Contra o naturalismo, parte 2.
O Domingos Faria argumenta, resumidamente, que se evoluímos por processos naturais então é improvável que tenhamos a capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras. Mas, se Deus nos criou e quis que tivéssemos essa capacidade, então já é certo que assim seja. Por isso, defende o Domingos, devemos concluir que Deus existe (1). Além dos problemas que referi no outro post (2), esta abordagem comete um erro estatístico frequente entre os defensores do sobrenatural. Robin Collins, por exemplo, como explica o Pedro Galvão (3), argumenta que um universo com as condições necessárias para que surja a vida é muito mais provável se Deus existir do que se Deus não existir e que, como temos de preferir a hipótese com maior verosimilhança, então Deus existe. O erro aqui é que maximizar a verosimilhança serve apenas para seleccionar hipóteses dentro de um mesmo modelo mas não, em geral, para seleccionar os modelos em si, o que exige considerar também os seus graus de liberdade. Infelizmente, explicar este erro exige remexer em alguns detalhes pouco apetitosos de análise estatística, pelo que aviso o leitor que queira prosseguir que o faz por sua conta e risco.
Vamos supor que atirámos uma moeda ao ar vinte vezes e marcámos com um 1 cada vez que calhou cara e com um 0 cada vez que calhou coroa. O resultado foi:
0 1 1 1 0 1 0 0 0 1 1 1 1 0 1 1 1 1 1 1
Um modelo possível para este processo é que a moeda tem uma probabilidade p de calhar cara, e de 1-p de calhar coroa. Deste modelo, podemos seleccionar hipóteses atribuindo valores ao parâmetro p e, para cada valor de p, podemos calcular a probabilidade de obter a sequência observada. A probabilidade dos dados assumindo a hipótese é a verosimilhança da hipótese e, pelo princípio da máxima verosimilhança, escolhe-se o valor de p que maximiza essa probabilidade. Neste caso, será p=0,7, que é a proporção obtida de caras. No entanto, mesmo maximizando a verosimilhança, a hipótese de que p=0,7 dá uma probabilidade de apenas 1 em 202255 de se obter exactamente aquela sequência de caras e coroas. Apesar de ser a maior, é ainda assim muito pequena.
Conseguimos uma verosimilhança máxima maior do que esta se assumirmos que, a cada lançamento, um duende invisível altera por magia a probabilidade da moeda cair cara, fazendo-a ser 1 ou 0 conforme quiser que calhe cara ou coroa. Desta forma, o modelo terá um parâmetro ajustável para cada lançamento, p1, p2, …, p20, e a hipótese de máxima verosimilhança será a que tem pn = 1 para cada lançamento que calhou cara e pn = 0 para cada lançamento que calhou coroa. Isto dá uma verosimilhança máxima de 100%, uma certeza absoluta e duzentas mil vezes maior do que a da hipótese de máxima verosimilhança dada pelo modelo anterior. No entanto, e espero que não surpreenda o leitor, o modelo do duende não é estatisticamente preferível ao modelo “naturalista”.
Seleccionar entre modelos não é como seleccionar hipóteses dentro de um modelo. Modelos diferentes têm espaços paramétricos diferentes e isto tem de ser descontado. O modelo do duende, por exemplo, permite hipóteses com verosimilhança maior simplesmente porque tem mais parâmetros para ajustar aos dados. Por isso, as hipóteses de máxima verosimilhança não servem, por si, para seleccionar entre dois modelos diferentes. Temos de comparar todas as hipóteses integrando a probabilidade dos dados por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros (4). E, se fizermos isto, a evidência dada pelos lançamentos observados até favorece o primeiro modelo, mesmo apesar da verosimilhança da melhor hipótese do segundo ser duzentas mil vezes maior do que a da melhor hipótese do primeiro*.
A aplicação correcta destes métodos de análise estatística não suporta os argumentos probabilísticos em favor da existência de Deus. O modelo do deus omnipotente tem um espaço de parâmetros com infinitos graus de liberdade. Isto permite ajustar-se com grande verosimilhança a tudo e mais um par de botas mas, ao integrar as probabilidades por esse espaço imenso de parâmetros, o valor cai para zero. Como Hume já tinha dito, também a estatística moderna reitera que um modelo com milagres é um modelo para deitar fora.
Além disso, estes argumentos acerca da probabilidade de Deus tiram da estatística conclusões que esta nem pode dar. No exemplo deste post, mesmo que o resultado favorecesse o segundo modelo, só se poderia concluir que era preciso um parâmetro por lançamento. Nada se poderia concluir acerca de ser um duende, uma fada, um extraterrestre, o vento, ultra-sons ou infinitas outras coisas. Esta é outra diferença entre os modelos naturalistas e os que assumem entidades sobrenaturais. Os modelos naturalistas vão até onde se justifica ir com os dados disponíveis. A moeda tem uma certa probabilidade de calhar cara. Porquê? Não sabemos. Isso teria de se ver com outras experiências que não apenas contando caras e coroas. A física assume certas constantes universais. Porquê esses valores e não outros? É uma pergunta interessante mas é trabalho em curso. Em contraste, os modelos sobrenaturais presumem sempre muito mais do que aquilo que é justificável. O Domingos, por exemplo, não só conclui que a nossa capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras vem especificamente do deus cristão, mas propõe até detalhes como «se Deus existe e se a história cristã é verdadeira, então também é provável que Deus tenha criado pessoas humanas e não-humanas com livre-arbítrio [e] algumas pessoas, como Satanás, rebelaram-se livremente contra Deus e a partir de então causaram grande parte dos males que existem no mundo» (1). O termo técnico para isto é overfitting.
PS: Agora vou cortar pimentos, vestir a mais pequena e passar o resto da noite a comer. Continuamos em 2016. Bom ano novo para todos.
O factor de Bayes é de 1,27, em favor do primeiro, mas integrei o primeiro numericamente na folha de cálculo porque não estive para ver se havia solução analítica para esse integral. Por isso este resultado depende de não me ter enganado nas contas. No entanto, o que interessa aqui é a ideia geral e não o valor exacto.
1- Domingos Faria, Argumento contra o Naturalismo Metafísico
2- Contra o naturalismo.
3- Pedro Galvão, A Probabilidade de Deus: O Argumento da Afinação Minuciosa
4- Neste post uso o método do factor de Bayes, assumindo uma distribuição a priori uniforme para os parâmetros. Mas há várias maneiras de seleccionar modelos tendo em conta este problema do sobreajustamento aos dados devido a excesso de graus de liberdade. Se tiverem interesse nisto, há na Wikipedia uma lista: Model Selection.