Treta da semana (atrasada): extremismos.
Segundo a Constituição, «O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas». Mas, segundo Cavaco Silva, o dever do Presidente da República é «tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados»(1). Por isso, se bem que a maioria absoluta dos deputados na Assembleia da República tenha sido eleita sob a promessa explícita de se opor ao governo PSD-CDS, Cavaco Silva optou por indigitar Passos Coelho mesmo que este não consiga governar. A democracia é uma coisa bonita e o consenso é desejável, mas apenas quando ambos agradam “aos mercados” e aos arranjinhos estabelecidos. Se elegem gentalha de esquerda com os consensos errados então o Presidente tem de intervir.
Muitos alegam que o problema é o extremismo do BE e da CDU. Por exemplo, acerca do Euro, «O Bloco de Esquerda, como sempre afirmámos, defende uma política de esquerda que recuse mais sacrifícios em nome da moeda única»(2). Cavaco Silva justificou a sua decisão, em parte, porque «Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas». No entanto, as objecções do BE são muito semelhantes ao que defendia o PP em 1995: «Em nome da moeda única, da abertura indiscriminada de fronteiras e do escudo caro, sacrificámos o crescimento, a produção e o emprego. Valeu a pena? Não valeu.»(3). Também no que toca aos problemas dos salários, desigualdade social e serviços públicos, a posição da esquerda de hoje está bastante mais próxima da posição do PSD de Sá Carneiro do que o próprio PSD de agora: «O desemprego aumenta. Não se consegue arranjar casa com rendas acessível. As pensões da previdência são insuficientes. As escolas funcionam mal. A cultura e o ambiente degradam-se. […] E, entretanto, os impostos não param de crescer. Mas os serviços públicos pioram de ano para ano. O auxílio aos desprotegidos não é alargado. As injustiças sociais acentuam-se. Os trabalhadores ganham progressivamente menos.»(4)
É verdade que há posições mais extremas na esquerda. Mas não me preocupa que o PCP queira sair do Euro ou que o BE queira abolir o capitalismo porque nada disso tem possibilidade de vingar. Preocupa-me mais o cheque ensino ou o incentivo à natalidade com benefícios fiscais no IRS porque medidas que ponham o Estado a dar mais dinheiro aos ricos e menos aos pobres, apesar de injustas e contraproducentes, são fáceis de aprovar na Assembleia da República. Formalmente, os deputados representam todos os eleitores mas, estatisticamente, os ricos estão muito melhor representados do que os pobres. Seja como for, o que incomoda Cavaco Silva já não é a divergência ideológica. Seria em 1979. Nesse ano, o seu partido afirmava explicitamente que «os portugueses vão ser chamados a votar. A sua escolha é clara. E não tem meio-termo. Ou votarão por um governo da Aliança Democrática. Ou votarão por um Governo do PC e do PS. [...] Hoje, votar PS é, na prática, o mesmo que votar PC.»(4) Mas, entretanto, muito mudou.
O problema verdadeiro não é o suposto extremismo da esquerda. Nem sequer é a divergência ideológica entre socialistas, comunistas, e social-democratas, porque aquilo que a esquerda de hoje defende é muito parecido com o que defendiam os social-democratas quando ainda eram dignos desse nome. O problema é que os protagonistas do “arco da governação” foram trocando as suas diferentes ideologias políticas por um pragmatismo homogéneo de conveniência pessoal. Para estes, a política deixou de ser acerca dos cidadãos e de ideias para ser uma mera procura pelo melhor tacho. Negócios com acções; saltos entre cargos políticos e administração de empresas; deputados que trabalham para empresas privadas enquanto propõem e votam leis; privatizações e o que mais calhe. A orientação política faz pouca diferença. Nas juntas de freguesia e câmaras municipais repete-se o problema por todo o espectro. É simplesmente consequência de estarem os mesmos a fazer a mesma coisa durante décadas. É o perigo para estes esquemas que transtorna o Presidente, quase toda a gente no PSD e CDS e até muitos no PS. Uma aliança entre o PS e os partidos de esquerda não nos vai tirar do Euro nem da NATO nem vai afundar a península ibérica. Mas vai estragar muitas negociatas e, se os eleitores continuarem a votar assim, distribuindo os votos por vários partidos e abalando o “arco da governação”, será difícil que esta gente continue a governar-se como se tem governado até agora. É isso que os faz gritar com tanta indignação e tantos perdigotos.
1- Público, Cavaco indigita Passos e apela à dissidência dos deputados do PS
2- BE, Manifesto Eleitoral
3- CDS, Programa de Governo, 1995
4- CDS, Programa Eleitoral da AD, 1979