de que os privados teriam medo de falir se arriscassem demais. Mas, ao nacionalizar o prejuízo dos bancos, eliminou-se qualquer incentivo hipotético que a banca teria para ser responsável. Também os efeitos da austeridade punitiva que agora impõem, como aumentar a mortalidade infantil, os suicídios ou a taxa de infecção por HIV (1), não contribuem nada para desincentivar a ganância dos banqueiros ou a corrupção dos políticos. Os cadáveres amontoam-se e o moral hazard fica na mesma. Quanto ao argumento de que os contribuintes alemães e franceses não têm obrigação de pagar estas despesas, é discutível e é irrelevante porque já o fizeram quando os políticos alemães e franceses resgataram os bancos privados. Esses é que ficaram com o dinheiro dos contribuintes. Os gregos só ficaram com mais dívidas.

Como escreve o Pedro Romano, se bem que no sentido contrário ao meu, há aqui um problema de «framing enviesado». Muita gente, como o Pedro, enquadra esta situação num erro grego de endividamento e má negociação. «O “braço de ferro” entre credores e devedores pode ser visto como uma disputa por recursos: os gregos precisam do dinheiro alemão, e a Alemanha não quer emprestar dinheiro à Grécia.» (2) Esta é uma forma completamente errada de descrever a situação. Primeiro, porque não se trata de “emprestar dinheiro à Grécia” no sentido que normalmente damos à expressão. Vamos imaginar que o Pedro deve 200€ a alguém, não tem como pagar e eu compro essa dívida. Depois passo-lhe um papel a dizer “isto vale 200€”, o Pedro entrega-me o papel para eu considerar a dívida inicial saldada e agora fica a dever-me 250€, que é quanto lhe cobro pelo papel. Contabilisticamente, eu emprestei 250€ ao Pedro. É o alegado valor do papel. Mas foi mesmo só contabilisticamente.

Em segundo lugar, de quem é o dinheiro também é questionável. Os bancos alemães e franceses usaram dinheiro dos depositantes para comprar dívida grega em leilão. Depois os governos alemães e franceses usaram dinheiro dos impostos para dar aos bancos alemães e franceses que se afundaram com o negócio. Entretanto, o dinheiro que tinha ido para a Grécia voltou, principalmente para a Alemanha, pelo enorme desequilíbrio nas exportações, razão pela qual a Alemanha também não tinha interesse em regular a concessão de crédito aos PIIGS enquanto tudo corria bem. A economia europeia está tão interligada que dizer que a Grécia precisa do dinheiro alemão é como dizer que Bragança precisa do dinheiro lisboeta. É mais uma verdade contabilística irrelevante porque, sem essas transferências, o sistema desintegra-se e isso é pior para toda a gente.

Mas o problema principal daquele framing é que esta embrulhada não é só por causa dos gregos. É por causa de todos os envolvidos, por igual. Por causa dos banqueiros, dos políticos que não regularam os banqueiros, dos políticos que deram o dinheiro aos banqueiros, dos que criaram um sistema monetário totalmente dependente da banca privada, dos que desrespeitaram os limites do superavit na balança de pagamentos e assim por diante. E é entre todos que isto tem de ser resolvido. Merkel tem razão em dizer que os países europeus têm de ceder soberania, porque a única forma de resolver este problema é com uma união política a sério em vez de uma moeda comum que só sirva para uns exportarem à custa dos outros. Mas os cidadãos têm de permanecer soberanos. É o fundamento da democracia. É por isso que estas coisas têm de ser discutidas em órgãos como o Parlamento Europeu, que representa adequadamente os europeus e é responsável perante estes, e nunca em “eurogrupos” da treta que fazem o que querem à porta fechada. Nem sequer é só pela saúde da economia, porque a União Europeia não é um mero negócio. A União Europeia deve ser um projecto político, social e ético e, para isso, não pode ficar a cargo de um punhado de fanáticos da contagem de feijões.

1 - Kentikelenis, Alexander, et al. "Greece's health crisis: from austerity to denialism." The Lancet 383.9918 (2014): 748-753. (em pdf)
2- Pedro Romano, Era tudo tão, tão, tão previsível

domingo, julho 12, 2015

Treta da semana (atrasada): justiça.

A justiça portuguesa está finalmente a progredir no sentido de proteger um dos direitos humanos mais fundamentais. Refiro-me, naturalmente, ao direito de proibir terceiros de divulgar ligações para sites na Web onde alguém partilhe descrições numéricas de obras comercialmente disponíveis mas sujeitas a monopólios legais de distribuição. Na defesa deste direito humano básico, a Polícia Judiciária e o Ministério Público conseguiram descobrir que o site WarezTuga estava alojado na Roménia e, numa colaboração internacional, fizeram com que encerrasse. Podemos agora dormir todos mais descansados, seguros de que, do milhão de sítios onde os portugueses podem encontrar episódios do Breaking Bad, já só sobram uns 999.999. Enquanto não aparecerem mais. Os mais cínicos – e há-os sempre – poderão criticar esta acção das nossas forças de investigação policial como uma má aplicação de recursos. Admito que poderiam ter razão se Portugal fosse um país qualquer. Se, por exemplo, houvesse por cá problemas com burlas financeiras ou corrupção, crimes no combate aos quais a investigação policial pudesse beneficiar mais a sociedade. Mas não é o caso. Nem Zeinal Bava guarda qualquer memória de problemas desses.

No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Paulo Santos, o presidente da FEVIP, está naturalmente desiludido porque as investigações ainda não revelaram quem são os culpados deste terrível crime de facilitação de downloads: «Se fosse um caso de terrorismo ou pedofilia, teriam tido sucesso e teriam conseguido identificar os donos do site. Como era pirataria, o processo não teve sucesso, apesar de termos fornecidos elementos suficientes para se fazer a investigação» (1). Isto é incompreensível. É certo que violar crianças ou rebentar pessoas com bombas são coisas más. Ninguém defende que não se deva investigar essas infracções. Mas é errado dar prioridade a esse tipo de delitos em detrimento do combate ao download ilegal, um crime que pode pôr em causa uma fatia nunca devidamente estimada do lucro de alguns distribuidores.

O problema não está só na formação de quem faz cumprir a lei e que não compreende a gravidade de se permitir o descarregamento não autorizado de filmes ou séries de TV. A própria legislação está muito aquém do ideal. Por exemplo, tanto quanto sei, ainda é legal mencionar publicamente que sites como www.yourserie.com ou www.tumovie.net permitem descarregar material ilícito, pondo assim – impunemente – muita gente em perigo de conseguir ver aquele episódio que perdeu na televisão ou o filme que não foi ver ao cinema. Este enorme buraco na lei tem de ser tapado. A liberdade de expressão e o direito de acesso à cultura são coisas muito bonitas mas é em teoria. Na prática, temos de considerar também o dever universal de maximizar o lucro dos negociantes da distribuição e, acima de tudo, o perigo que é «tornar indiscriminado o acesso a conteúdos até agora protegidos», como há tempos mencionou, e bem, o Secretário de Estado da Cultura Barreto Xavier (2). Que raio de sociedade teríamos se até os pobres pudessem ver filmes?

1- Exame Informática, Wareztuga: foi a indústria do cinema que fechou o maior site pirata de Portugal
2- Público, A cópia privada

sexta-feira, julho 03, 2015

Treta da semana (atrasada): o casamento, os deveres e a função pública.

Estava indeciso entre escrever sobre a confusão que Orlando Braga fez do meu post de há dias (1) ou sobre a confusão de post que João César das Neves escreveu sobre o casamento homossexual (2). Braga é menos famoso mas tem o mesmo condão de criar, no leitor, uma atracção irresistível entre a palma da mão e a testa. Sem conseguir decidir qual o pior dos dois, optei por um medley de disparates.

No outro post, descartei a alegação de que «a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo»(3). Braga escreveu que isto é “uma evidência” e caracterizou assim o meu raciocínio: «eu conheço o mundo oculto que me revelou que essa evidência está errada: o ADN revelou-me a verdade!»(1) Não foi bem isso que eu pensei. O ADN dá-nos uma medida conveniente de distância evolutiva e, nessa, eu e o chimpanzé estamos equidistantes da aranha. Mas não é só o ADN que sugere que o chimpanzé e eu estamos mais próximos. A nossa anatomia é semelhante mas muito diferente da da aranha e partilhamos capacidades para resolver problemas, sentir afecto, aprender, comunicar e interagir em sociedade que nos afastam a ambos da aranha. Há muita coisa que eu e o chimpanzé partilhamos que a aranha não tem, mas tudo o que a aranha partilha com o chimpanzé partilha também comigo. Por todas as medidas, estou muito mais próximo do chimpanzé do que este está da aranha. Alguns religiosos dirão que há um diferença grande por causa da alma mas até nisso estou do lado dos bichos. É que, tanto quanto sei, nunca tive tal coisa.

