sexta-feira, janeiro 31, 2014

Treta da semana: a lei e a realidade.

Opondo-se à co-adopção em casais do mesmo sexo, o deputado José Ribeiro e Castro alega que «A ideia de que o Estado pode criar a realidade através do poder da lei é um delírio perigoso, que nos coloca no cimo da rampa de todas as derivas totalitárias. O Direito é fonte de justiça quando limitado pela Humanidade ou subordinado ao Direito Natural»(1). O que é interessante nestas premissas é levarem mais facilmente à conclusão contrária àquela que o José defende. Se eu morrer e a minha mulher constituir família com outra pessoa, podemos invocar o perigo do totalitarismo para defender que cabe a essa nova família, e não ao Estado, escolher quem me vai substituir na guarda das crianças. O princípio do Direito Natural, de que as leis carecem de uma justificação moral, também pode ser invocado para impedir que o Estado restrinja, apenas por causa do sexo, com quem o pai ou a mãe pode partilhar a guarda dos filhos quando o outro progenitor já não está presente.

Como parte de premissas que o contrariam, o José tem de recorrer a alguma prestidigitação verbal. Primeiro, aponta que «Se todos nascemos de pai e de mãe, é violência extrema privar alguém do direito a ter pai ou do direito a ter mãe». Mas a co-adopção não vai privar ninguém dos seus progenitores. Apenas visa substituir aqueles que, por alguma razão, já não podem desempenhar esse papel. E o direito a ter pai ou mãe não existe. A criança tem direito a cuidados especiais da parte dos seus progenitores, ou de quem assuma tal papel, mas não tem o direito de exigir de ninguém que se torne seu pai ou sua mãe. Quem o fizer será de livre vontade e não por obrigação. Partindo desse suposto direito, alega que não se pode permitir que a criança seja «"filha" de pai e pai, sem mãe; ou "filha" de mãe e mãe, sem pai - e, ipso facto, negar-lhe em definitivo o direito a ter uma mãe ou o direito a ter um pai». Infelizmente, se a criança só tem um dos progenitores, não há “direito” que faça aparecer o pai ou a mãe que lhe falta. O Estado não consegue inventar um pai ou uma mãe para quem não os tenha pelo que, realisticamente, ou será co-adoptada por aquela pessoa que o progenitor escolheu ou não o será por mais ninguém. A questão em aberto é apenas se o Estado deve contrariar a decisão da família só porque pessoa em causa não tem as gónadas certas.

O José aponta também que serem duas pessoas a partilhar os deveres parentais «resulta de modo inteiramente prosaico da natureza, da biologia, vá lá... do Criador. [...] Somos filhos de dois, mas não de quaisquer dois - somos filhos de dois, porque somos filhos de mãe e de pai. Será isto homofobia? Não. É a biologia, a natureza.» É verdade. A biologia obriga a que cada criança seja filha de um pai e de uma mãe. Mas também obriga a que seja filha exactamente daquele pai e daquela mãe que a conceberam. Biologicamente, pai e mãe só serão aqueles dois no mundo inteiro. Quem aceita a adopção por casais heterossexuais descartou necessariamente estas restrições biológicas porque, biologicamente, pai e mãe são insubstituíveis. Biologicamente, eu ser pai de uma criança que não é minha é tão impossível como seria eu engravidar de um homem ou um cacto dar à luz um elefante. Por isso parece-me suspeito que invoquem restrições biológicas apenas quando o casal é do mesmo sexo se as ignoram no caso de casais estéreis, de raça diferente da da criança ou simplesmente que não a conceberam.

O Gonçalo Portocarrero de Almada empacota o argumento de forma ligeiramente diferente: «é aceitável que se atribua ao cônjuge do pai, sendo mulher, a condição de mãe adoptiva, ou madrasta; ou ao cônjuge da mãe, sendo homem, o estatuto legal de pai adoptivo, ou padrasto. Mas nenhuma mulher pode ser pai ou padrasto, nem nenhum homem pode ser mãe ou madrasta, nem há lugar, na natureza ou no direito, para uma segunda mãe, ou um segundo pai»(2). O Marinho Pinho diz essencialmente o mesmo (3). Resumindo, só há “lugar” na vida da criança para um pai e uma mãe, ficando sempre implícito que preferem deixar a criança só com um pai ou só com uma mãe do que sequer permitir que tenha dois do mesmo.

