sábado, outubro 24, 2015

Treta da semana (atrasada): extremismos.

Segundo a Constituição, «O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas». Mas, segundo Cavaco Silva, o dever do Presidente da República é «tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados»(1). Por isso, se bem que a maioria absoluta dos deputados na Assembleia da República tenha sido eleita sob a promessa explícita de se opor ao governo PSD-CDS, Cavaco Silva optou por indigitar Passos Coelho mesmo que este não consiga governar. A democracia é uma coisa bonita e o consenso é desejável, mas apenas quando ambos agradam “aos mercados” e aos arranjinhos estabelecidos. Se elegem gentalha de esquerda com os consensos errados então o Presidente tem de intervir.

Muitos alegam que o problema é o extremismo do BE e da CDU. Por exemplo, acerca do Euro, «O Bloco de Esquerda, como sempre afirmámos, defende uma política de esquerda que recuse mais sacrifícios em nome da moeda única»(2). Cavaco Silva justificou a sua decisão, em parte, porque «Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas». No entanto, as objecções do BE são muito semelhantes ao que defendia o PP em 1995: «Em nome da moeda única, da abertura indiscriminada de fronteiras e do escudo caro, sacrificámos o crescimento, a produção e o emprego. Valeu a pena? Não valeu.»(3). Também no que toca aos problemas dos salários, desigualdade social e serviços públicos, a posição da esquerda de hoje está bastante mais próxima da posição do PSD de Sá Carneiro do que o próprio PSD de agora: «O desemprego aumenta. Não se consegue arranjar casa com rendas acessível. As pensões da previdência são insuficientes. As escolas funcionam mal. A cultura e o ambiente degradam-se. […] E, entretanto, os impostos não param de crescer. Mas os serviços públicos pioram de ano para ano. O auxílio aos desprotegidos não é alargado. As injustiças sociais acentuam-se. Os trabalhadores ganham progressivamente menos.»(4)

É verdade que há posições mais extremas na esquerda. Mas não me preocupa que o PCP queira sair do Euro ou que o BE queira abolir o capitalismo porque nada disso tem possibilidade de vingar. Preocupa-me mais o cheque ensino ou o incentivo à natalidade com benefícios fiscais no IRS porque medidas que ponham o Estado a dar mais dinheiro aos ricos e menos aos pobres, apesar de injustas e contraproducentes, são fáceis de aprovar na Assembleia da República. Formalmente, os deputados representam todos os eleitores mas, estatisticamente, os ricos estão muito melhor representados do que os pobres. Seja como for, o que incomoda Cavaco Silva já não é a divergência ideológica. Seria em 1979. Nesse ano, o seu partido afirmava explicitamente que «os portugueses vão ser chamados a votar. A sua escolha é clara. E não tem meio-termo. Ou votarão por um governo da Aliança Democrática. Ou votarão por um Governo do PC e do PS. [...] Hoje, votar PS é, na prática, o mesmo que votar PC.»(4) Mas, entretanto, muito mudou.

O problema verdadeiro não é o suposto extremismo da esquerda. Nem sequer é a divergência ideológica entre socialistas, comunistas, e social-democratas, porque aquilo que a esquerda de hoje defende é muito parecido com o que defendiam os social-democratas quando ainda eram dignos desse nome. O problema é que os protagonistas do “arco da governação” foram trocando as suas diferentes ideologias políticas por um pragmatismo homogéneo de conveniência pessoal. Para estes, a política deixou de ser acerca dos cidadãos e de ideias para ser uma mera procura pelo melhor tacho. Negócios com acções; saltos entre cargos políticos e administração de empresas; deputados que trabalham para empresas privadas enquanto propõem e votam leis; privatizações e o que mais calhe. A orientação política faz pouca diferença. Nas juntas de freguesia e câmaras municipais repete-se o problema por todo o espectro. É simplesmente consequência de estarem os mesmos a fazer a mesma coisa durante décadas. É o perigo para estes esquemas que transtorna o Presidente, quase toda a gente no PSD e CDS e até muitos no PS. Uma aliança entre o PS e os partidos de esquerda não nos vai tirar do Euro nem da NATO nem vai afundar a península ibérica. Mas vai estragar muitas negociatas e, se os eleitores continuarem a votar assim, distribuindo os votos por vários partidos e abalando o “arco da governação”, será difícil que esta gente continue a governar-se como se tem governado até agora. É isso que os faz gritar com tanta indignação e tantos perdigotos.

1- Público, Cavaco indigita Passos e apela à dissidência dos deputados do PS
2- BE, Manifesto Eleitoral
3- CDS, Programa de Governo, 1995
4- CDS, Programa Eleitoral da AD, 1979

quarta-feira, outubro 21, 2015

Treta da semana (atrasada): melões e confusões.