Mas a confusão mais pertinente de Braga foi acerca dos direitos. Eu defendi que os direitos são consequência de deveres e que, por isso, se vários sujeitos têm o mesmo direito é porque alguém tem o mesmo dever para com todos (3). Braga, talvez por ler apenas uma em cada três palavras dos textos que critica, assumiu este disparate: «parte-se do princípio segundo o qual “igualdade de direitos” significa “igualdade de deveres” — o que é um absurdo: basta verificar, por exemplo, que uma criança não tem direitos proporcionais ou simétricos aos seus deveres.» Não é por terem deveres iguais que os meus filhos têm os mesmos direitos cá em casa. A mais pequena só tem quatro anos e os mais velhos têm catorze, pelo que têm deveres diferentes. Mas eu e a mãe temos os mesmos deveres para com os três e, por isso, os três têm igual direito a comida, educação, carinho, segurança, saúde e afins. Os direitos deles não são iguais por causa dos deveres deles. São iguais por causa dos nossos.

Esta perspectiva é importante para perceber outro disparate, desta vez de Neves: «todos os cidadãos estavam na mesma circunstância perante a lei, pois nenhum […] podia casar com alguém do mesmo sexo [...] Não estava, portanto, em causa qualquer disparidade de direitos entre cidadãos.»(2) É trivial percebermos que este argumento é inválido se substituirmos “nenhum podia casar com alguém do mesmo sexo” por, por exemplo, “nenhum podia casar com alguém de outra raça”. Mas, apesar de ser obviamente inválido, é mais difícil perceber exactamente onde está o problema porque, formulado como Neves o formula, aparenta respeitar um princípio de igualdade de direitos. E o problema está aí. Os direitos não são o fundamental nem um bom ponto de partida. O fundamental são os deveres.

Muita gente julgará que eu tenho o direito de não sofrer discriminação em função da minha raça, sexo ou credo, e que este direito me é inerente, sem depender de mais ninguém. Isto é falso. É perfeitamente legítimo que alguém se recuse a ter relações sexuais comigo por causa do meu sexo, que não queira constituir família comigo por causa da minha raça ou que evite conversar comigo por eu ser ateu. Eu não tenho um direito genérico de não sofrer discriminação. O que existe é, da parte de terceiros que tenham deveres para comigo, muitas vezes o dever de não discriminar por estas razões. Por exemplo, se eu for atropelado, o condutor têm o dever de chamar a ambulância e os médicos o dever de me assistir independentemente do meu sexo, raça ou credo. Uma discriminação destas, neste caso, violaria os meus direitos mas apenas porque violaria um dever que teriam para comigo. É o que acontece com contratos de trabalho, transacções comerciais, candidaturas a cargos eleitos e assim por diante. Nestes casos eu tenho o direito de não ser discriminado pela raça ou sexo porque há, da outra parte, um dever de não discriminar.

É isto que se passa também com o casamento homossexual. O fundamental não são direitos abstractos das pessoas mas sim os deveres concretos de quem concebe, implementa e faz cumprir a legislação. E esses deveres incluem o de não discriminar ninguém quanto à sua raça, credo ou sexo. São deveres tão importantes que até os incluímos na Constituição. É nesse contexto que a regra “só pode casar com alguém de sexo diferente” é tão violadora dos deveres desses agentes – e, por isso, dos direitos dos sujeitos – como seriam as regras “só pode casar com alguém da mesma raça” ou “não pode casar com alguém de religião diferente”. O legislador, o juiz, o polícia e o notário têm todos o dever de não fazer distinção quanto ao sexo no exercício das suas profissões, tal como têm o dever de não distinguir raças ou credos, e é desse dever de tratar todos por igual que surge a igualdade de direitos nestas matérias. Uma lei que proíba o casamento de duas pessoas do mesmo sexo viola os direitos dessas pessoas porque os agentes do Estado têm o dever moral, profissional e constitucional de não discriminar desta forma as pessoas a quem aplicam a lei. E é só isto. Toda conversa da santidade do matrimónio, tradição, biologia da reprodução ou significado do casamento é irrelevante porque a única coisa aqui em causa são os deveres profissionais de funcionários públicos. Mais nada.

1- Perspectivas, Igualdade para todos, para que nós sejamos superiores
2- DN, A frágil civilização
3- Treta da semana (atrasada): direitos e racionais.

domingo, junho 28, 2015

Treta da semana (atrasada): os caloteiros.

Muita gente acha que o problema da Grécia, e da dívida pública em geral, é que uns gastaram e agora querem que os outros paguem. Como se a zona Euro fosse uma jantarada e os gregos, depois de encherem a pança, quisessem ir embora deixando os outros a pagar a conta. A realidade é mais complicada e, para ter uma ideia melhor do que se passa, é preciso compreender como funcionam os bancos. Aqui vai uma história sobre isso.

O que mais distingue um banco de outras instituições é que, quando emprestamos dinheiro ao banco, toda a gente assume que ainda o temos. Está “depositado”. Assim, se eu for um banco e a Ana me der 100€, a Ana continua a ter 100€. Estão “depositados”. Mas eu tenho os 100€ da Ana e, se o Bruno quiser comprar uma coisa à Carla, eu posso emprestar-lhe os 100€ da Ana. A juros, é claro. O Bruno paga à Carla e a Carla deposita os 100€ que recebeu do Bruno. Ficam novamente comigo. Eu agora empresto esses 100€ ao David, também a juros, ele paga à Elsa, ela deposita-os aqui e assim por diante. É fácil perceber como eu posso ganhar bastante com isto. À conta dos 100€ da Ana, não só a Carla, a Elsa e quem mais calhar têm as contas recheadas no banco (eu) como eu estou a receber juros de uma data de gente com dívidas. À parte do requisito de reservar uma pequena fracção do dinheiro depositado, é assim que os bancos funcionam e é assim que, literalmente, fazem dinheiro.

Se alguém quer levantar parte do seu dinheiro e eu tiver tudo emprestado a render juros posso recorrer ao Zé. O Zé é o banco central e só empresta dinheiro a bancos como eu, a prazos curtos e juros baixos, para desenrascar nestas situações. E o Zé pode sempre emprestar dinheiro porque é o Zé que define o dinheiro. O Zé também controla um pouco a festa ajustando os juros que me cobra mas, seja como for, quanto mais gente puser cá dinheiro e quanto mais do dinheiro dos outros eu emprestar mais vai pingando para mim. Por isso, tenho todo o interesse em emprestar, emprestar e emprestar. O meu trabalho é criar devedores.

Mais cedo ou mais tarde, a coisa corre mal. O Fernando pediu-me 100€, inicialmente. Eu sabia que o Fernando não era de confiança mas sempre era mais um a pingar. Quando chegou a altura de pagar, como ele não tinha dinheiro, emprestei-lhe 150€ para me pagar o que devia e os juros. Agora está a dever-me 200€ e precisa de outro empréstimo para rolar a dívida. Mas a coisa com o crédito subprime nos EUA correu-me mal e agora preciso que ele me pague já tudo. Além disso, o pessoal anda a desconfiar que o Fernando se endividou demais e começam a ter receio de deixar o dinheiro comigo. Estou tramado se me vêm todos bater à porta a pedir o dinheiro que eu não tenho porque está todo a render em empréstimos.

Felizmente, a Dona Maria é autoritária e as pessoas fazem o que ela diz, por medo, respeito ou hábito. Como a senhora gosta de dinheiro, facilmente arranjo com ela uma solução. Ela diz a todos que o Fernando se portou muito mal e agora precisa de um resgate. Além disso, anda muita gente a viver acima das suas possibilidades, por isso toca a fazer uma vaquinha para pagar as dívidas do Fernando. Em compensação, o Fernando vai ter de engraxar os sapatos a todos e lavar-lhes a loiça até lhes pagar o que deve. E com orelhas de burro, para aprender. Assim, todos juntam o que têm e entregam-me os 200€ que o Fernando me devia, mais um pouco para custos de processamento, consultoria, juros de mora e afins, e fica tudo bem. Tudo bem para mim, é claro, porque agora estão eles entalados com a dívida do Fernando. O Fernando é parcialmente culpado, é inegável. Mas não é o único culpado. Eu andei a lucrar arriscando o dinheiro dos outros e a Dona Maria, que levou a sua parte, ajudou-me a embarretar o resto do pessoal que, de outra forma, não teria nada que ver com o assunto.