Biologicamente, não há “lugar” para segundo pai nem segunda mãe. Mas, legalmente, o pai adoptivo e a mãe adoptiva já são os segundos e, afectivamente, é muito vulgar haver mais pessoas na vida da criança a co-adoptar esses papéis, principalmente quando ambos os progenitores trabalham. Não é raro que avós, avôs, tios ou tias, por exemplo, sejam como segundos pais e segundas mães para as crianças. Além disso, a adopção e a co-adopção aplicam-se a casos excepcionais que se podem desviar ainda mais do ideal simplista destes opinadores.

Os meus filhos ficaram umas semanas no berçário da maternidade. Lá, estava uma bebé de vários meses que tinha sido abandonada. As enfermeiras cuidavam dela, falavam com ela, brincavam com ela e, para todos os efeitos, eram as mães dela. Nessas situações não adianta invocar restrições biológicas, inventar que a criança tem direito a pai e a mãe, alegar que se está a defender a sua identidade ou o raio que o parta. O que é preciso é encontrar alguém que se comprometa a criar aquela criança. São anos de esforço, amor e dedicação e não é fácil encontrar quem se disponha a tanto. Uma lei que o impeça só por causa do seu sexo não só viola o princípio da igualdade, consagrado na Constituição (4), como prejudica as crianças que mais ajuda precisam. Não é a falta de “lugar” para ter duas mães ou o hipotético direito a ter os pais que não se teve que justifica um disparate destes.

O José pergunta se «Será isto homofobia?» Suspeito que sim. É que se fosse só por estupidez teria de ser tanta que seria incapacitante.

1- Público, Pai e mãe e a "co-adopção" homossexual
2- i Online, O direito a ter pai e mãe
3- RTP1 (via Portugal Glorioso), vídeo em Coadopção: Marinho Pinto ARRASA lobby Gay
4- Artigo 13º, Princípio da igualdade: «1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»

segunda-feira, janeiro 27, 2014

Forma e informação.

Julgo que a minha falta de sucesso em explicar porque é que o copyright no domínio digital é fundamentalmente diferente do que se fazia no analógico vem de ter insistido na parte mais trivial, que é a arbitrariedade da codificação digital, em vez de focar a mais importante: por que raio é que isso faz diferença. Vou tentar corrigir esse erro, começando com um excerto de um soneto de Camões e uma reinterpretação minha.

Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;
Prados férteis, arborizados, e um curso de água límpida escorrendo num declive acentuado rochoso.

Ao contrário do que acontece na ciência, na arte não importa apenas a informação que se transmite mas também, e principalmente, a forma como é transmitida. Muitas vezes, a melhor arte consiste em transmitir ideias banais de forma assombrosa e a melhor ciência em fazer o contrário, e o copyright sempre fez esta distinção. A nossa legislação, por exemplo, protege «as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas» mas exclui explicitamente «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas»(1) enquanto tal.

Isto é assim porque o direito exclusivo de reproduzir certa forma de descrever a paisagem exige apenas restringir imitações dessa forma de descrever a paisagem. Mas o direito exclusivo de descrever a paisagem de qualquer forma implicaria proibir tudo o que pudesse ser interpretado como descrição da paisagem e isso é censura, fundamentalmente diferente de restringir a cópia. Por exemplo, em 2000 o juiz declarou ilegal a distribuição do programa DeCSS, por contornar a protecção de cópia dos DVD (2). Em resposta, começaram a inventar formas diferentes de divulgar o algoritmo. Em vídeos, canções, poemas e até num número primo (3). Isto porque, ao contrário da obra de arte, a especificação de um algoritmo não depende da forma. Passa-se o mesmo com as receitas. O livro de receitas, com capa, prefácio e fotografias, está coberto pelo copyright. Mas as receitas em si, sendo meros processos, estão excluídas porque não interessa a forma como são descritas. Basta que se perceba como confeccionar o prato.