As últimas legislativas causaram azia a muita gente porque a coligação com mais deputados tem poucas hipóteses de governar. Uns defendem que, mesmo assim, o Presidente da República tem de indigitar Passos Coelho porque a coligação PàF “ganhou as eleições”. Outros, e por vezes até os mesmo, reconhecendo a inviabilidade de tal governo, defendem que o PR deve convocar já novas eleições, o que nem é permitido por lei nem seria razoável. Não podemos andar em legislativas semana sim, semana não, até sair algo que agrade aos adeptos do PSD. Pelo meio, tem-se invocado as supostas intenções dos eleitores quando votaram neste ou naquele partido, a ética de se formar coligações para constituir governo, que em 2015 parece ser muito diferente do que era em 2011, e até um tal “interesse nacional” que ninguém sabe em concreto o que é mas que todos presumem ser de direita. Tudo isto por uma mistura de melão e confusão.

Melão porque, se bem que muita gente tenha sido prejudicada com o desemprego, a redução nos salários e os cortes no Estado, estas medidas não sacrificaram todos por igual. Àqueles a quem sobra salário no fim do mês, a austeridade não tem sido nada de especial. Nem percebem de que se queixam os outros a quem sobra cada vez mais mês no fim do salário. Para quem vai juntando dinheiro em planos de investimento e poupanças faz sentido salvar bancos privados à custa da dívida pública. Antes isso que perder o dinheiro. Quem nada tem que juntar é que é injustamente sacrificado em benefício daqueles que têm mais. E como os que aparecem na televisão e dirigem os jornais estão sempre entre estes últimos, por toda a parte se apregoa a virtude da austeridade, a ausência de alternativas e as terríveis consequências de um governo de esquerda. É natural ficarem frustrados quando a propaganda faz cada vez menos efeito.

E confusão porque, aparentemente, muita gente julga que as eleições legislativas servem para eleger um governo, automaticamente escolhido por quem “ganha”. Se assim fosse, seriam eleições governativas e não era preciso o Presidente da República fazer nada. Contava-se os votos e pronto. Mas o nosso sistema não é assim. Elegemos representantes na Assembleia da República, que é o órgão legislativo do Estado português, e são estes quem aprova os programas de governo e os orçamentos de Estado. É por isso que Portugal é uma democracia representativa.

Mesmo alguns que percebem os aspectos formais deste processo parecem baralhar-se quanto ao seu fundamento. Manuel Clemente, por exemplo, defendeu que «o próximo governo deverá sair, preferencialmente, de um acordo entre a coligação PSD-CDS e o PS»(1). Para isso, o PS teria de fazer o contrário da promessa principal que fez a todos os que votaram nas suas listas de candidatos. «Novo governo, outras políticas», foi o que o PS destacou como mais importante no seu programa eleitoral. «Só com um novo governo e uma nova maioria parlamentar é que Portugal pode beneficiar de políticas diferentes e melhores. Esse é o propósito do Partido Socialista: representar politicamente essa grande maioria social e cumprir o seu dever junto de todos os portugueses, apresentando-lhes uma alternativa, consubstanciada num novo programa, numa nova liderança e numa nova equipa.»(2) É certamente possível que o PS se alie ao PSD e ao CDS e não seria a primeira vez que um partido ignorava as principais promessas que tinha feito aos seus eleitores. Mas defender que é isso que o PS deve fazer contradiz o princípio fundamental dos eleitos representarem os eleitores, o que implica, no mínimo, que tentem cumprir as suas principais promessas.

Independentemente de quem tente constituir governo, o resultado destas eleições é que nenhuma lei, programa de governo ou orçamento de Estado poderá ser aprovado contra a vontade do PS, BE e CDU. E qualquer lei, projecto ou orçamento com o qual estes três grupos parlamentares concordem será aprovado com maioria absoluta. Suspeito que é principalmente por isto que os defensores mais estridentes do “não há alternativas” andam a disparatar ainda mais do que é costume.

1- Expresso, Cardeal Patriarca considera “mais natural” acordo entre coligação e PS.
2- Programa eleitoral do PS (pdf)

sábado, outubro 03, 2015

Treta da semana (atrasada): o dia de reflexão.