Em traços gerais, e a menos do nome dos personagens e da minha participação (infelizmente, não sou um banco privado) foi isto que aconteceu na Europa. Nos EUA, o Zé resolveu parte do problema dando dinheiro aos bancos. O Zé da Europa não pode fazer isso porque, ideia dos alemães, tem de manter a inflação a 2% mesmo com a casa a arder. Por isso, por cá, foi a Dona Maria que resolveu a coisa. Deu uns puxões de orelhas aos meninos com mais dívidas, transferiu para os bancos privados o dinheiro dos outros e agora praticamente todos os países da UE estão endividados sem ninguém perceber a quem é que se deve tanto dinheiro. Ou melhor, quase ninguém. Há sempre uns que percebem tudo desde o início e até andam bastante satisfeitos com o resultado. O gráfico abaixo mostra a amarelo vómito a evolução da riqueza mundial mediana, em percentagem, em relação à riqueza mundial mediana em 2008. A roxo está o mesmo indicador, mas para a riqueza mínima no grupo dos 10% mais ricos. E a azul a riqueza mínima para os 1% mais ricos do mundo. Apesar de alegarem que a crise foi causada por políticas socialistas que esbanjaram dinheiro com os pobres, os mais ricos têm enriquecido consistentemente quase 5% ao ano enquanto os remediados estão de volta a 2008. E a festa continua.



1: Adaptado do Credit Suisse Global Wealth Report 2014 – Economics

Treta da semana (atrasada): direitos e racionais.

Gonçalo Portocarrero de Almada defende que os caracóis não têm direitos. Nisso, estamos de acordo. Mas, quando tenta justificar porquê, lá se vai a nossa breve convergência. Escreve Almada que: «A polémica questão dos direitos dos animais baseia-se num preconceito: o de que eles são como nós [...]. É verdade que algumas pessoas, de tão brutas, parecem meros animais e alguns animais, ditos irracionais, parecem espertos e afectuosos. Mas são aparências que iludem, porque a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo.»(1) Objectivamente, Almada está enganado. A diferença entre um chimpanzé e um humano é minúscula quando comparada à que separa o símio de uma aranha, por exemplo. Mais ainda, nós e os restantes primatas estamos todos equidistantes das aranhas. Mas o problema principal não são os factos. É o raciocínio acerca dos valores.

Eu não defendo que os animais têm direitos por serem “como nós”. Seria arrogante, e arbitrário, usar-me como bitola para decidir onde há ou não há direitos. Além disso, os direitos não são o fundamento da ética. São mera consequência dos deveres. A ética não começa na pergunta “que direitos tenho?” Começa na pergunta “como devo agir?” Eu defendo que a ética assenta na compreensão de que os meus actos afectam terceiros e de que isso importa para decidir o que faço. Os resto deriva tudo daí, incluindo os direitos de cada um, que não são mais que deveres que outros têm para consigo. Numa ilha deserta ninguém tem direitos.

É por isto que eu acho que um gato tem o direito de não ser queimado vivo. Não é algo inerente ao gato em si. Se um raio causa um incêndio na floresta e o gato morre queimado não há qualquer violação de direitos. Nem se for um gato nem se for eu. Mas qualquer ser consciente dos seus actos, que compreenda o sofrimento do gato e que tenha a noção ética do dever tem o dever de não queimar o gato. O direito do gato é consequência dos deveres éticos de qualquer agente moral que pondere agir sobre o gato. Ou seja, o gato não tem direitos por ser “como nós” mas por nós sermos agentes morais conscientes dos nossos deveres.

É também por isto que o caracol não tem direitos. Sendo desprovido de subjectividade, é-lhe indiferente o que lhe possam fazer e, por isso, as consequências para o caracol não suscitam deveres. Pode haver deveres relacionados com o caracol. Por exemplo, o dever de não extinguir as espécies de caracol pelo efeito que isso terá em gerações futuras de apreciadores de caracóis. Mas a esse dever corresponde um direito dessas gerações futuras e não propriamente um direito dos caracóis. Sim, é verdade. Por termos deveres para com as gerações futuras, essas pessoas têm direitos mesmo antes de existirem. Será um ponto importante num próximo post mas, neste, deixo o assunto por aqui e passo a outro.

A ideia de que os direitos devem ser concedidos na medida em que o visado é “como nós” é um erro moral que inquina muitas opiniões religiosas. Por exemplo, a igualdade de direitos entre homens e mulheres ou o direito ao casamento homossexual. Católicos como Almada defendem que as mulheres não têm o mesmo direito ao sacerdócio que têm os homens porque as mulheres não são como os homens, ou que duas pessoas do mesmo sexo não têm o direito de se casarem porque não são como uma parelha de pessoas de sexo diferente. Mas esta ética assente na métrica de diferenças e semelhanças é um disparate. A igualdade de direitos não assenta em qualquer igualdade entre as pessoas, até porque não há ninguém que seja “como nós”. Cada um de nós é um indivíduo único e diferente dos demais. A igualdade nesses direitos é consequência de cada um de nós ter certos deveres para com qualquer um dos outros, seja macho, fêmea, alto, baixo, homo, hetero, católico ou ateu.

Proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo restringe a liberdade dessas pessoas sem nenhum benefício que o compense. Proibir as mulheres de celebrar missa ou de aceder aos cargos de chefia numa hierarquia religiosa também lhes limita as opções sem que nada de eticamente fundamentado justifique essa restrição. É certo que há pessoas que ficam muito incomodadas com a possibilidade de, algures, dois homens casarem um com o outro ou uma mulher celebrar uma missa. Mas esse desconforto é claramente o mal menor. Comparando as alternativas, proibir ou não proibir, é fácil perceber que temos um dever ético de deixar essas escolhas a essas pessoas. Não por serem iguais “a nós” mas pelo nosso dever de respeitar as diferenças dos outros.

Este é um dos maiores pecados da (i)moralidade religiosa e uma das razões pelas quais é falsa a pretensão religiosa de ser fundamento para a moral. Cada religião assenta as suas normas numa ideia de “como nós”, arbitrária e artificial, que depois quer impor a todos os outros. Cada religião quer ser pastora de um rebanho de ovelhas que sejam todas umas como as outras. Mas as tretas da lei natural, do que os deuses querem ou deixam de querer e demais idiossincrasias que tenham ficado nos livros só porque algum fanático as lá pôs não são um fundamento razoável para a ética. A ética não tem nada que ver com conformidade ou ser “como nós”. A ética vem da compreensão de que os outros não são eu e de que ninguém é bitola pela qual medir o que faz aos outros. O propósito da ética é ensinar-nos a conviver com as nossas diferenças e não o de nos levar todos pelo mesmo caminho. A ética não é um pastor. É uma professora e, infelizmente para os pastores como Almada, é uma chatice quando as ovelhas aprendem a pensar por si.

1- Voz da Verdade, Os direitos dos caracóis

quinta-feira, junho 25, 2015

Ceteris paribus.

O Pedro Romano publicou (mais) um bom post sobre a trapalhada económica que se vive na Europa. Sintetizando, «No final de 2014, a Grécia tinha uma situação orçamental controlada [e] não tinha de carregar mais no travão para atingir saldos primários na casa dos 4-5% do PIB. As taxas de juro estavam altas, mas em valores minimamente comportáveis». Porém, «O Syriza […] ostracizou os credores, o que fez subir os juros e tornou o país ainda mais dependente da Troika; e colocou em cima da mesa a possibilidade do Grexit, que gerou uma fuga de capitais cuja principal consequência foi tornar um crescimento robusto de 2,9% numa míngua pouco acima dos 0%»(1). O Pedro explica estas coisas sempre de forma clara e bem fundamentada e estas análises são úteis porque permitem quantificar os efeitos das várias alternativas. Olhando para as finanças da Grécia, e assumindo que o resto permaneceria constante, parece que o Syriza fez asneira. O problema é que, para se poder quantificar e prever algo a partir do modelo, é preciso assumir que o que não está quantificado no modelo ou não importa ou é constante. Mas isso nem sempre é verdade e, em casos extremos, até costuma ser falso.

Vamos imaginar que o Pedro tem problemas orçamentais e dívidas. A cada dia que passa pede mais dinheiro emprestado e os amigos já começam a torcer o nariz. Tem de consolidar as suas finanças. Se o Pedro decidir deixar de ir ao cinema podemos usar um modelo quantitativo considerando o que o Pedro ganha e o que o Pedro gasta e comparar com o que aconteceria se ele continuasse a ir ao cinema. Isso é fiável porque podemos assumir que, além do que poupa em deslocações, pipocas e bilhetes, mais nada de relevante vai mudar na vida do Pedro por deixar de ir ao cinema. Mas vamos imaginar que isso não chega para acertar as contas e o Pedro decide também não comprar mais comida. Na primeira semana come o que tem na dispensa e a coisa corre bem. Vai rolando as dívidas, os amigos começam a confiar mais nele por devolver algum dinheiro e vai-se aguentando. À parte do pão bolorento e a comida de gato que tem de comer no Domingo, é uma boa semana. A segunda semana é pior. Financeiramente, o Pedro consegue manter a consolidação. Mas jantar chá sem açúcar sete dias de seguida começa a dar-lhe muito apetite. Na terceira semana o Pedro desiste. Vai às compras, enche a barriga e aborrece os amigos porque já não tem o dinheiro que lhes prometeu devolver nessa semana. Do ponto de vista financeiro parece ser uma má opção. Quando tudo estava a correr bem e já nem era preciso «carregar mais no travão para atingir» os objectivos orçamentais, o Pedro deu numa de Syriza e estragou tudo. Agora terá de aguentar mais austeridade ainda para conseguir pagar aos amigos. O erro dessa análise é que a ideia de que bastaria manter as coisas como estavam assume que tudo o que estava fora do modelo se manteria tão constante como os aspectos orçamentas que o modelo considerava. O que é falso porque, mais cedo ou mais tarde, o Pedro tem de comer.