Ye cheerful meadows and ye woodlands green,
And ye, ye crystal waters, fresh and clear,
Whereon like nature painted these appear,
Who take your source the lofty rocks between;
416C65677265732063616D706F732C20
766572646573206172766F7265646F73
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617320E1677561732064652063726973
74616C2C2051756520656D2076F37320
6F7320646562757861697320616F206E
61747572616C2C20446973636F727265
6E646F20646120616C7475726120646F
7320726F636865646F733B

Acima mostro uma tradução do poema (4) e uma conversão dos códigos ASCII do original em hexadecimal. A tradução tenta preservar a forma do poema, mesmo alterando alguns detalhes. A conversão em hexadecimal não preserva forma nenhuma. Em teoria, alguém que saiba ler hexadecimal e tenha memorizado a tabela ASCII talvez consiga ler ali o texto original, mas não é isso que importa. O que importa é que, tendo um computador que faz esta conversão, pode-se distribuir apenas a informação que especifica aquela sequência de valores sem depender da forma do poema. Pode ser uma receita, um programa ou até um número primo. Saiu-se assim do domínio das obras expressas de uma forma concreta para o domínio dos processos e das ideias em abstracto e para restringir isto já não basta proibir a cópia. É preciso censura.

Focando esta diferença entre forma e informação talvez já consiga resolver as duas objecções mais comuns a este argumento. A primeira é a de que o copyright já tinha sido estendido aos registos analógicos e a aplicação aos ficheiros digitais é uma mera continuação desse processo. No entanto, apesar da alteração ter sido imensa – o copyright original cobria apenas a tipografia – foi meramente quantitativa. A proibição continuava presa à forma. Por exemplo, a gravação de alguém a declamar o poema estava coberta pelo copyright do poema mas a descrição numérica do campo magnético da fita dessa cassete não estava porque não teria a mesma forma, apesar de especificar a mesma informação. A extensão do copyright ao domínio digital foi qualitativamente diferente porque a forma deixou de fazer diferença.

A segunda objecção é a de que o ficheiro pode ser só bits mas o que a malta quer é ver o filme. É verdade, mas é irrelevante. Quem copia a receita também quer fazer o bolo como se tivesse comprado o livro de receitas e quem copia instruções para desenhar o Mickey também quer desenhar o Mickey. Só que, fora do domínio digital, isso é legítimo porque o copyright cobre apenas aquelas formas de exprimir a informação e não a informação em si. É só no domínio digital que essa distinção é abolida, criando algo fundamentalmente diferente.

Para terminar, queria deixar claro que isto não é um argumento a favor do copyright original. Continuo a considerar ilegítimo que proíbam as pessoas todas de copiar só para proteger os lucros de alguns. Mas essa posição parece ser polémica. O propósito deste argumento é mostrar que o copyright digital vai muito além daquilo que o copyright alguma vez foi porque tem de proibir a informação em si e não apenas a imitação de certas formas de a exprimir. Isso é censura, e não devia ser polémico defender que censurar os outros não é uma forma legítima de ganhar dinheiro.

1- Código do direito de autor e dos direitos conexos, artigo 1º.
2- Wikipedia, DeCSS
3- Wikipedia, Illegal Prime 4- J.J. Aubertin, Seventy Sonnets of Camoens etc

domingo, janeiro 26, 2014

Treta da semana: não acrescenta informação.

