sábado, dezembro 24, 2016

Treta da semana (atrasada): igualdade e liberdade.

If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear. (George Orwell)

Isabel Moreira escreveu que quem julga «que a liberdade de expressão não deve ter limites» não pode ser de esquerda porque, para a esquerda, «o princípio da liberdade articula-se com o princípio da igualdade» (1). Infelizmente, tem razão. A esquerda está cada vez mais dominada pela sanha quase religiosa de reprimir qualquer expressão incómoda. Moreira assegura-nos que «A esquerda não defende que se cale quem diz uma frase que desagrada, só se cala o que é crime». Mas é fácil perceber a vacuidade desta ressalva quando se considera exemplos como a alteração ao artigo 170º do código penal. Este agora pune com um ano de cadeia quem «importunar outra pessoa» com propostas de teor sexual. Não é preciso ameaçar, coagir ou sequer constranger. Basta importunar. Ao contrário do que Moreira alega, estão mesmo a criminalizar frases que desagradam.

Dois equívocos alimentam esta cruzada do politicamente correcto. O primeiro é a confusão entre a liberdade de exprimir opiniões e tudo o que se faça com palavras. É como limitar a liberdade de fazer bricolage porque não se quer deixar matar pessoas à martelada. Matar pessoas não é bricolage. E fazer denúncias falsas, cometer fraude, ameaçar ou coagir não é apenas exprimir uma opinião. Não é por usar o mesmo martelo que se deve pôr tudo no mesmo saco. O equívoco desfaz-se percebendo que a liberdade de expressão é a ausência de restrições impostas em função da opinião que se quer exprimir. Pode-se restringir por outras razões. Gritar “Fogo!” num recinto cheio de gente pode ser proibido por razões de segurança. Escrever um livro sobre a vida íntima de alguém pode ser proibido por respeito pela privacidade dessa pessoa. Mas não se justifica proibir a expressão de uma opinião apenas pela opinião em si.

O outro equívoco está no «princípio da igualdade». No seu sentido histórico, este é o princípio de que todos são iguais perante a lei. Mas esse princípio já está inscrito na nossa lei, é consensual em todo o espectro político e não justifica limitar a liberdade de expressão. Também não faz sentido exigir igualdade entre as pessoas porque somos todos diferentes. Cada indivíduo é único e diferente dos demais. E não existe um dever de tratarmos todos por igual. Nem Moreira tem o dever de me tratar como se eu fosse pai dela nem eu tenho o dever de a tratar como se fosse minha mulher. As relações humanas são discriminatórias por natureza e, na nossa esfera pessoal, todos temos o direito de discriminar pelas razões que quisermos. O único princípio de igualdade que faz sentido é o que fundamenta a igualdade perante a lei: todos devem ser igualmente livres, qualquer que seja a sua raça, sexo, orientação sexual ou opinião.

Este equívocos são fundamentais para esta retórica que tem capturado a esquerda. Por exemplo, «A esquerda, por definição, não absolutiza a liberdade em qualquer dimensão – e por isso também não o faz na liberdade de expressão – porque isso é a base da exploração dos mais fracos, das mulheres, dos pobres, dos negros». Mantendo uma noção confusa de liberdade de expressão, junta-se tudo no mesmo saco e até se faz parecer racional medidas como condenar alguém à prisão se a proposta pela qual importunou foi de teor sexual. Invoca-se a exploração das mulheres e a opressão dos mais fracos e, no meio da confusão, não se percebe onde uma coisa acaba e outra começa. Mas uma reflexão mais cuidada revela que o cu não é as calças. Explorar e oprimir não são o mesmo que exprimir opiniões e punir quem priva os outros da sua liberdade não exige punir quem diz o que pensa. Também é falsa a dicotomia proposta entre igualdade e liberdade de expressão. Pelo princípio da igualdade, todos devemos ser igualmente livres independentemente de quem somos ou do que pensamos. Daqui segue trivialmente que a liberdade de dizermos o que pensamos não deve depender daquilo que pensamos. E isso é a liberdade de expressão.