Parafraseando Passos Coelho, o Pedro não é a Grécia. Mas a situação é análoga no que importa. Quando se corta subsídios de desemprego e se aumenta o desemprego, as pessoas ainda se aguentam por uns tempos vivendo das poupanças ou da ajuda de familiares. O mesmo com instituições como hospitais e universidades. Adia-se as obras menos urgentes. Se metade das casas de banho estão avariadas usa-se as outras. Se não há compressas esterilizadas do tamanho certo corta-se as maiores. E assim por diante. Mas, nestas circunstâncias, o que está fora do modelo financeiro deixa de ser constante. É variável e com efeitos potencialmente perigosos. Por exemplo, quando os desempregados começam a ficar sem meios de se sustentarem é inevitável que a criminalidade aumente, especialmente com o desemprego jovem rondando os 50%. E se o crime ultrapassa a capacidade da polícia o reprimir, rapidamente dispara para níveis incomportáveis. A receita do Estado também pode cair a pique se as pessoas perdem a confiança no Estado e o medo de serem sancionadas por não pagar impostos. Ao contrário do que acontece quando se decide poupar deixando de ir ao cinema, o nível de austeridade imposto à Grécia – e a Portugal – desencadeia processos caóticos que podem deitar tudo a perder mesmo sem «carregar mais no travão».

Neste momento, há uma data de gente séria no ECB, na UE e no FMI a ponderar gráficos e modelos como os do Pedro, mas muito mais complicados, onde contabilizam todos os euros e com os quais traçam todos os cenários quantificáveis. E, em todos estes modelos, assumem que tudo o que está fora do modelo se irá manter constante. Em geral, isto é o mais correcto porque costuma ser verdade – esses modelos incluem muitas variáveis e, normalmente, abrangem tudo o que importa – e porque não se pode prever nada sem assumir que o modelo contém tudo o que varia e é relevante. Mas, neste caso, a premissa é falsa e enquanto os senhores engravatados traçam gráficos e discutem cêntimos corremos o risco, cada vez maior, de um maluco incendiar o parlamento, ou um grupo de fascistas desatar a partir lojas, ou algum disparate do género, e se desencadear uma chatice das grandes. Como já aconteceu várias vezes na Europa. Infelizmente, parece que a missão mais importante e fundamental da União Europeia agora é manter a inflação nos 2% em vez de evitar que essas desgraças se repitam.

1- Desvio Colossal, Pior era impossível

domingo, junho 21, 2015

Treta da semana (atrasada): Não percebe.

Gabriel Silva escreveu no Blasfémias que «Não se percebe» porque há tantas greves no Metro de Lisboa. Já contam 47 em cinco anos. «Mas se uma empresa é assim tão má que tenha justificado em 5 anos tanta greve, não será mesmo melhor mudar de patrões? Não deveriam as 46 greves anteriores serem um poderoso argumento para os trabalhadores querem a concessão a outros gestores?» (1) Sim. É razoável assumir que o objectivo da greve é mudar algo que está mal na gestão. Mas percebe-se que a greve seja contra a concessão da exploração a privados se se perceber que o problema está precisamente nesse tipo de gestão.

Em muitos casos, vender bens ou serviços úteis é lucrativo. Quando o útil e o rentável andam de mãos dadas, a iniciativa privada é a melhor forma de distribuir o esforço e os proveitos. Basta deixar cada um decidir por si como quer aplicar o seu dinheiro, seja a adquirir o que deseja seja a tentar ficar mais rico, e a coisa resolve-se pelo melhor. É o caso de barbearias, fábricas de bolachas, cinemas e lojas de pronto a vestir, por exemplo. Mas, noutros casos – tendencialmente nas coisas mais importantes – acontece o contrário e o lucro é avesso à utilidade. Hospitais, escolas, esquadras de polícia e tribunais são alguns exemplos de actividades nas quais ter o lucro como principal objectivo degradaria muito a utilidade do serviço.

O metropolitano de Lisboa é um serviço deste tipo. Beneficia muito mais gente do que apenas quem paga bilhetes. Beneficia estabelecimentos aonde clientes se desloquem de Metro, empresas com empregados que tenham de atravessar Lisboa para trabalhar e toda a gente que se desloque em Lisboa, mesmo que de autocarro ou de automóvel. Além disso, este benefício todo não pode ser financiado apenas pelos bilhetes de quem viaja de Metro. Não chega e, se se aumenta o preço dos bilhetes, menos gente anda de Metro e lá se vai o benefício. Tal como escolas, esquadras e hospitais, os sistemas de transportes colectivos devem ser pagos principalmente pelos impostos para que o custo possa ser melhor repartido, e de forma mais justa, por todos aqueles que beneficiam indirectamente destes serviços e infraestrutura.

No entanto, nestes últimos anos o Metro de Lisboa tem sido gerido como se fosse uma loja de roupa ou um salão de jogos, dando primazia à diferença entre o dinheiro que entra e o que sai. Isto é mau para todos e só se agrava pela concessão da exploração comercial a privados. É importante perceber que grande parte da despesa, incluindo juros das dívidas contraídas para a construção das linhas, obras e até a manutenção dos comboios, continua a cargo do Estado. Aos privados caberá a tarefa de, em regime de exclusividade, cobrar bilhetes, gerir os trabalhadores e meter a diferença ao bolso. Assume-se que o Metro funcionará melhor se o objectivo do gestor for maximizar o lucro dos accionistas em vez optimizar o transporte de pessoas mas esta premissa é muito duvidosa.

É claro que as greves do Metro não se devem somente – nem principalmente – ao interesse público. Há outros factores importantes, desde a influência da CGTP aos receios dos trabalhadores, que serão as primeiras vítimas da conversão deste serviço público em negócio privado. Mas, em todo o caso, o problema fundamental é o de que a empresa privada, visando o lucro dos accionistas, é muito diferente da empresa pública criada para prestar um serviço à população. O transtorno causado por cada greve do Metro devia tornar claro para todos de que lado da divisória esta empresa deveria estar.

Infelizmente, muita gente partilha a perplexidade do Gabriel Silva e não percebe esta diferença. Julgam que o lucro é o único critério para avaliar uma empresa. Mas isso só serve para empresas que não façam nada de essencial. Essas é que podem ficar nas mãos de privados livres de decidir como as querem gerir e de as encerrar se não derem lucro. Com serviços importantes não se pode fazer o mesmo, e isto é um factor importante na atractividade de empresas como a TAP, a Carris ou o Metro. Os investidores privados sabem que, mesmo que não consigam tirar dividendos dessas empresas abandonando a sua missão original e orientando-as para o lucro, se a coisa der para o torto o Estado terá de comprar de volta as empresas ou as concessões que vendeu porque não são empresas que se possa deixar falir. Não é difícil de perceber porque é que os trabalhadores não querem que a empresa fique a cargo de quem até pode lucrar afundando-a. Nós também não devíamos estar satisfeitos com estas privatizações.

1- Gabriel Silva, Não se percebe

WFC Out of Love, 2: o vídeo

Como prometido, aqui está o vídeo da minha apresentação no World Failurist Congress (1) do passado dia 13. Demorei mais a pôr online porque agora o YouTube não converte vídeos em formato Ogg, por isso tive de procurar alternativas.

Obrigado à Sónia Fernandes pelo convite, pela simpatia e pelo trabalho todo que teve a organizar o evento. Obrigado também a todos os que a ajudaram. Não desmistifiquei nada mas foi divertido.

2015-WFC-OoL-LK from Ludwig Krippahl on Vimeo.



1- WFC, Out of Love

domingo, junho 14, 2015

Treta da semana (atrasada): paroquial.

