Treta da semana: a lei e a realidade.
Opondo-se à co-adopção em casais do mesmo sexo, o deputado José Ribeiro e Castro alega que «A ideia de que o Estado pode criar a realidade através do poder da lei é um delírio perigoso, que nos coloca no cimo da rampa de todas as derivas totalitárias. O Direito é fonte de justiça quando limitado pela Humanidade ou subordinado ao Direito Natural»(1). O que é interessante nestas premissas é levarem mais facilmente à conclusão contrária àquela que o José defende. Se eu morrer e a minha mulher constituir família com outra pessoa, podemos invocar o perigo do totalitarismo para defender que cabe a essa nova família, e não ao Estado, escolher quem me vai substituir na guarda das crianças. O princípio do Direito Natural, de que as leis carecem de uma justificação moral, também pode ser invocado para impedir que o Estado restrinja, apenas por causa do sexo, com quem o pai ou a mãe pode partilhar a guarda dos filhos quando o outro progenitor já não está presente.
Como parte de premissas que o contrariam, o José tem de recorrer a alguma prestidigitação verbal. Primeiro, aponta que «Se todos nascemos de pai e de mãe, é violência extrema privar alguém do direito a ter pai ou do direito a ter mãe». Mas a co-adopção não vai privar ninguém dos seus progenitores. Apenas visa substituir aqueles que, por alguma razão, já não podem desempenhar esse papel. E o direito a ter pai ou mãe não existe. A criança tem direito a cuidados especiais da parte dos seus progenitores, ou de quem assuma tal papel, mas não tem o direito de exigir de ninguém que se torne seu pai ou sua mãe. Quem o fizer será de livre vontade e não por obrigação. Partindo desse suposto direito, alega que não se pode permitir que a criança seja «"filha" de pai e pai, sem mãe; ou "filha" de mãe e mãe, sem pai - e, ipso facto, negar-lhe em definitivo o direito a ter uma mãe ou o direito a ter um pai». Infelizmente, se a criança só tem um dos progenitores, não há “direito” que faça aparecer o pai ou a mãe que lhe falta. O Estado não consegue inventar um pai ou uma mãe para quem não os tenha pelo que, realisticamente, ou será co-adoptada por aquela pessoa que o progenitor escolheu ou não o será por mais ninguém. A questão em aberto é apenas se o Estado deve contrariar a decisão da família só porque pessoa em causa não tem as gónadas certas.
O José aponta também que serem duas pessoas a partilhar os deveres parentais «resulta de modo inteiramente prosaico da natureza, da biologia, vá lá... do Criador. [...] Somos filhos de dois, mas não de quaisquer dois - somos filhos de dois, porque somos filhos de mãe e de pai. Será isto homofobia? Não. É a biologia, a natureza.» É verdade. A biologia obriga a que cada criança seja filha de um pai e de uma mãe. Mas também obriga a que seja filha exactamente daquele pai e daquela mãe que a conceberam. Biologicamente, pai e mãe só serão aqueles dois no mundo inteiro. Quem aceita a adopção por casais heterossexuais descartou necessariamente estas restrições biológicas porque, biologicamente, pai e mãe são insubstituíveis. Biologicamente, eu ser pai de uma criança que não é minha é tão impossível como seria eu engravidar de um homem ou um cacto dar à luz um elefante. Por isso parece-me suspeito que invoquem restrições biológicas apenas quando o casal é do mesmo sexo se as ignoram no caso de casais estéreis, de raça diferente da da criança ou simplesmente que não a conceberam.
O Gonçalo Portocarrero de Almada empacota o argumento de forma ligeiramente diferente: «é aceitável que se atribua ao cônjuge do pai, sendo mulher, a condição de mãe adoptiva, ou madrasta; ou ao cônjuge da mãe, sendo homem, o estatuto legal de pai adoptivo, ou padrasto. Mas nenhuma mulher pode ser pai ou padrasto, nem nenhum homem pode ser mãe ou madrasta, nem há lugar, na natureza ou no direito, para uma segunda mãe, ou um segundo pai»(2). O Marinho Pinho diz essencialmente o mesmo (3). Resumindo, só há “lugar” na vida da criança para um pai e uma mãe, ficando sempre implícito que preferem deixar a criança só com um pai ou só com uma mãe do que sequer permitir que tenha dois do mesmo.
Biologicamente, não há “lugar” para segundo pai nem segunda mãe. Mas, legalmente, o pai adoptivo e a mãe adoptiva já são os segundos e, afectivamente, é muito vulgar haver mais pessoas na vida da criança a co-adoptar esses papéis, principalmente quando ambos os progenitores trabalham. Não é raro que avós, avôs, tios ou tias, por exemplo, sejam como segundos pais e segundas mães para as crianças. Além disso, a adopção e a co-adopção aplicam-se a casos excepcionais que se podem desviar ainda mais do ideal simplista destes opinadores.
Os meus filhos ficaram umas semanas no berçário da maternidade. Lá, estava uma bebé de vários meses que tinha sido abandonada. As enfermeiras cuidavam dela, falavam com ela, brincavam com ela e, para todos os efeitos, eram as mães dela. Nessas situações não adianta invocar restrições biológicas, inventar que a criança tem direito a pai e a mãe, alegar que se está a defender a sua identidade ou o raio que o parta. O que é preciso é encontrar alguém que se comprometa a criar aquela criança. São anos de esforço, amor e dedicação e não é fácil encontrar quem se disponha a tanto. Uma lei que o impeça só por causa do seu sexo não só viola o princípio da igualdade, consagrado na Constituição (4), como prejudica as crianças que mais ajuda precisam. Não é a falta de “lugar” para ter duas mães ou o hipotético direito a ter os pais que não se teve que justifica um disparate destes.
O José pergunta se «Será isto homofobia?» Suspeito que sim. É que se fosse só por estupidez teria de ser tanta que seria incapacitante.
1- Público, Pai e mãe e a "co-adopção" homossexual
2- i Online, O direito a ter pai e mãe
3- RTP1 (via Portugal Glorioso), vídeo em Coadopção: Marinho Pinto ARRASA lobby Gay
4- Artigo 13º, Princípio da igualdade: «1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»