O Mats é um criacionista que escreve sobre um tal de “Darwinismo”, coisa que nunca percebi bem o que era. No post de ontem, repete a tese criacionista de que «as mutações não acrescentam informação nova ao genoma; elas apenas [modificam] a informação que já existe» (1). E isto, segundo o Mats, aplica-se também à duplicação de partes do ADN (2) porque «As duplicações são mutações que duplicam os nucleotídeos ou os cromossomas, e neste sentido, acrescentam por duas vezes a mesma informação ao genoma». Numa tentativa de ter graça, o Mats acaba por mostrar claramente como a tese dele é um disparate:

«Reparem, no entanto, que que estas duplicações de material material não acrescentam material não acrescentam informação nova informação nova, mas apenas repetem repetem repentem a informação que já existe»

Adiante voltarei a este revelador “repetem repetem repentem” mas, primeiro, queria desfazer uma confusão básica. Como já repeti aqui várias vezes, aparentemente sem conseguir aumentar a informação aos criacionistas, a evolução não é um processo que ocorra em organismos isolados. É um processo que ocorre em populações. E, numa população, é fácil de ver como alterações genéticas aumentam a quantidade de informação.

Vamos assumir que o genoma de um coelho branco tem a mesma quantidade de informação que o genoma de um coelho cinzento, preto, castanho ou malhado. Se imaginarmos, como fazem os criacionistas, que a evolução vai transformar um no outro não vemos aumento de informação. Mas vamos supor que começamos com uma população de coelhos brancos, todos geneticamente iguais e que, por mutação, começam a nascer coelhos de outras cores. É fácil de ver que, mesmo que todos os coelhos, individualmente, tenham a mesma quantidade de informação no seu genoma, a quantidade total de informação na população vai aumentando conforme vão surgindo coelhos com outras cores, pêlo mais fino ou mais grosso ou mais ou menos saltitões. A mutação é um processo aleatório que aumenta continuamente a diversidade genética na população. É isto que, por sua vez, alimenta a selecção natural, um processo de eliminação tendenciosa das variantes com menos capacidade reprodutora no ambiente em que se encontram. Por exemplo, na neve os coelhos mais escuros safam-se pior. São estes dois mecanismos, em conjunto, que explicam como a população vai mudando ao longo das gerações e é a essa mudança que chamamos evolução.

Voltando ao “repetem repetem repentem”, inadvertidamente o Mats deu um exemplo do que acontece com a duplicação de genes no mesmo genoma. Há vários mecanismos que podem duplicar trechos de ADN. Por exemplo, quando a molécula está a ser copiada, a enzima que vai sintetizando a nova cadeia de ADN pode escorregar na cadeia original e continuar a síntese a partir de uma parte que já tinha sido copiada. O resultado inicial pode ser algo como o “repetem repetem repetem” que o Mats provavelmente queria ter escrito. Mas depois disto acontecer, uma nova mutação pode alterar cada cópia independentemente. Por exemplo, “repetem repetem repentem”, que tem claramente mais informação do que o “repetem” original.

Os dois exemplos que dei aqui, dos coelhos e dos genes, ilustram os dois tipos de homologia genética que se encontra na natureza. Dois genes são considerados homólogos quando é claro, pela sua semelhança, que descendem do mesmo gene ancestral por duplicação e modificação subsequente. Se a duplicação ocorreu na mesma linhagem, como acontece quando um trecho de ADN é duplicado no cromossoma, designam-se parólogos. Quando a duplicação ocorreu na divergência de duas linhagens, por exemplo em dois coelhos cujos descendentes eventualmente podem dar origem a espécies diferentes, são genes ortólogos. Em ambos os casos é óbvio como duplicar algo e depois modificar as cópias de forma independente pode aumentar a diversidade. Ou seja, aumentar a informação.

O argumento do Mats é de que as mutações que alteram o que existe não aumentam a informação porque alteram sem acrescentar, e as que copiam não aumentam a informação porque acrescentam sem alterar. Não era preciso um grande salto de dedução para perceber que copiar e depois modificar a cópia acaba por acrescentar algo novo e aumentar a informação. Melhor ainda, aumenta a diversidade, que é aquilo de que a selecção natural precisa*. Que o Mats consiga negar isto que lhe está à frente do nariz mesmo depois de demonstrar o processo enganando-se a copiar o “repetem” é um enorme atestado de, digamos, fé...