O “desafio do Charlie Charlie” consiste em equilibrar um lápis em cima de outro, em cruz, e depois invocar o espírito do tal Charlie que, se alinhar na brincadeira, fará mexer o lápis de cima. Este alegado desafio tem se tornado popular, compreensivelmente mais popular do que usar só um lápis e esperar que o Charlie escreva qualquer coisa. Apesar do sistema dos lápis cruzados ser menos informativo, como o lápis de cima se mexe ao mais leve sopro dá ideia de resultar melhor do que se fosse preciso que espíritos e demónios existissem mesmo (1). Como escreve Gonçalo Portocarrero de Almada, «Que o demónio existe, não é pacífico. Muitas pessoas o negam, remetendo a sua existência para o imaginário de antigas fábulas ou de inverosímeis mitos religiosos.» No entanto, Almada defende que «demónios [...] existem e actuam, mesmo que neles não se acredite» e adverte que, «Seja ele um Charlie mexicano, ou francês, o melhor é não lhe dar troco»(2).

Há vários aspectos merecedores de crítica nesta posição defendida por Almada e muitos sacerdotes e fiéis católicos. Estas tretas dos demónios são mesmo fábulas antigas e mitos inverosímeis, pelo que é disparatado defender que tais coisas existem com base apenas em textos escritos por quem vivia no tempo dessas fábulas e mitos. É também ridículo que adultos com formação, numa sociedade moderna, receiem que equilibrar um lápis no outro leve a possessão demoníaca. Mas hoje vou deixar esses aspectos de parte e focar um terceiro que também me faz espécie. A tese dos demónios que a Igreja Católica defende é de um paroquialismo tal que é evidente ter sido inventada para, e por, pessoas que não conheciam mais do mundo do que a aldeia onde viviam e o campo onde pastavam as cabras.

Reza esta história que um deus omnipotente criou todo este universo e também seres espirituais «dotados de inteligência e vontade [...] criaturas pessoais e imortais» que «Excedem em perfeição todas as criaturas visíveis»(3). São os anjos, os mensageiro desse deus. Mas um anjo decidiu ser mau. É estranho que uma criatura espiritual, criada por um deus perfeito e excedendo em perfeição tudo o que é visível, acabe por dar para o torto como qualquer desgraçado que tenha sido maltratado pelos pais ou nascido com tendências psicopatas. Mas admitamos que sim. Siga a história. Temos então uma criatura espiritual, mais perfeita que tudo o que é visível, mas que é má. O que é que faz então essa criatura, com tal poder e perfeição, para alcançar os seus desígnios maléficos? Segundo Almada, cria em nós tentações e faz com «que uma pessoa, que não sabe latim, se expresse nessa língua, ou que revele dados da consciência de alguém que só o próprio, Deus e, pelos vistos, o demónio conhecem». E é isso.

Este aspecto das religiões é mais uma boa razão para ser ateu. O universo tem treze mil milhões de anos, milhões de galáxias, cada uma com centenas de milhões de estrelas e, alegadamente, os seres mais poderosos nisto tudo comportam-se como se fossem pastores da idade do bronze com poderes mágicos. O deus que cria galáxias com um pensamento anda terrivelmente preocupado com a possibilidade do Zézinho se masturbar no duche ou da Maria casar com a Isabel. E o príncipe do mal, criatura eterna e perfeita, viu as primeiras estrelas nascerem, a Terra formar-se e os dinossauros extinguirem-se enquanto esperava por esta espécie de mamífero para agora pôr umas freiras a dizer palavrões, a vizinha do quinto a falar Latim ou o Sr. Sousa a ter um caso com a secretária. Isto ultrapassa até os sérios problemas da falta de evidências, das conclusões precipitadas e das más explicações que assolam a generalidade dos relatos religiosos. Isto já é gozar com as pessoas.

1- Livescience, Charlie Charlie Challenge: Can You Really Summon a Demon?
2- Gonçalo Portocarrero de Almada, Coisas do diabo
3- Vaticano, Catecismo

Primárias.

Hoje é o último dia para as inscrições nas primárias do LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR (1). Não é preciso ser subscritor, apoiante ou membro do partido para ajudar a escolher as suas listas de candidatos à Assembleia da República, no próximo fim de semana. Para poder votar basta concordar com a orientação política do partido e preencher o formulário (2).

Penso que isto é importante porque defende um requisito fundamental da democracia representativa que mais nenhum partido respeita. Qualquer pessoa dever ter o direito de se candidatar a representar os outros na Assembleia da República e todos os representados devem ter o direito de escolher quem os representa. Nenhum dos outros partidos respeita isto. Nesses, é sempre a direcção do partido quem escolhe os candidatos. Aos eleitores que simpatizem com esses partidos cabe apenas dizer se comem o que lhes põem à frente ou se preferem abster-se. E nunca se poderão candidatar sem o favor dos caciques.

Por outro lado, isto é importante também por razões práticas. Não se trata apenas de uma questão teórica e abstracta acerca dos fundamentos da democracia que, provavelmente, muitos descartarão com um encolher de ombros. É também o remédio para problemas concretos como a manipulação das listas dos círculos eleitorais (3) ou a eleição de gente como Miguel Relvas (4), que foi eleito seis vezes deputado pelo círculo eleitoral de Santarém (5) mas que muito dificilmente teria conseguido tal feito se tivessem perguntado aos eleitores do PSD se não preferiam ter lá outra pessoa a representá-los.

Mesmo que estejam indecisos em que partido vão votar nas legislativas, e especialmente se estiverem indecisos acerca de votar ou não, experimentem participar nisto. Pelo menos para ver o que é democracia sem aldrabices.

1- Tempo de Avançar, Como Participar.
2- Tempo de Avançar, Formulário de Inscrição.
3- Felisbela Lopes, Deputados paraquedistas
4- Wikipedia, Miguel Relvas
5- Assembleia da República, Miguel Relvas

sábado, junho 13, 2015

WFC Out of Love.

Hoje vou estar no World Failurists Congress, numa sessão dedicada a «desmistificar o Amor e a forma como o pensamos e vivemos.»(1) É na Pensão Amor, em Lisboa, às 18:30, e vou falar sobre a química do amor, entre outras coisas, de moluscos marinhos a pequenos electrodomésticos (de cozinha; não é nada disso que estão a pensar).

PS: Vou gravar a minha apresentação. Depois ponho aqui o vídeo.

1- WFC, Out of Love

sábado, junho 06, 2015

Treta da semana (atrasada): o caracol.

O grupo “Acção Directa” lançou uma «campanha de sensibilização referente ao consumo de caracóis […] em Setembro de 2014», se bem que só agora tenham sido gozados por isso. Parece ser consensual, pelo menos pelas “redes sociais”, que o slogan de «‘Gostava de ser cozido vivo? Eles também não.’»(2) é disparatado. Mas é interessante perceber porquê. Temo que a maior parte das pessoas que classificam isto como disparate não o faça pelas razões certas.

Está certa a ideia de que temos o dever de não causar sofrimento a um animal que tenha uma vida subjectiva, com capacidade para sentir e sofrer. Se fosse com gatos ou cães em vez de caracóis pouca gente faria troça. É isto que fundamenta os direitos dos animais. Um direito não é algo que um indivíduo tenha por si, isoladamente, mas a consequência de deveres que outros tenham para consigo. E se um animal tiver consciência de si próprio e da sua história, então a sua vida vale mais do que a mera soma das suas experiências e até merecerá protecção semelhante à que concedemos aos membros da nossa espécie. O problema ético de matar orangotangos, elefantes ou baleias, por exemplo, vai além do sofrimento que possam sentir no instante em que são mortos. Mas a questão fundamental é se os caracóis estão em alguma destas categorias. E as evidências sugerem que não.

A mera capacidade de responder a algo não é evidência de subjectividade. A torradeira desliga-se quando aquece demais e bactérias afastam-se de substâncias nocivas mas não é plausível que a torradeira sinta calor nem que a bactéria sinta desconforto. A reacção imediata e padronizada a um estímulo pode ser determinada por mecanismos simples. Por exemplo, nós temos uma reacção rápida a estímulos nocivos que faz retirar o membro afectado mesmo antes de tomarmos consciência do que aconteceu. Esta resposta é mediada por circuitos nervosos na medula espinal e é independente da ligação ao cérebro (3). Se, distraído, tocar com a mão no bico do fogão, dou um sacão ao braço antes até de perceber o que fiz. Assim, não é por o caracol recolher o pé quando toca numa superfície quente que podemos concluir que o caracol sente. Pode fazê-lo sem ter mais sensação subjectiva do que uma torradeira.

No outro extremo temos o exemplo do cão com a pata ferida que nos deixa fazer festas na cabeça mas que começa a rosnar se aproximarmos a mão da sua pata. Este nível de integração dos vários sentidos e antecipação da dor não pode ser facilmente explicado por mecanismos inconscientes. É também algo que nós só conseguimos fazer enquanto plenamente conscientes. Por este tipo de indícios é razoável concluir que mamíferos, pássaros, e até alguns invertebrados como o polvo, sentem dor de forma semelhante ao que nós sentimos.