Escreve Moreira que «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?» A “autocontenção”, sendo auto, não me preocupa. Cada um que faça o que quiser da sua. O que me preocupa é que contenham a opinião dos outros. O princípio da igualdade não diz que temos de ser todos iguais, nem que temos de ter todos a mesma opinião nem que temos de gostar todos por igual de todos os outros. O princípio da igualdade é que não devemos negar liberdades em função daquilo que alguém seja ou pense. Isto vale para o homossexual e para o homófobo, para a feminista e para o machista, para os racistas, os liberais, os de esquerda e direita e até para a Isabel Moreira que acha que ninguém pode ser de esquerda se discordar dela. Todos devem ser igualmente livres de dizer o que pensam. Mas nenhum deve poder calar os outros.

Eu sou mais de esquerda do que de direita porque o valor que dou à liberdade não é compatível com a injustiça económica que a direita implicitamente apoia e defende. Mas esta confusão que Moreira propaga troca a liberdade por uma ideia absurda de igualdade que, na prática, só serve para perseguir os hereges. Muita gente vai nisto por arrasto, levada por esta retórica alarmista que pinta como opressão o respeito pela liberdade do outro. Mas quem lidera a moda deve fazê-lo de propósito e com consciência do mal que está a fazer. Parece-me difícil não perceber estes erros quando se pensa no assunto. O problema é que esta mentalidade de indignação, revolta e vitimização é uma forma fácil de ganhar apoio político. A tentação para se aproveitarem disto é demasiado grande.

1- Expresso, Sabias que és de direita?

13 comentários:

  1. Ludwig, já que baseias parte da tua argumentação na 'lei dos piropos', uma dúvida: não achas que a "importunação sexual" que esse artigo refere é diferente de outros tipos de "importunação", nomeadamente porque, ocorrendo no domínio da sexualidade, pode trazer consigo um espectro de intimidação e/ou ameaça? Não será esse o sentido da lei, e a forma como ela será aplicada num tribunal? E que, sendo assim, deixa de ser uma questão de liberdade de expressão, mas também de salvaguarda da liberdade de outros grupos (de uma miúda ou uma mulher andarem na rua tranquilamente).

    Mesmo que se argumente que essa intimidação / ameaça só exista na cabeça da vítima, mas levando em conta também que há uma série de elementos históricos e culturais que indiciam que as mulheres sofrem com mais frequência assédio ou violência sexual, não serve isso para justificar que se abra uma excepção para este tipo de "importunação"? Percebo que aí se pode discutir que a lei poderia então referir um conceito mais alargado de ameaça, mas talvez por haver um status quo que de facto não é propício às mulheres (v. sentenças absurdamente baixas ou absolvições em casos de assédio sexual em Portugal) se entendeu que esta lei deveria "prevenir" por excesso.

    Se uma miúda de 15 anos ouvir frequentemente no caminho de casa para a escola alguém a dizer-lhe "olha que linda que és, lambia-te essa c*** toda", achas que devemos respeitar a liberdade de expressão desse senhor? Devemos convencê-lo pelo "diálogo" que não devia dizer isso?

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  2. André,

    Eu acho que a intimidação e a ameaça não são formas legítimas de interagir com terceiros e, se necessário, podem ser reprimidas por medidas coercivas como prisão e assim. E se isto for mais frequente no domínio da sexualidade, não me admiraria se houvesse mais punições por intimidação relacionadas com o sexo do que com outras coisas. Igualmente, se as mulheres são mais frequentemente sujeitas a estas pressões, também não me admiraria que houvesse mais vezes penas aplicadas contra homens heterossexuais, em média, do que a pessoas de outros grupos. Esses desvios estatísticos seriam de esperar.

    No entanto, não faz sentido que a lei seja em si discriminatórias e que se puna a mera importunação sexual só porque as mulheres são mais vezes vítimas ou só porque a sexualidade é mais susceptível de ameaças ou assim. Isso é um disparate e, pior ainda, é injusto.

    «Se uma miúda de 15 anos ouvir frequentemente no caminho de casa para a escola alguém a dizer-lhe "olha que linda que és, lambia-te essa c*** toda", achas que devemos respeitar a liberdade de expressão desse senhor?»