*Chamar-lhe informação é apenas um truque criacionista para baralhar a conversa. O que importa é haver coelhos de várias cores, tamanhos e feitios para que a selecção natural possa favorecer aqueles que se adaptam melhor ao sítio onde vivem. A natureza está-se nas tintas para o número de bits de informação que há no ADN dos coelhos e ainda menos se importa com a forma como os contamos.

1- Mats, A duplicação genética acrescenta informação ao genoma? (spoiler: ele diz que não)
2- Wikipedia, Gene duplication

Treta da semana (passada): por trás do referendo.

O projecto de lei da co-adopção foi aprovado na generalidade há oito meses, com votos favoráveis de 16 deputados do PSD, mas a votação final foi sendo adiada sucessivamente (1). Agora, o PSD lembrou-se de referendar a lei aprovada e decidiu que, desta vez, não haveria liberdade de voto. Assim, foi aprovado o referendo sobre adopção e co-adopção por casais do mesmo sexo apesar dos votos contrariados de alguns deputados do PSD.

O referendo é absurdo. Além dos problemas formais e processuais, não há razão nenhuma para decidir esta lei em função da opinião dos eleitores. Parece ser consensual – pelo menos é o que todos alegam – que o mais importante é o interesse da criança. Mas o interesse da criança é uma questão técnica que tem de ser ser decidida caso a caso e não por uma lei que proíba cegamente a co-adopção em casais do mesmo sexo independentemente das circunstâncias. Se é para referendar, que nos perguntem acerca das alterações à lei do trabalho, da gestão da dívida pública ou do orçamento do Estado, porque é nesses casos que há decisões políticas polémicas que afectam toda a gente. Além disso, a Constituição proíbe leis que discriminem em função do sexo ou da orientação sexual. Se o Tribunal Constitucional declarar que não se pode proibir os homossexuais de adoptar nem sequer haverá referendo (2). À luz da Constituição, referendar a adopção por casais homossexuais tem a mesma legitimidade que teria referendar-se a adopção por casais muçulmanos ou de raça mista. O sexo, a orientação sexual, a religião e a raça são atributos que a Constituição proíbe o Estado de discriminar.

O que mais me preocupa neste disparate é o que revela sobre os políticos que temos, pelo menos os mais influentes. Tradicionalmente, seria de esperar dois tipos de motivação nos políticos: a ideologia e a vontade de se manter no poder. A democracia representativa é um bom sistema nestes casos porque exige que os políticos façam o que os eleitores querem para manter o cargo e a ideologia tende a ser conhecida antecipadamente por ser apregoada pelos partidos, defendida publicamente e constar nos programas que apresentam. Mas quem nos governa parece estar muito longe desta norma.

Ideologicamente, a direita portuguesa parece ter perdido tudo da democracia social excepto o nome e, no caso do CDS-PP, o “Centro Democrático Social” até já foi remetido para a sigla, ficando só o “Partido Popular” por extenso. Mais do que isso, a ideologia da direita é um emaranhado de contradições. Tem de se privatizar os transportes públicos porque são um serviço público que, pasme-se, custa dinheiro ao Estado mas é preciso capitalizar os bancos privados com dinheiro público para cobrir os riscos da especulação privada. Para acertar as contas públicas cortam nas pensões de reforma mas, ao mesmo tempo, negoceiam reduções no IRC e prescindem de mais de mil milhões de euros em benefícios fiscais a SGPS (3). O referendo sobre a co-adopção é mais um exemplo desta falta de orientação ideológica. Aprovaram a lei com liberdade de voto, mas agora exigem um referendo sobre a lei que aprovaram e nem sequer deixam que os deputados do partido votem segundo a sua consciência.