Se um caracol fizesse algo análogo ao que faz o cão seria evidência clara da capacidade para sentir. Mas o comportamento do caracol fica muito aquém disto e é pouco plausível que o caracol seja mais do que uma máquina orgânica porque, tanto quanto sabemos, sentir sai caro. Não é com um punhado de neurónios que se consegue ter essa sensibilidade subjectiva e um caracol tem apenas uns 10 mil neurónios no total, com somente umas centenas de neurónios a controlar comportamentos como os de se alimentar ou fugir para a casca (4). Com um sistema nervoso tão simples e um comportamento que não tira partido de qualquer sensação subjectiva, é pouco plausível que o caracol sinta o que quer que seja. A evolução não faz essas coisas surgirem por magia e sem utilidade.

A campanha contra o caracol cozido não tem fundamento e, por isso, não se preocupem com os caracóis quando forem à cervejaria ou ao supermercado. Mas a falta de fundamento não se deve ao caracol ser um bicho, ou ser pequeno, ou ser gostoso ou ser algo que toda a gente coze e come. Deve-se simplesmente a ser um animal com um sistema nervoso demasiado simples para algo aparentemente tão sofisticado como sentir. Mas outros animais que usamos não têm a mesma sorte e quando forem comer um bitoque ou comprar costeletas já vale a pena pensarem no que estão a fazer.

1- Facebook, Acção Directa, Post de 2 de Junho, 20:27
2- Facebook, Acção Directa, Albuns
3- Wikipedia, Withdrawal reflex 4- Scholarpedia, Lymnaea,

sábado, maio 30, 2015

Treta da semana (atrasada): a derrota.

Apesar da influência da Igreja Católica, a Irlanda aprovou por referendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, considerou o resultado «uma derrota para a humanidade»(1). Infelizmente, não explicou porquê. É consensual que a relação entre duas pessoas que constroem uma vida em conjunto deve ter reconhecimento legal. É também consensual que não se deve discriminar contra alguém em virtude de atributos físicos como a cor da pele* ou o sexo. Por isso, a tese de que duas pessoas devem ser proibidas de casar em virtude do seu sexo teria de ser muito bem justificada. Ratzinger tentou fazê-lo apelando à Bíblia e à doutrina católica e concluindo que não se deve permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque representa a «aprovação de comportamento depravado» e «obscurece valores básicos que pertencem à herança comum da humanidade»(2). No entanto, fundamentar esta tese em crenças religiosas torna-a irrelevante para legislar numa sociedade laica. Além disso, um dos valores básicos mais importantes na nossa sociedade é o de que a lei seja igual para todos, independentemente da raça, credo ou sexo. É legítimo que a Igreja Católica não queira celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo tal como não celebra casamentos entre muçulmanos ou budistas. Mas, tal como isto não diz nada acerca da legislação do casamento entre pessoas de outras religiões, também é irrelevante para a legalização do casamento homossexual.

No Senza Pagare, o João Silveira tenta uma abordagem diferente, menos assente em premissas religiosas. Segundo Silveira, o «debate deste tema na opinião pública está completamente viciado»(3) porque se propagou a ideia de que «A atracção por pessoas do mesmo sexo é genética […] É uma coisa natural e boa em si mesma [ e ] Essa pessoa só será feliz com uma pessoa do mesmo sexo.» Tenta então refutar estas ideias como se a sua refutação bastasse para justificar uma lei que impeça pessoas de se casarem em virtude do seu sexo. Começa por afirmar que «Tanto quanto sabemos a atracção por pessoas do mesmo sexo não é genética.» Além disto carecer de um fundamento empírico e de ser pouco plausível – não deve ser mera coincidência que a maioria das mulheres se sinta atraída por homens e a maioria dos homens sinta atracção por mulheres, sugerindo que os genes têm alguma influência nisto – este ponto é, acima de tudo, irrelevante. O que é relevante é que a orientação sexual não resulta de uma decisão livre. Tanto faz se é por causa dos genes se por cantar músicas do Frozen (4).

Silveira explica que «A atracção por pessoas do mesmo sexo não é natural», apesar da homossexualidade ser comum em muitos animais, «porque nós somos racionais» e porque «o homem foi feito para a mulher a mulher para o homem, isto é visível em primeiro lugar nos nossos corpos». No entanto, a complementaridade geométrica dos órgãos sexuais é visível também nos outros animais e a orientação sexual não tem nada que ver com racionalidade porque não resulta de uma decisão racional. Finalmente, Silveira alega que «Quem procura a felicidade numa relação com uma pessoa do mesmo sexo está à procura da coisa certa no lugar errado.» É legítimo que Silveira tenha essa opinião mas é apenas a sua opinião. Não justifica que a lei discrimine os nubentes quanto ao seu sexo. Silveira escreve também que «afirmar que quem é contra o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é como se fosse racista é um disparate de todo o tamanho» porque «uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo nasce sempre da vontade dos envolvidos» enquanto que «uma característica física, como por exemplo a cor da pele, não envolve a vontade do visado». Precisamente. O sexo com o qual nascemos também não resulta da nossa vontade, pelo que proibir pessoas de casar por causa do seu sexo é como proibi-las de casar por causa da sua raça. Eticamente, o problema é análogo.

Finalmente, Silveira argumenta que não se deve permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque «um casamento só pode acontecer entre um homem e uma mulher» e «o Estado apenas tem autoridade para legislar o casamento entre duas pessoas de sexo diferente». Mas isto é precisamente o que está em causa. Aparentemente, quando se vê forçado a fundamentar a sua posição, quem defende que se impeça o casamento entre pessoas do mesmo sexo não consegue dizer melhor do que sim porque sim.

Ao contrário de católicos como Silveira, Parolin e Ratzinger, muitos católicos irlandeses perceberam que, no que toca a leis, não importa o que está na Bíblia ou se é pecado um homem ter relações sexuais com outro homem**. O que importa é que a relação entre duas pessoas que vivem em conjunto não se reduz à mera complementaridade genital ou à reprodução. O que a lei deve reconhecer é o afecto, a confiança mútua, a cumplicidade, a partilha e os projectos em comum. No cômputo geral, o que fazem na cama e o que enfiam onde é irrelevante. Além disso, os valores básicos da nossa sociedade são incompatíveis com leis que discriminem as pessoas pelo seu sexo para negar a uns aquilo a que outros têm direito. Silveira alega que «A família sempre foi o último reduto de defesa da liberdade pessoal». É falso. A pessoa é que é o último reduto da liberdade pessoal e o que está aqui em causa é a liberdade de cada pessoa constituir a sua família como bem entender. Mesmo que os silveiras discordem.

* Em alguns estados dos EUA, o casamento interracial foi ilegal até 1967 (Wikipedia).
** A Bíblia é omissa quanto às mulheres.

1 – Guardian, Vatican says Ireland gay marriage vote is 'defeat for humanity'
2 – Staycatholic.com, Truth and Love: The Vatican Document on Same Sex Marriage
3 – Senza Pagare, A batalha contra o "casamento gay" está perdida?
4 – Time, Pastor Claims Frozen Will Turn Your Children Gay.

sábado, maio 23, 2015

Treta da semana (atrasada): aprendendo teosofia.

A leitora mtavares comentou recentemente um post antigo sobre o Centro Lusitano de Unificação Cultural (CLUC). Dizendo-se admiradora do CLUC, aconselhou o «Senhor Ludwig e companhia [...] a pôr alguma ordem nessas ideias , tentando entender ( juntem os neurónios, contei pelo menos três na vossa verborreia) alguns dos preceitos Teosóficos»(1). Apreciando a crítica construtiva, a simpatia e o humor refinado, não resisti seguir o conselho da estimada leitora e tentar aprender algo sobre os tais preceitos Teosóficos, tão importantes que até como adjectivo merecem maiúscula.

O ponto de partida para esta investigação, que tenciono prosseguir enquanto a paciência mo permitir, é o artigo «Adão ou macaco? O darwinismo no centro do furacão?», da autoria de «Humberto Álvares da Costa, Médico Cardiologista; Secretário-Geral da Sociedade Teosófica de Portugal; Redactor-Chefe da revista “Portugal Teosófico”» (2). O autor parece ser perito em teosofia, aborda um tema com o qual tenho alguma familiaridade e, tal como eu, é um «um não-darwinista assumido». Darwin foi um pioneiro na teoria da evolução, fez um trabalho extraordinário e explicou conceitos importantes como a selecção natural e a ideia das espécies como grupos de populações e linhas de descendência em vez de categorias herméticas como os tais “tipos” que ainda hoje baralham os criacionistas. Mas isso foi há século e meio e, entretanto, tem-se avançado muito neste campo. Hoje conhecemos processos moleculares que Darwin nem imaginava e temos modelos quantitativos rigorosos daquilo que ele apenas pôde conceber de forma qualitativa e vaga. Por muito meritórios que sejam os pioneiros, ao desbravar novos caminhos para o conhecimento tornam inevitável que as suas ideias sejam ultrapassadas. Por isso, quem quiser perceber a teoria da evolução século e meio depois de Darwin tem mesmo de ser “não-darwinista”.