    Não. No caso do abuso de crianças, penso que a liberdade da criança tem de ser também considerada tendo em conta que não podemos responsabilizar a criança pela sua própria protecção. Por isso, admito que se possa criminalizar o uso de palavras que possam traumatizar crianças. Além disso, pela sua vulnerabilidade, em muitos casos podemos considerar que a criança pode justificadamente se sentir ameaçada pelos simples facto de um adulto estar a interagir com ela. Portanto, pode ser justificado punir criminalmente quem disser a uma criança que lhe lambia a c*** toda, tal como pode ser justificado punir criminalmente quem disser a uma criança que vai para o inferno se se masturbar ou tantas outras coisas que dizem às crianças e não deviam.

    Mas isto é por serem crianças. O princípio de que a liberdade deve ser repartida igualmente por todos só se aplica entre adultos, que são igualmente responsáveis. Com crianças podemos ter de as privar de certas liberdades e protegê-las especialmente de outras coisas para garantir a oportunidade de se desenvolverem. Por exemplo, não acho que uma criança deva ter a liberdade de comer o que quer, de se deitar às horas que lhe apetecer, de ver os filmes que quiser, etc, tudo coisas que os adultos devem ser livres de fazer à sua responsabilidade.

    No entanto é um erro aplicar a um adulto uma regra destas só porque faz sentido quando imaginamos aplicada a uma criança de 15 anos. Se uma mulher disser a um dos meus filhos que o chupava todo, acho que essa mulher está a cometer um acto ilegítimo e até pode ser razoável puni-la. Mas se me disser isso a mim, eu é que tenho a responsabilidade de lidar com essa situação que, na ausência de alguma ameaça concreta e objectiva (não apenas subjectivamente imaginada por mim) será um exercício legítimo da sua liberdade, ainda que denote má educação.

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  4. Ludwig,

    1) a lei não é descriminatória, ela não distingue entre mulheres e homens (e ainda bem) - não obstante as mulheres serem mais vezes importunadas do que os homens. Ou quando falas em descriminação estás a falar de outra coisa?

    2) concordas que no caso de menores a importunação deve ser crime, pelo carácter de vulnerabilidade, ok (nesses casos específicos reconheces que a lei fazia falta?). E se for uma mulher de 20 anos numa rua estreita, ladeada por 10 homens a dizerem que a lambiam toda, aí já discordas? Já não vês vulnerabilidade?

    3) o que esta lei veio fazer foi colmatar o vazio legal que havia sobre estas situações. No fundo, se substituirmos "importunar" por "assédio" (ou até "stalking"), percebemos porque a lei foi feita. O conceito de ameaça em "assédio" ou "stalking" também pode ser vago, mas é por isso que depois temos um sistema judicial com advogados e juízes.

    4) É que de facto o pior que fizeram a esta lei foi chamar-lhe "lei do piropo". Ela não é sobre isso, e creio que quando for aplicada vai de facto incidir sobre questões de assédio (que não estavam previstas claramente nas leis antigas). Podem provar-me o contrário, mas do que conheço do nosso sistema jurídico, e da nossa sociedade, até arrisco dizer que 99% das mulheres não pensava sequer em por um processo e ir para tribunal por um tipo gritar-lhe "eh boa!", mesmo que metade das mulheres se sintam importunadas. Nem concebo um juiz aplicar uma pena de prisão a essa pessoa.

    5) além de que cabe em tribunal depois provar-se se houve importunação e razão para julgar alguém culpado de um crime. Há uma diferença grande entre eu dizer a uma miúda casualmente numa discoteca algo como "uau, grande corpo", e passar a noite atrás dela a sussurar-lhe obscenidades ao ouvido. Desconfio que nenhum juiz são veria razão para julgar alguém a partir do primeiro exemplo. A simples razão da lei prever figuras como "legítima defesa" ou "estado de necessidade" não significa que eu possa automaticamente matar uma pessoa se me sentir ameaçado fisicamente, etc etc.

    6) Não percebo mesmo porque achas mais importante proteger a liberdade de alguém gritar obscenidades sexuais a todos os dias a uma mulher de 70 anos sempre que vai ao mercado, do que salvaguardar a liberdade dessa pessoa poder andar na rua sem ser importunada por um idiota desses.

    Acho importante que sejamos vigilantes em relação a direitos fundamentais como a liberdade de expressão, e confesso até que há aspectos específicos da lei portuguesa (como a questão das "injúrias") que me fazem alguma comichão, mas neste caso não acho que estamos perante um problema desses (nem em Portugal existe algum tipo de "ditadura do politicamente correcto", mas isso é outra discussão).