Também não parecem estar interessados em votos. Em tempos de crise é preciso tomar medidas impopulares, mas tem sido um exagero. A condução das privatizações, o “ir além da troika”, as remodelações constantes do governo e as saídas “irrevogáveis”, a degradação dos serviços mais importantes do Estado, a trafulhice e a trapalhada em tudo o que fazem. E agora este referendo. Este referendo é uma forma tão eficaz de reconquistar os eleitores como dar uma bofetada na cara de cada um. Com tanta decisão que tem revoltado as pessoas, o que perguntam é se alguém pode adoptar o filho da pessoa com quem casou.

A melhor explicação para isto é que esta gente não quer ficar no governo ou ser ministro. O objectivo dos coelhos, portas, relvas e afins é ser ex-ministro. O governo é só um posto provisório de onde coçar as costas a quem, a seguir, lhes vai aliviar as comichões. Só isto explica, ao mesmo tempo, as medidas que têm tomado, o desprezo pelos eleitores e pela Constituição e os jogos de poder intra-partidários que ocasionalmente transparecem em aberrações como esta do referendo. Anda tudo atrás do tacho e o tacho nem sequer é o cargo.

Isto preocupa-me porque a democracia representativa não está pensada para lidar com estas coisas. Se os nossos representantes forem guiados por uma ideologia clara e estável, conhecemo-la antes de votar e podemos escolher que ideologia política nos governa. Se forem movidos pelo poder político podemos mantê-los na linha porque precisam dos nossos votos para lá ficar. Mas se não têm ideologia e só querem passar pelo poder para embolsar a recompensa estamos tramados. Vão mentir descaradamente para ter votos e depois, quando os castigarmos negando-lhes um segundo mandato, vão-se rir de nós enquanto levam o cheque ao banco.

Não vejo uma boa solução para este problema. Há muitas alternativas, desde uma democracia mais participativa em que se vai referendando tudo até à monarquia onde um tipo é eleito por ser o alegado filho do senhor seu pai, mas a democracia que temos ainda parece ser a menos má. No entanto, se bem que o problema não se resolva, talvez possa ser mitigado distribuindo melhor os votos. Por outras palavras, em vez de pensarmos no nosso voto como a escolha do partido que queremos no governo, pensarmos da distribuição de poderes na Assembleia da República. É verdade que governo que precisa da aprovação da oposição para governar não consegue fazer muita coisa, mas isso não é necessariamente mau.

1- Público, Co-adopção: Há oito meses a dividir o PSD
2-Diário de Notícias, Apreciação do TC sobre perguntas pode impor coadoção
3- Jornal I, Governo esconde benefícios fiscais de 1045 milhões a grandes grupos económicos

terça-feira, janeiro 21, 2014

Os piratas.

O Pedro Rolo Duarte criticou o choradinho de alguns pelo fecho do cinema Londres. Agora vai ser uma “loja de produtos chineses” e os comerciantes da zona protestam «que o espaço deve continuar ao serviço da cultura»(1). Curiosamente, não protestaram há um ano quando o cinema fechou, mas só agora que lhes vai fazer concorrência. Concordo com o Pedro que, se «Queriam o Londres vivo? Fossem lá ver filmes»(2). O cinema Londres não era um “espaço ao serviço da cultura”. Não era museu, escola ou biblioteca pública. Era um negócio, estava ao serviço do lucro e só ficaria aberto enquanto rendesse. Os chineses não têm culpa.

Infelizmente, parece-me que o Pedro também erra, quer no alarmismo quer na atribuição da culpa. Escreve que «Se o Cinema Londres fechou não foi seguramente por vontade de quem se viu confrontado com a falência» mas sim por problemas económicos, entre os quais «a degradação do mercado com a ligeireza da pirataria.» O gráfico abaixo mostra o volume de vendas de bilheteira em Portugal (3) e nos EUA (4) de 2000 a 2012. À parte das flutuações resultantes da instabilidade económica, não é evidente nenhuma degradação significativa.



A sugestão de «Querem cinema de qualidade? Não pirateiem» é ainda mais estranha. A qualidade é muito subjectiva e o Pedro até escreve que alguns amigos abandonaram o Londres devido «à qualidade técnica do Corte Inglês ou de outras salas». Mais importante ainda, mesmo que a pirataria afectasse significativamente o volume do negócio teria de haver uma correlação forte entre qualidade e receitas, o que é pouco plausível quando no topo das vendas estão filmes como The Avengers, Avatar e Twilight Saga: Eclipse (5).