No entanto, parece acabar aqui a minha concordância com Costa. Alega que há um «triângulo Deus, Homem e o Universo» no qual «O Homem e o Universo, por analogia, representam os dois pólos da Manifestação, que os cabalistas designaram por: Chokmah ou Sageza e Binah ou Sofia (Ciência, Prudência)» A analogia do problema epistemológico com um triângulo de dois pólos parece-me demasiado confusa. Quanto à teoria da evolução, começa por afirmar que «A Evolução existe em toda a parte, é global: átomos, estrelas, seres vivos… O Cosmos é Evolução», o que é falso porque, no sentido técnico, evolução é a variação na distribuição de características herdadas em populações de entidades que se reproduzem. E Costa aponta como problema principal que «É muito diferente orientar a vida na convicção de que somos animais em luta pela sobrevivência da espécie ou de que somos filhos do Divino.» Mesmo que seja, isto é irrelevante por duas razões. Primeiro, porque o impacto que uma proposição tenha na forma como orientamos a vida não permite, por si só, decidir se é verdadeira ou falsa. Por muito desagradável que seja ter uma doença grave não se justifica concluir daí que o diagnóstico está errado. E, em segundo lugar, a teoria da evolução não implica lutar pela sobrevivência da espécie. A espécie é uma categoria transitória, nada mais que o conjunto de populações de indivíduos, numa dada altura, que se podem cruzar para gerar descendentes férteis. Além disso, a teoria da evolução apenas explica o mecanismo pelo qual surgiram as características que agora temos. Não diz nada acerca do que devemos fazer com elas. Culpar a teoria da evolução por alguém viver como se a sua vida só servisse para perpetuar a espécie é como culpar a química por alguém se suicidar com um tiro na cabeça.

Mas onde divergimos mais é na resposta que Costa dá à questão «como reconhecer a Verdade? O homem médio terá muita dificuldade em aceder-lhe directamente mas tudo o que é fundamental saber foi ensinado, nas religiões e métodos espirituais, por Mestres, cientistas perfeitos.» O problema geral de procurar fontes autoritárias onde assentar o conhecimento merece, pelo menos, um post inteiro. Mas, focando apenas este caso, é de rejeitar a confiança na suposta perfeição de “cientistas” como «Helena P. Blavatsky, a discípula dos Mestres de Sabedoria que foi destacada para repor a Teosofia moderna». Ao contrário da ciência de verdade, a teosofia “moderna” de Blavatsky, de meados do século XIX, nada progrediu desde então. É possível que Blavatsky tenha sido uma cientista perfeita e que, por isso, tenha conseguido criar um corpo de conhecimento completo e totalmente correcto de uma só penada, com «tudo o que é fundamental». Mas o texto de Costa sugere uma alternativa mais plausível. Lamenta Costa que, «Quando Newton morreu, em 1727, os estudos alquímicos foram retirados do espólio e classificados como impublicáveis.» É verdade que o legado de Newton na física é muito mais importante do que o seu trabalho na alquimia. Mas isto não se deve a censura ou discriminação. Deve-se ao trabalho de Newton na física ter aberto caminho para novas aplicações, novas descobertas e novas teorias enquanto que a alquimia nunca passou da cepa torta. A alquimia foi apenas um passo na direcção errada.

Esta é a distinção mais importante. Para desbravar caminho em direcção ao conhecimento é preciso cruzar a especulação com o que se pode observar. Isto conduz a explicações testáveis e acaba por revelar erros que terão de ser corrigidos e lacunas que terão de ser colmatadas. Assim, quem contribua para o conhecimento nunca dará a impressão de ser perfeito. Essa ilusão exige isolar a especulação da realidade de forma a que se possa ignorar erros e confundir ideias infundadas com “Verdade”. É o que fazem astrólogos, teólogos, alquimistas e afins. Pelo que aprendi até agora, é o que a teosofia faz também. E o preço desta aparência de perfeição é não poderem dizer nada que se aproveite.

1- Comentário em Treta da semana: Centro Lusitano de Unificação Cultural.
2- Adão ou macaco? O darwinismo no centro do furacão?

quarta-feira, maio 13, 2015

Boa pergunta.

No Público, o Secretário de Estado da Cultura tentou defender a taxa sobre os suportes digitais invocando a “propriedade intelectual”. Esta frase tortuosa resume a justificação: «Querer retirar a autores e artistas a possibilidade de um controlo da sua propriedade sobre os conteúdos por eles gerados no sistema de distribuição da remuneração da cadeia de valor económico da criação e gestão de conteúdos é contribuir para uma sociedade menos plural e para a crescente concentração do poder de informar e formar nas mãos de poucos.»(1)

A afirmação é falsa porque é precisamente o sistema de monopólios legais sobre a distribuição que concentra o poder nas mãos de poucos, que assim decidem o que é distribuído, quando e como. E não justifica uma taxa sobre o armazenamento digital porque, primeiro, a taxa incide sobre equipamento que serve para imensas coisas, como fazer trabalhos de escola, ler correspondência, guardar fotografias das férias, telefonar à avó, consultar o saldo bancário ou preencher a declaração do IRS, tudo taxado em nome da cópia privada. E, em segundo lugar, porque o suposto direito pelo qual estamos a pagar não existe. Como escreve Barreto Xavier, «A cópia privada, enquanto reprodução feita por quem compra dada obra legalmente, é uma exceção ao direito exclusivo de propriedade de um autor ou artista sobre a sua obra». No entanto, no domínio digital não existe essa excepção porque os esquemas de licenciamento e protecção de cópia impedem o cidadão de fazer cópias legais contra a vontade dos detentores de direitos. Quem reproduz uma obra que adquiriu em suporte digital ou está a violar a lei ou fá-lo com a anuência dos detentores dos direitos exclusivos.

Outro problema no argumento de Barreto Xavier é a confusão entre direitos de propriedade e os monopólios legais a que chama “propriedade intelectual”. É verdade que «ninguém põe em causa os direitos exclusivos sobre determinado bem por parte do seu proprietário.» Mas há uma grande diferença entre ser dono de um objecto e mandar nos outros, mesmo quando se cria algo. Quando alguém se lembrou de atar uma pedra afiada a um pau e fez o primeiro machado, esse machado era seu. Não seria legítimo tirarem-lho ou privarem-no do uso exclusivo desse objecto que criou. Mas daqui não segue que, em virtude de ter sido a primeira pessoa a atar um pau a uma pedra, ganhasse o direito de proibir todos os outros de fazer o mesmo. Além de não ter nada que ver com o direito de propriedade sobre o machado original, tal monopólio sobre os machados seria uma violação dos direitos de propriedade que as outras pessoas teriam sobre os seus paus e as suas pedras. Milhares de anos mais tarde, temos o mesmo problema com este texto. Os meus direitos de propriedade sobre o meu computador permitem-me guardar este texto aqui sem que ninguém o venha cá ler ou apagar, se eu quiser. É o meu computador, em minha casa, por isso aqui mando eu. Mas o monopólio legal sobre a cópia do texto publicado implica que eu possa proibir os leitores de, em suas casas, usar o botão da direita do rato e escolher “guardar como...”. Isto não só ultrapassa os limites dos meus direitos de propriedade como viola claramente os vossos direitos de propriedade. Finalmente, a tese de que isto se justificaria por eu ser o proprietário deste texto em abstracto, separado de qualquer suporte, é disparatada porque não faz sentido ter direitos de propriedade sobre entidades abstractas e é irrelevante porque a lei não me dá direitos de propriedade sobre o texto em abstracto. Por exemplo, não posso proibir que memorizem ou texto ou que o leiam em voz alta. A lei apenas me dá o direito exclusivo de distribuir e copiar o texto e isso não tem nada que ver com direitos de propriedade.

Para justificar a taxa, Barreto Xavier alega também que todos os autores «têm direito a ser remunerados pelas suas criações enquanto sua propriedade». No entanto, não só o direito a remuneração carece de um acordo prévio – se eu tocar música na rua não é por esse trabalho em si que os transeuntes passam a ter a obrigação de me remunerar – como nada disto justifica conceder monopólios e, ainda menos, uma taxa. O cabeleireiro também tem o direito de ser pago pelos seus serviços mas isto não implica o direito a deter um monopólio sobre os caracóis ou a receber uma taxa pelo comércio de pentes e secadores.