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  5. André,

    «1) a lei não é descriminatória, ela não distingue entre mulheres e homens»

    Essa lei é discriminatória. Logo na justificação. A justificação é exclusivamente para proteger mulheres de serem importunadas por propostas que venham de homens. Nunca encontrei um único exemplo em que esta lei fosse apontada como fazendo sentido para proteger homens. Na verdade, os exemplos, como tu também ilustraste, eram quase sempre para proteger crianças do sexo feminino. Crianças, nem sequer adultos...

    Na aplicação isso também se irá reflectir. Um caso comum de importunação por proposta de teor sexual ocorre quando prostitutas tentam aliciar um homem que não está disposto a ser seu cliente. Achas que quem propôs esta lei e quem a vai aplicar está a pensar em usá-la para prender prostitutas? Eu duvido.

    E é uma lei discriminatória também economicamente. Um tipo abastado que tenha dinheiro para um bom advogado nunca vai ser condenado por isto. Um bom advogado facilmente põe em causa o teor sexual da proposta, ou até se houve alguma proposta. Mas agora imagina que a senhora fina está farta do sem abrigo que dorme à porta do prédio e faz queixa dele à polícia dizendo que ele lhe diz coisas nojentas quando ela sai de casa. Mesmo que seja mentira o desgraçado não tem qualquer hipótese. Provavelmente nem vai comparecer no tribunal, vai ser julgado em ausência e só vai saber o que se passa quando o vierem buscar para o pôr na cadeia. O potencial para abusos de uma lei destas é imenso.

    «se for uma mulher de 20 anos numa rua estreita, ladeada por 10 homens a dizerem que a lambiam toda, aí já discordas? Já não vês vulnerabilidade? […] o que esta lei veio fazer foi colmatar o vazio legal que havia sobre estas situações. No fundo, se substituirmos "importunar" por "assédio"»

    Se substituirmos por assédio a lei que já existia. Os artigos 163º a 165º do código penal já contemplavam todos esses casos. O 167º até cobre casos de actos sexuais consentidos por fraude. A única coisa que foi acrescentada foi a importunação quando não há ameaça, nem coação, nem assédio (que implica uma relação de poder sobre a vítima).

    «quando for aplicada vai de facto incidir sobre questões de assédio»

    Não. O assédio já estava previsto. O assédio é um caso especial em que alguém abusa da dependência da vítima (profissional, económica ou outra) para a coagir. Assediar não é importunar, apesar de muita gente agora fazer essa confusão por causa da propaganda que se tem feito nesse sentido...

    «Não percebo mesmo porque achas mais importante proteger a liberdade de alguém gritar obscenidades sexuais a todos os dias a uma mulher de 70 anos sempre que vai ao mercado, do que salvaguardar a liberdade dessa pessoa poder andar na rua sem ser importunada por um idiota desses. »

    Porque há uma grande diferença entre a liberdade de dizer o que se quer dizer, que é realmente uma liberdade do próprio, e a alegada “liberdade” de proibir os outros de dizerem o que nos incomoda, que não é uma liberdade mas sim uma restrição à liberdade dos outros. Há uma grande assimetria nisto e a fasquia para se justificar retirar uma liberdade a alguém tem de ser mais alta do que a mera importunação.

    Nota que também há gente a quem incomoda que os homossexuais andem de mãos dadas, ou que namorados se beijem, ou que mulheres andem na rua de cara destapada. Vamos proibir isso tudo também para não importunar essas pessoas? Se cedes liberdades só porque outros querem não há limite para as cedências...




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  6. Não, não vamos, vamos é tentar que quem historicamente é importunado sexualmente, sem meios de se defender, com contornos de ameaça deixe de o ser. Achava que era simples de perceber, pelos vistos não, mas isso não é progressismo social, pelo contrário, é manter um status quo machista e que despreza a vítima. Não tem nada a ver com liberdade de expressão.

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  7. Para que fique aqui registado...

    "Assediar não é importunar, apesar de muita gente agora fazer essa confusão por causa da propaganda que se tem feito nesse sentido..."