O post anterior suscitou algumas dúvidas acerca da possível violação das directivas da Comissão Nacional de Eleições. Nomeadamente, «Aquele que no dia da eleição ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer modo é punido com prisão até seis meses e multa de 50 € a 500 €, nos termos do artigo 147º da LEALRAM.» Penso que não violei esta proibição, em primeiro lugar, porque a «propaganda eleitoral» refere-se especificamente a «actividade que vise directa ou indirectamente promover candidaturas, seja dos candidatos, dos partidos políticos, dos titulares dos seus órgãos ou seus agentes ou de quaisquer outras pessoas, nomeadamente a publicação de textos ou imagens que exprimam ou reproduzam o conteúdo dessa actividade». Ou seja, o que é proibido é a actividade de promoção de candidaturas – a campanha eleitoral – ou a divulgação dessa actividade. Ao contrário do que muita gente parece pensar, isto não equivale a uma proibição geral de qualquer discussão política durante o tal dia de reflexão.

Em segundo lugar, a lei eleitoral tem de estar subordinada à Constituição. Na Constituição não vem nada sobre um dia de reflexão mas está claramente estipulado, no artigo 13º, que «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações». Por isso, a proibição da propaganda eleitoral na véspera e no dia das eleições tem de ser rigorosamente circunscrita à actividade de promoção de candidaturas porque, de outra forma, acaba por violar um direito fundamental que não é legítimo ao legislador negar a quem quer que seja.

Esta é uma razão pela qual acho importante discutir-se política hoje e amanhã também, se houver paciência. É legítimo, e razoável, que se proíba comícios, manifestações e arruadas nestes dias. Não queremos gente a gritar com cartazes em punho à porta dos locais de voto. Mas não é legítimo que se proíba as pessoas de dizerem o que pensam, mesmo que seja só por uns dias, e não podemos deixar o medo e a picuinhice tornarem a lei mais censória do que já é. Se nos coibirmos de falar de política com medo disto estaremos a transformar uma lei razoável de limitação da campanha eleitoral numa violação inadmissível da nossa liberdade de expressão.

Mas o mais grave é a forma como esta lei foi adaptada às novas tecnologias de comunicação. Por exemplo, «no que respeita à proibição de fazer propaganda em véspera e dia da eleição, as Cronologias Pessoais e as Páginas do Facebook não podem registar qualquer ação de propaganda praticada após as 00h00 da véspera da eleição. Ao invés, a atividade desenvolvida até essa hora pode aí permanecer (tal como acontece, por exemplo, com os cartazes afixados na rua)». A medida é ridícula. O problema, aparentemente, não é a pessoa ver o post no dia 3 ao almoço. A preocupação do legislador parece ter sido apenas se o post foi publicado às 00:00 do dia 3 ou às 23:59 do dia 2. Além disso, os sites dos partidos continuam online, os vídeos da campanha continuam no YouTube e os cartazes continuam escarrapachados por todo o lado. Esta medida faz-me lembrar uma recomendação da minha avó, há uns anos, para que eu não deixasse os miúdos ir à Internet à noite por causa dos programas que lá dão a essa hora.

Este blog, ou a minha página no Facebook, não são publicações no sentido tradicional do termo. Não são revistas que os leitores comprem na expectativa de ir ler reportagens sobre automóveis ou ver fotografias de gente famosa. O blog ou a página no Facebook também não são cartazes na rua nem comícios em locais públicos. Quem visita tais páginas fá-lo porque quer, de propósito e sem legitimidade para exigir nada de quem as escreve. Não estou a ocupar a via pública nem tenho qualquer contrato com os meus leitores. Por isso, as “redes sociais” são o equivalente a conversas de esplanada. Se eu estiver a conversar sobre isto com alguém, qualquer outra pessoa é livre de se sentar próximo e ouvir a conversa. É um espaço pessoal não privado. E até pode ser bem vinda. Mas veio ouvir uma conversa pessoal. Não está a ler o jornal que comprou nem a apanhar uma manifestação a caminho do trabalho. Por meio da Internet, conversamos com quem nos quiser ouvir mas fazêmo-lo no nosso espaço pessoal, sem intromissão no espaço de terceiros.

Neste contexto, é inadmissível que o Estado intervenha de forma censória para proteger a liberdade de decisão de quem só cá vem ler o que quer. E este ponto é muito mais importante do que apenas pela treta do dia de reflexão. Enquanto os legisladores não compreenderem que a Internet é diferente da rádio, das revistas ou dos cartazes na rua, corremos o risco de violarem a nossa liberdade de expressão pessoal apenas porque usamos uma tecnologia nova para comunicar. Se a CNE proibisse conversas políticas por telefone ou por carta, saltava-lhes logo tudo em cima. Mas como esta coisa da Internet só existe há umas décadas e é parecida com a televisão, pouca gente percebe que estas proibições, o bloqueio de sites, a limitação do anonimato e medidas afins são um ataque sério ao direito de conversar.