Mas o mais importante do texto de Barreto Xavier é a pergunta que ele coloca no início. «Devem os modelos jurídicos, económicos, políticos que conformam uma certa ideia de sociedade continuar a defender a propriedade intelectual ou devemos tornar indiscriminado o acesso a conteúdos até agora protegidos?» Pensemos no caso geral da cultura e do acesso ao conjunto de obras, tradições e conhecimento que a nossa sociedade produz. Pensemos nas escolas, nas bibliotecas, nos museus, nos monumentos e naquilo que uma Secretaria de Estado da Cultura devia fazer em vez de leis parvas como esta. Pensemos em Camões e Eça em vez de só na Madonna e no Quim Barreiros. Pensando nisto parece-me claramente errado discriminar ou restringir o acesso à cultura. É verdade que restrições e taxas podem dar lucro a alguns vendedores, mas o que está em jogo é muito mais importante do que a venda de licenças. Pela primeira vez na história temos os meios tecnológicos para garantir um acesso universal à cultura. Não devemos deixar que um punhado de comerciantes nos impeça de aproveitar esse potencial.

1- Publico, A cópia privada

domingo, maio 10, 2015

Treta da semana (atrasada): os representantes.

Na sexta feira, a maioria PSD e CDS votou novamente a favor da Proposta de Lei 246/XII, estendendo as taxas pela cópia privada ao suporte digital (1). A compensação pela cópia privada, imposta por tratados internacionais de copyright, é supostamente devida pelos danos económicos causados aos detentores dos direitos pela excepção legal ao seu monopólio. Isto acontece com a reprodução analógica, cujos exemplares é legalmente permitido ao comprador copiar, para uso pessoal, mesmo que o detentor de direitos não o autorize. Por exemplo, se eu compro um livro posso tirar fotocópias para uso pessoal e não há meio da editora tornar essa cópia ilegal. Por se assumir que essa excepção ao seu monopólio reduz os lucros do detentor dos direitos de distribuição, pagamos uma taxa pelas fotocópias. Mas, no domínio digital, a lei não permite que se contorne medidas de protecção de cópia sem autorização do detentor do copyright. Por isso, neste domínio, não temos direito à cópia privada, que é uma cópia legal mesmo contra a vontade dos detentores dos direitos. Portanto, seremos taxados por um direito que não podemos exercer. Além disso, e ao contrário das fotocópias, o armazenamento digital que vai ser taxado é necessário para comprar as cópias digitais. Estender a taxa aos discos rígidos estende-a muito além da cópia privada, taxando também o armazenamento de obras compradas e de obras criadas pelo próprio. O disparate é tão óbvio que até o nosso Presidente o percebeu e vetou a proposta. No entanto, com esta votação, será forçado a promulgá-la.

Esta lei é injusta, prejudica a generalidade dos portugueses e nem sequer é formalmente necessária. No Reino Unido, por exemplo, legalizaram recentemente a cópia privada mas decidiram que não havia prejuízo demonstrável e que, por isso, não era necessário compensar nada. Também não é particularmente benéfica para os autores portugueses, visto que a maior parte do dinheiro vai para empresas distribuidoras estrangeiras. Os beneficiários desta lei são praticamente só os tozebritos, aquelas pessoas que controlam os canais tradicionais de distribuição e a gestão deste dinheiro. Estes vão receber dinheiro pela compra de todos os suportes, seja para guardar as fotos das férias, cópias ilegais ou até ficheiros comprados. Entre outros propósitos, esta taxa servirá também para penalizar quem queira aproveitar as novas tecnologias para comercializar as suas obras sem ceder os seus direitos de autor a empresas de distribuição, porque todos os seus clientes terão de pagar taxa à concorrência.

Mas mais preocupante do que a injustiça desta lei é o processo pelo qual foi aprovada. Não é de estranhar que os principais beneficiários da lei, aqueles que gerem as sociedades de cobrança e empresas de distribuição, tenham influência junto do Secretário de Estado da Cultura. Também é compreensível que Barreto Xavier tenha conseguido convencer o Primeiro Ministro a apoiar esta proposta. Afinal, visa encher os bolsos de quem já tem dinheiro e o nosso Primeiro Ministro está sempre receptivo a essas iniciativas. Mas, se bem que não seja ideal propor leis com base no lobbying, amiguismos e favores pessoais, isto não seria um problema sério se depois a proposta precisasse do voto favorável de mais de uma centena de deputados que representassem os interesses dos seus eleitores, votando em consciência, com conhecimento e de acordo com os méritos da proposta. Seria a democracia a funcionar bem. Infelizmente, a nossa funciona muito mal.

O problema é que estes deputados não foram escolhidos pelos eleitores. O factor determinante para chegarem ao cargo foi a posição que lhes atribuíram nas listas de candidatura e essa foi determinada pela direcção do seu partido. Os votos contam pouco e nenhum deputado consegue garantir o lugar por representar bem os seus eleitores. A condição principal para continuarem na Assembleia da República é manterem os lábios em contacto firme com as nádegas de quem manda no partido. Somando a isto a aberração da disciplina de voto e basta meia dúzia de amigos nos sítios certos para se controlar a Assembleia da República.

A aprovação desta lei é um exemplo claro de como os nossos supostos representantes não nos representam, obedecendo apenas aos dirigentes dos partidos e, por meio destes, a pequenos grupos de interesse com os contactos certos. Este parece-me ser o maior problema da nossa democracia. É por causa destas coisas que os eleitores sentem que é fútil votar. É por causa deste sistema que quem é eleito não tem de cumprir o que prometeu. É por causa disto que a alternância dos partidos do governo adianta tão pouco.

A única forma de combater esta doença é votando em que tenha incentivos para representar os eleitores. Por isso, daqui em diante, quando estiver a decidir em quem votar, a primeira pergunta que farei é a quem os deputados que ajudar a eleger ficarão a dever o seu cargo. Se entraram nas listas por uma eleição aberta então posso confiar que, pelo menos, vão tentar representar quem votou neles. Mas se lá estiverem por decisão da direcção do partido então não merecem nem a minha confiança nem o meu voto, porque já sei que não serão os eleitores quem eles irão representar.

1- Exame Informática, Cópia privada: taxas aprovadas hoje com votos de PSD e CDS

sexta-feira, maio 01, 2015

Treta da semana (atrasada): falsidades demagógicas antitaurinas.

Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira fizeram um vídeo (1) apoiando a campanha “Enterrar as Touradas” (2), da associação ANIMAL. Nesta campanha, a associação pede assinaturas para duas petições, uma pela proibição do emprego e assistência de menores nas touradas e outra contra o financiamento público destes espectáculos. A associação PRÓTOIRO reagiu acusando Markl e Pereira de serem “taurofóbicos” e de fazerem «afirmações demagógicas que promovem falsidades e preconceitos contra milhões de aficionados portugueses, num atentado à cultura e liberdade dos portugueses»(3).

Esta acusação de promoção demagógica de falsidades é irónica, além de ridícula, por vir de uma associação que defende a tortura pública dos toiros alegando ser pró-toiro. Ainda por cima, chamam “taurofóbicos” aos que não concordam que espetar ferros em bovinos seja uma entretenga aceitável. Se algo aqui é claramente falsidade demagógica é rotular de «atentado à cultura e liberdade dos portugueses» o apelo à assinatura destas petições, que pecam apenas pela modéstia. Proibir a participação de menores e acabar com o subsídio público às touradas seria tratar a tortura pública dos toiros como se trata o consumo de tabaco ou as apostas, que a lei também tenta vedar a menores e que o Estado não subsidia. E mesmo que se quisesse proibir as touradas, não atentaria mais contra a liberdade do que proibir as lutas de cães, proibição que presumo ser consensual mesmo entre os aficionados da tauromaquia.

Atrás desta demagogia da treta há uma confusão mais substancial. O argumento principal dos defensores da tourada é o de que este passatempo merece um estatuto especial porque faz parte da nossa cultura. A premissa implícita é a de que tudo o que faz parte da cultura é, só por isso, automaticamente aceitável independentemente dos defeitos que tiver. Mas não é a pertença à cultura que torna algo bom. É precisamente o contrário. O que queremos é incluir na nossa cultura aquilo que nos ajude a ser melhores seres humanos, individualmente e colectivamente. É por isso que vamos mudando a nossa cultura. Proibimos o trabalho infantil em favor da escolaridade obrigatória para as crianças. Proibimos a escravatura e consagramos na Constituição liberdades inalienáveis. Proibimos a discriminação e defendemos a igualdade de direitos para pessoas de todas as raças, credos e sexos. Em vez de alegar que a tourada merece um estatuto especial por fazer parte da nossa cultura, os defensores deste espectáculo teriam de demonstrar que a tourada merece fazer parte da nossa cultura. O que não conseguem porque a tourada é uma barbaridade cruel que até repugnaria a maioria dos aficionados se a vítima fosse outro animal qualquer que não aquele a cujo sofrimento o hábito os dessensibilizou.

1- Dailymotion, Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira
2- ANIMAL, Enterrar as touradas
3- PRÓTOIRO, Digo NÃO às mentiras e preconceitos taurofóbicos....