    Consideras realmente que "formular propostas de teor sexual" não entra na definição de assédio? Onde está essa tua definição de assédio que só contempla actos físicos? É isso que nos separa, tu não reconheceres que existe violência psicológica associada À sexualidade?

    Ou seja, não se pode importunar uma mulher apalpando-a na rua, mas dizer-lhe que ela tem boca de broche e que "já lhe apalpavamos o rabo", é ok. É isso?

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  8. André,

    «Assédio sexual é um tipo de coerção de caráter sexual praticada geralmente por uma pessoa em posição hierárquica superior, em relação a um subordinado (mas nem sempre o assédio é empregador - empregado), o contrário também pode acontecer, normalmente em local de trabalho ou ambiente acadêmico.»

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Assédio_sexual

    Assediar é uma forma de coerção. Exige algum poder de forçar o outro. Não é mera importunação. Não é algo que um tipo lá em cima dos andaimes possa fazer à senhora que passa cá em baixo só por dizer “uuuui, és mesmo boa”.

    E se bem que seja a favor de criminalizar que abordem alguém “sem meios de se defender [...] com contornos de ameaça”, isso já era crime antes desta coisa do piropo. Ameaçar é crime. Sempre foi. Nada daqui sugere que se tenha de criminalizar a importunação com propostas de teor sexual, uma lei que foi criada precisamente para os casos em que não havia nem assédio nem ameaça. O tal caso do trolha a dizer “lambia-te toda” a uma mulher adulta que passa na rua, que ganha muito mais do que ele, em plena luz do dia e sem qualquer ameaça credível.

    «Ou seja, não se pode importunar uma mulher apalpando-a na rua, mas dizer-lhe que ela tem boca de broche e que "já lhe apalpavamos o rabo", é ok. É isso?»

    O contacto físico indesejado é uma ingerência na esfera pessoal do outro. Tal como a proibição de dizer certas coisas é uma ingerência na esfera pessoal do outro. No fundo, acho que deve se ilegal riscar-te o carro ou buzinar às duas da manhã mas não deve ser ilegal dizer “só me dá vontade de riscar carros e buzinar às duas da manhã”.

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  9. Ludwig,

    Acho a definição do priberam mais clara: "Conjunto de actos ou ditos com intenções sexuais, geralmente levado a cabo por alguém que se encontra em posição (hierárquica, social, económica, etc.)"; mas para não correr o risco deste ponto ser uma discussão sobre semântica, ,acho que não respondeste à minha pergunta - pode o assédio ser só psicológico?

    É que o artigo do Código Penal que encontrei e que fala em "coacção sexual" (não em coerção) está escrito de forma a que alguém ter sido coagido implica que tenha praticado (ou sido obrigado a praticar) uma acto sexual. Portanto se a tua chefe passar-te um ano a dizer-te que só és promovido se fores para a cama com ela - mas tu não vais - há coerção? Há assédio? Eu acho que há assédio, actos, ou ditos. Mas se achares que isso só por si também é coerção, então neste ponto estamos a discutir semântica.

    "Assediar é uma forma de coerção. Exige algum poder de forçar o outro. Não é mera importunação. Não é algo que um tipo lá em cima dos andaimes possa fazer à senhora que passa cá em baixo só por dizer “uuuui, és mesmo boa”."

    É uma forma, mas não é só. De resto, de acordo - e de aquilo que li do que dizem os juristas sobre a lei, esse tipo dificilmente seria condenado num tribunal. Nem que seja por que literalmente "uuuui, és mesmo boa" não é sequer uma proposta com teor sexual. E a argumentação de que a lei é descriminatória porque favorece os ricos... podiamos dizer isso de todo o sistema jurídico português, não considero um argumento relevante para este caso (embora seja uma tragédia nacional).

    Só para clarificar, estamos a falar da lei que foi elaborada e aprovada pela maioria PSD/CDS, certo? E não da infame "lei do piropo" do Bloco de Esquerda, que não passou.

    "E se bem que seja a favor de criminalizar que abordem alguém “sem meios de se defender [...] com contornos de ameaça”, isso já era crime antes desta coisa do piropo. Ameaçar é crime. Sempre foi.”