Reflexão.

Usar o dia de reflexão para decidir em quem votar é como estudar para o exame só na véspera. Não é o ideal, mas é melhor que nada. Este post não é para quem já está decidido, porque hoje não se vai convencer ninguém a mudar de ideias. Este post é para aqueles que acham que não vale a pena votar porque os partidos são todos a mesma coisa ou para aqueles que vão votar contrariados porque acham que só assim o seu voto é útil. A esses proponho que reflictam de uma forma diferente.

Amanhã vamos votar em partidos. Mas vamos eleger pessoas. Em cada círculo eleitoral, cada partido apresenta uma lista e é dessas listas que os nossos votos vão eleger quem vai para a Assembleia da República. E mesmo que os partidos pareçam todos a mesma coisa, devia ser fácil perceber que a Mariana Mortágua não é o Paulo Portas, nem o Rui Tavares é o Passos Coelho, nem o Marinho Pinto é o Jerónimo de Sousa. O número de deputados por círculo eleitoral varia conforme o número de eleitores, de 2 em Portalegre a 47 em Lisboa, mas dá cerca de um deputado por cada cinquenta mil eleitores. É esse o valor do voto de cada um. Não é muito, mas é alguma coisa e faz diferença. Faz diferença porque mesmo que os partidos pareçam todos o mesmo as pessoas claramente não são. Por isso, a quem está indeciso, recomendo dar uma olhada nas listas para o seu círculo eleitoral. Facilmente deverá notar alguma diferença.

Quanto àqueles que preferiam votar num partido pequeno mas vão votar num partido grande por lhes parecer mais útil, gostava de apontar que os deputados podem fazer muito mais do que votar leis. A Mariana Mortágua, por exemplo, votou quase sempre vencida no hemiciclo mas fez um trabalho muito melhor na Assembleia da República do que os batalhões de fantoches que só lá vão levantar o braço a mando das direcções partidárias. A julgar pela prestação no Parlamento Europeu, também não é razoável assumir que o Rui Tavares e o Marinho Pinto vão fazer a mesma falta no nosso. Os deputados participam em comissões que elaboram as propostas e os projectos de lei em detalhe, e nessas coisas os detalhes contam. Os deputados intervêm no Parlamento (2), elaboram pareceres e relatórios, ouvem os eleitores e associações quando há discussões sobre propostas de legislação e fazem uma data de coisas que, tudo somado, têm bastante impacto na forma como o país funciona. Por isso não faz sentido votar num partido só porque vai ter mais deputados do que outro. Faz muito mais sentido votar nas pessoas que queremos que nos representem na Assembleia da República.

Assim, para este dia de reflexão, recomendo que consultem as listas de candidatos ao vosso círculo eleitoral. Se não sabem quem são as pessoas, procurem no Google. Quanto mais não seja para evitar votar naquele que acha que os idosos são uma praga ou no outro que diz que é preciso mentir para ganhar votos.

E se, mesmo assim, ainda estiverem indecisos, votem nuns que nunca lá tenham estado. Se é só para por rabos nas cadeiras, ao menos que se vá mudando os rabos. Não façam é como os quatro milhões de eleitores que não votaram em 2011 por acharem que os seus votos valiam menos que os dois milhões do PSD ou os seiscentos mil do CDS (3).

1- CNE, Mapa de deputados e sua distribuição pelos círculos eleitorais
2- Os que lá vão. Há uns, como um tal Carlos Páscoa Gonçalves, do PSD, que nem para isso parecem ter muita disponibilidade: Presenças a Reuniões Plenárias
3- RTP, Legislativas 2011

sexta-feira, outubro 02, 2015

Treta da semana (atrasada): hipóteses.

A possibilidade de Portugal acolher pouco mais de três mil refugiados tem levado algumas pessoas a protestar que temos de ajudar primeiro “os nossos” antes de ajudarmos “os outros”. É difícil estimar quanta gente terá mesmo esta opinião. Podem ser poucos a protestar muito ou muitos a pensá-lo mas guardando-o para si. Seja como for, é estranho que esta opinião tenha tanta projecção quando há apenas quatro décadas meio milhão de portugueses tiveram de fugir das ex-colónias abandonando tudo o que tinham. Não devia ser difícil, mesmo para a geração de agora, ter contacto com quem saiba pessoalmente o que é ser refugiado.