    A questão é como defines ameaça. Eu admito, porque um número considerável de mulheres o afirma, e não por experiência própria, que há certo tipo de propostas de teor sexual (não todas, obviamente) que caem numa zona cinzenta de ameaça que não estava prevista pela lei (e o legislador também considerou), esta lei veio colmatar isso.

    Porque considerar que um tipo por a pila de fora no metro é importunação, mas gritar "anda cá minha lindinha para veres o que és bom", não? Ou achas que este tipo de exibicionismo também não devia ser crime? Ou que não é importunar?

    "O tal caso do trolha a dizer “lambia-te toda” a uma mulher adulta que passa na rua, que ganha muito mais do que ele, em plena luz do dia e sem qualquer ameaça credível."

    Não foi esse o exemplo que dei, pelo contrário. E se a mulher ganhar menos que ele e estiver escuro?

    "No fundo, acho que deve se ilegal riscar-te o carro ou buzinar às duas da manhã mas não deve ser ilegal dizer “só me dá vontade de riscar carros e buzinar às duas da manhã”. "

    De acordo. Mas a analogia não é essa. É tu saíres do carro e alguém dizer-te "em noites como estas não há nada melhor que riscar um carro e partir-lhe os vidros". É uma ameaça? É discutível, não estava a falar do teu carro. Mas não é inócuo, e vai deixar-te perturbado. Se calhar vais passar a noite a ir à janela, e algumas pessoas se calhar até chamariam a polícia.

    Mas agora vamos multiplicar isso por tudo o que se relaciona com a importância da intimidade e da sexualidade no ser humano, juntando-lhe a percepção histórica e cultural de insegurança que (bastantes) mulheres têm em relação ao seu corpo e à sua integridade sexual (e a defesa que a sociedade faz dessa mesma integridade quando ela é violada ou ameaçada - i.e. "como estava vestida?"); e se calhar achamos que - para aqueles casos em que as propostas de teor sexual caem num zona cinzenta de ameaça/não-ameaça - vamos colocar as coisas de forma a proteger um pouco mais os alvos (nos casos em que sejam de facto).

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  10. André,

    «A questão é como defines ameaça.»

    Isso não tem nada que ver com esta lei. Há outras que lidam com ameaças. Se fosse necessário clarificar a definição de ameaça teriam alterado essas. Nesta lei o que fizeram foi simplesmente tornar crime punível com um ano de prisão o mero acto de importunar alguém com propostas de teor sexual. E só de teor sexual. Podes importunar pessoas com propostas de teor comercial, andando atrás delas a tentar vender coisas na rua. Podes importunar pessoas com propostas de teor religioso, batendo-lhes à porta no Sábado de manhã para falar de Jesus. Podes importunar pessoas com propostas profissionais, desportivas, lúdicas de diversos tipos, gastronómicas, o que quiseres, que nada disso é crime. Mas se forem de teor sexual e importunarem, podes levar um ano de cadeia.

    «Porque considerar que um tipo por a pila de fora no metro é importunação, mas gritar "anda cá minha lindinha para veres o que és bom", não?»

    Eu acho questionável que se deva criminalizar a pila de fora. Ou as cuecas à mostra. Ou a mulher andar de cara destapada na rua. Porque tudo isso acaba por ser crime apenas porque dizemos que é crime e essa arbitrariedade torna difícil justificar o uso do poder coercivo do Estado. Mas essa lei da pila já estava assim.

    Mas criminalizar o que se diz porque importuna é muito pior. Primeiro porque dizer o que se pensa é uma liberdade que devemos respeitar independentemente daquilo que alguém pensa. Não é porque o que tu dizes importuna que deves ser proibido de o dizer. E, em segundo lugar, porque o crime não é definido pelo acto em si mas pela semântica e interpretação daquilo que foi dito. Mostrar a pila é mostrar a pila. Mas dizer “ui, como eu gostava de te lamber toda” é uma proposta? Ou a mera expressão de um desejo? A expressão de um desejo deve também ser crime? Esta lei junta a repressão arbitrária por mera questão de gosto com todos os problemas da censura, que resultam de reprimir o que se diz em função do que se julga que se quer dizer.

    «Mas agora vamos multiplicar isso por tudo o que se relaciona com a importância da intimidade e da sexualidade no ser humano, juntando-lhe a percepção histórica e cultural de insegurança que (bastantes) mulheres têm em relação ao seu corpo e à sua integridade sexual»

    Como é que julgas que na Arábia Saudita justificam a proibição das mulheres andarem na rua de cara destapada? É exactamente assim. Vamos começar por assumir que uma mulher adulta não é equivalente a um homem adulto e precisa de leis específicas para a proteger. E vamos deitar fora qualquer noção de igualdade perante a lei porque é preciso é leis para proteger as mulheres. Isso é outra coisa fundamentalmente errada com esta lei, e a razão principal para a considerar discriminatória. Esta lei não é para proteger pessoas de importunação sexual. Esta lei é para proteger as mulheres porque se presume que as mulheres adultas estão ao mesmo nível da tal miúda de 15 anos do exemplo que tanto gostam de dar. Isso não é só injusto. É um retrocesso enorme na luta pela igualdade de direitos.

    Importunar com propostas de teor sexual – ou comercial, religioso ou qualquer outra – é má educação. Deve ser tratado como má educação. Qualquer adulto deve saber lidar com isso. Se houver ameaças, coerção, assédio (no verdadeiro sentido e não no sentido abusivo que dão ao termo) então o que Estado intervenha. Mas sem isso não vamos assumir que as mulheres são crianças e especialmente incapazes de lidar com o problema de alguém dizer uma coisa pouco simpática.

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    1. Acho que já estamos a discutir em círculos. Sobre todo esse espaço entre a ameaça e a importunação, ia voltar a falar da questão dos exemplos da linha cinzenta, que não respondeste a nenhum, ou do facto das leis serem interpretadas e aplicadas por um tribunal. Até o facto de haver uma lei sobre a importunação por exibicionismo há anos, não quer dizer que não podes ir nu à tua janela. A própria Constituição que consagra a liberdade de expressão pode (e deve) ser utilizada num tribunal quando se discutir esta lei, o resto é slippery slope argumentativo.
      A comparação da Arábia Saudita é enviesada. Se formos prestar atenção à maneira como países autoritários justificam leis, encontramos imensos pontos comuns com aspectos da nossa sociedade (que não provam nada). Além de que uma mesma premissa pode dar para chegar a muitas conclusões diferentes.
      Mas sobretudo, e talvez aqui esteja a divergência mais profunda, é absurdo achar que a sociedade trata as mulheres de forma igual aos homens, e que as leis não devem ser elementos que combatam essa desigualdade. Ou que esta lei as quer tratar mulheres como miúdas de 15 anos, que é uma maneira simpática de desmereceres a motivação e, algumas vezes, a experiência das próprias mulheres que lutaram por ela. Acho que este é outro ponto fundamental que nos divide e, embora, o debate seja interessante, não creio que se consiga desenvolver a partir daqui, acho que já estamos a repetir argumentos.
      E não que interesse muito, mas sou leitor assíduo do ktreta há anos, e por mais que discorde de alguns posts (não sao muitos, pelo contrário), gosto muito de vir aqui pensar (e ocasionalmente debater). Obrigado pela paciência, bom trabalho, e bom ano.

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  11. André,

    Não estamos a andar em círculos. É uma espiral. Dá muitas voltas mas sempre vai avançando um pouco.

    E, neste momento, temos uma ideia mais clara da nossa divergência. Não é sobre a “linha cinzenta” mas sobre uma diferença fundamental.

    Seres ameaçado, agredido ou coagido impõe-te restrições à tua liberdade. Estas podem ser suficientemente graves para que o Estado te proteja coagindo quem queira fazer tais coisas de forma a dissuadir esses comportamentos.

    Seres incomodado com palavras ou actos que não te agradam é uma coisa diferente. Não é uma imposição de uma restrição à tua liberdade. Pelo contrário, faz parte do exercício da tua liberdade de avaliar subjectivamente o que os outros fazem à tua volta, levando-te a classificar algumas coisas como desejáveis ou indesejáveis, agradáveis ou desagradáveis, etc. Por isso, não se justifica que o Estado intervenha para coagir todos aqueles que possam agir de forma que tu consideres incómoda.