Uma hipótese que muitos apresentam para explicar esta reacção é a da xenofobia, ou mesmo racismo, se bem que os sírios não aparentem ser muito diferentes de nós. Se o Bashar al-Assad fosse meu vizinho não o julgaria estrangeiro só de olhar para ele. Mais ar de estrangeiro tenho eu. Infelizmente, parece-me uma hipótese errada. Porque se o problema fosse mesmo os sírios serem “os outros” e termos de ajudar primeiro “os nossos”, já se teria tudo mobilizado para ajudar “os nossos” há muito tempo e ainda estamos longe disso. Na verdade, e contrariamente ao que ditaria a razão, a desculpa de que estamos em crise até tem servido para lixar cada vez mais os pobres.

Uma explicação alternativa seria a do egoísmo encapotado. Dizem que querem ajudar “os nossos” primeiro mas, na verdade, querem é o melhor para si e os outros que se lixem. Mas mesmo esta explicação não parece encaixar nas evidências. Um egoísmo racional levaria a uma redistribuição muito mais eficaz do que aquela que temos. Gastamos imenso dinheiro a manter na cadeia gente que só se dedica ao crime porque não têm dinheiro para viver uma vida honesta. Sairia mais barato dar-lhes esse dinheiro. A má redistribuição também obriga muita gente a desenrascar-se de formas que prejudicam os restantes. A semana passada, por volta das seis e meia da manhã, vi um casal de meia idade nos contentores da reciclagem. Ele estava a empurrar o dos papeis para abrir a parte de baixo e ela estava a escolher e tirar os cartões maiores. Ao pé deles estava uma carrinha velha cheia de cartão. Tirar cartão da reciclagem e depois vendê-lo para reciclagem é uma forma de ganhar uns trocos. Encontraram uma oportunidade de negócio, criaram os seus postos de trabalho e essas coisas. É o empreendedorismo. Mas ficávamos todos melhor servidos se simplesmente lhes déssemos o dinheiro de que precisam para viver em vez de os forçar a fazer coisas destas. O egoísmo, pelo menos o egoísmo racional, não explica a má distribuição. Se cada um quisesse o melhor para si muitas pessoas seriam a favor de pagar para corrigir estes problemas.

Resta uma hipótese, pior do que estas duas mas que, infelizmente, explica melhor o que observamos. É a nossa propensão para ver como justa e merecida qualquer vantagem que tenhamos em relação ao outros, mesmo que tal vantagem não seja nem merecida nem justa (1). Isto é pior do que o egoísmo porque pode até conduzir a acções que prejudicam todos, incluindo o próprio agente, em defesa de uma noção errada e irreflectida de justiça. Por exemplo, uma objecção comum a um rendimento básico universal é a aversão a dar dinheiro a quem não trabalha. Mesmo que esta seja a forma mais barata de combater a criminalidade e mesmo que, em abstracto, todos considerem prioritário eliminar a pobreza, parece injusto dar o dinheiro de quem tem mais a quem não tem nada porque, intuitivamente, se têm mais é porque merecem ter mais. A noção absurda da caridade também vem desta visão distorcida do que é justo. Absurda porque classifica como virtuoso aquele que, tendo muito, dá uma parte irrisória do que tem para ajudar minimamente aquele que não tem nada. Dar uma esmola, passar umas férias a pintar as casas dos pobrezinhos ou fazer voluntariado no Banco Alimentar deixa muita gente orgulhosa da sua generosidade apenas pela incapacidade de perceberem quão injusto foi, logo à partida, terem nascido numa situação tão melhor do que aquela em que está quem ajudam. Essa incapacidade é o maior obstáculo.

É por isso que é tão difícil encontrar uma solução para estes problemas. A maioria das pessoas, mesmo as que são xenófobas ou racistas, reconhece que há algo de errado na xenofobia e no racismo. Se fosse pelo egoísmo também a coisa se resolvia, não só porque há razões pragmáticas para ajudar quem precisa mas porque o egoísmo também é universalmente reconhecido como reprovável. Infelizmente, o problema fundamental está na própria noção de justiça. Quem está numa situação mais favorável interpreta essa vantagem como algo justo e merecido. Irreflectidamente, parece-lhe justo que tenha nascido num país melhor, numa cidade mais próspera ou numa família mais rica e, por isso, não sente qualquer obrigação de repartir melhor essa sua sorte. É isto que é preciso corrigir. O racismo e a xenofobia são apenas efeitos secundários e não a causa principal. Os apelos à generosidade e à caridade são até contra-producentes por, implicitamente, reforçarem a ideia de que a vantagem é merecida e que, por isso, é virtude abdicar sequer de uma minúscula parte dela. O que precisamos é de compreender que o mundo é injusto na sua indiferença e que somos colectivamente responsáveis por mitigar essa injustiça.

1- Esta palestra de Paul Piff, na TED, mostra bem este efeito: Does money make you mean?