    Esta é a diferença fundamental. É por isso que é aceitável que a lei puna a ameaça, a coação ou até o assédio, no sentido correcto do termo que implica o uso de algum poder sobre o outro para lhe restringir a liberdade. Mas não é aceitável que a lei puna a importunação. Seja de que tipo for, mesmo que seja sexual.

    O exemplo da Arábia Saudita (e muitos outros) não é para mostrar uma linha cinzenta nem um declive escorregadio. É para dar um exemplo claro deste erro fundamental de punir algo apenas porque incomoda. Prender uma mulher que amamente o filho em público por se considerar que importuna sexualmente quem esteja por perto é errado. Não é errado por tu achares que amamentar está bem – o certo e errado não devem vir meramente da tua apreciação subjectiva – mas é errado porque o incómodo que os outros sentem é resultado da sua própria liberdade e não uma restrição imposta à sua liberdade. Cada um é livre de se sentir importunado com o que bem quiser, seja por razões religiosas, culturais ou mera pancada. Mas, precisamente por isso, ninguém deve ser impedido de fazer algo só porque isso importuna outrem.

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    1. Ludwig, ok vamos lá.

      Na generalidade concordo contigo que “ninguém deve ser impedido de fazer algo só porque isso importuna outrem”, como na generalidade também concordo com “uma pessoa deve ser livre para dizer o que pensa”, etc., mas também acho que há limites. É verdade que esses limites não devem ser aplicados de ânimo leve, mas neste caso particular da importunação sexual creio que estamos perante uma dessas situações. Porquê? E é aqui que me estou constantemente a repetir, porque o direito da mulher a andar na rua e sentir-se em segurança sexualmente, sem se sentir intimidada, se sobrepõe ao de alguém a poder importunar. E porque a nossa sociedade, histórica e culturalmente, não tem convivido bem com esse direito.

      Vais várias vezes parar ao argumento de que “não se justifica que o Estado intervenha para coagir todos aqueles que possam agir de forma que tu consideres incómoda”, e tens toda a razão. Eu não quero criminalizar um estranho de me dar umas palmadinhas nas costas e dizer-me “estamos aí a ficar com uma bela barriga”, embora não goste que me toquem e seja sensível a questões relacionadas com o meu peso. Da mesma forma que se o meu vizinho gostar de jardinar nu, eu não vou chamar a polícia para prender o homem porque isso me perturba. Isto são tudo forma de importunação, que NINGUÉM (no seu perfeito juízo) defende que sejam crimes.

      E não. Não é a mesma coisa do que um homem se sentir ofendido por amamentar. Não é a mesma coisa do que pedir às mulheres para taparem a cara. Aliás, acho caricato que os exemplos que arranjas se baseiem em premissas machistas, portanto diametralmente opostas à questão que estamos aqui a discutir, e, para mim, e creio que, felizmente, para o legislador (e a população em geral) - impensáveis.

      Mas, uma mulher que seja apalpada, que entre numa estação de comboios e se detenha perante um homem a masturbar-se ou que ande na rua a ouvir “comia-te toda” ou “rebentava-te essa bilha toda”, saiba que pode chamar um polícia, ou, num caso limite ir a tribunal (limite porque ninguém em seu perfeito juízo deseja passar nem um dia num tribunal português). Já percebi que para ti, esses apalpões, essas palavras, esses gestos são apenas um incómodo. E como tal, decorre que não devem ser crimes. Mas o argumento de muitas mulheres, incluindo as que legislaram é que são uma forma de intimidação. Acho que é fácil perceber este argumento, olhando para as estatísticas de violência sexual, para a forma como os nossos tribunais e leis costuma proteger (ou não) a vítima em casos desses tipos, etc.etc. Mas o teu argumento é que intimidar também não é crime? Ou que as mulheres não têm razão para se sentir intimidadas, e que isto não é intimidação (e com que bases é que tu disputas isso)?

      Nem todas as formas de intimidação serão crime, ou ameaças, mas é este tipo de importunação sexual que a lei pretende criminalizar, e eu acho que bem. É este tipo de acções que o legislador (e a jurisprudência) não considerou que caíam no crime de “coacção sexual”. Se apagares o 170 do Código Penal, estamos a aceitar tudo aquilo que descrevo no parágrafo anterior como sendo “ok” (mas se achares que não, indica-me o artigo do código penal que preveja alguma dessas situações, pf).

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