Mas o que me incomoda mais no post do Pedro é condenar a tal “pirataria” como algo imoral. Os amigos que preferiam ir ao Corte Inglês não têm razão para lamentar que o Londres tenha fechado mas o Pedro não lhes nega o direito de não ir ao Londres. Os que pouparam indo menos vezes ao cinema, ou ficaram em casa a ver televisão ou foram passear com a família em vez de ir ao Londres contribuíram para que este falisse sem fazerem nada de ilegítimo. Mas os que «“sacam” filmes da net» com a «ligeireza da pirataria» e querem «borla em vez de preço justo» o Pedro condena por «negligência ou roubo ou simples ignorância». Isto é um disparate.

O Londres faliu porque não gastavam lá dinheiro suficiente. Mas não gastar dinheiro no Londres é um direito de quem tem esse dinheiro para gastar. Não é roubo escolher não ir ao Londres mesmo que isso o faça falir. Isto é consensual quando não se vai ao Londres para ir ao Corte Inglês, para ficar em casa a ler um livro ou para ir à praia com os filhos. Só a tal “pirataria” é que parece ser excepção mas, se o problema fosse privar o Londres de clientes, não se justifica considerá-la mais roubo ou menos legítima do que qualquer outra coisa que não dê dinheiro ao Londres. É certo que a pirataria permite ver o filme que estaria no Londres, mas esta é uma distinção ilusória porque, por um lado, o que importaria para salvar o Londres era vender bilhetes e não o que cada um fizesse em sua casa, fosse ver filmes ou ler livros. E, por outro lado, é consensualmente legítimo ver o filme em casa do vizinho, num DVD emprestado ou por qualquer outra forma legal de usufruir da obra sem pagar nada a ninguém. A diferença é que o filme sai primeiro no cinema e só meses mais tarde é que está legalmente disponível por outras vias. E aí é que está o cerne da questão.

Parte do negócio do cinema é dar ao espectador uma experiência diferente daquela que pode ter em casa. Mas outra parte do negócio depende do poder legal de impedir que o espectador veja o filme quando, onde e como quer. Isto não tem qualquer fundamento na ética, no incentivo à criatividade ou no respeito pela propriedade privada. É pura ganância. Admito que se estas empresas privadas não puderem usar o poder do Estado para restringir o acesso a material publicado é possível que muitos cinemas fechem. Para quem gosta de cinema isto pode ser tão incómodo como foi, para quem gostava de circo ou de teatro, o cinema e a televisão terem acabado com esses negócios. Mas nunca se justificou conceder monopólios legais só por causa disso.

Quando o Pedro diz que o fim do copyright «vai doer» pode ter razão. Mas será simplesmente a dor do mercado a ajustar-se ao equilíbrio natural entre oferta e procura quando desaparecer o poder legal de uns controlarem as escolhas dos outros. O fim de um monopólio é sempre doloroso para alguns. No sentido original, o pirata era o bruto que usava a força para coagir as vítimas a dar-lhe dinheiro e para as privar da sua propriedade. Nesse sentido, a pirataria moderna é proibirem as pessoas de usar a sua propriedade para copiar e partilhar informação com o objectivo de as forçar a pagar algo que, de outra forma, não pagariam. Aquilo que o Pedro condena como pirataria é apenas uma actividade pessoal não coerciva e sem grande impacto económico, apesar das alegações absurdas de que ver filmes de graça é o mesmo que roubar. E os problemas financeiros de negócios como o do Londres – é importante frisar que são negócios, porque cultura é outra coisa – não vêm da “pirataria” pessoal e gratuita mas sim da pirataria que são estes monopólios não impedir a concorrência de outros negócios de entretenimento, como telemóveis, consolas e TV por cabo, que consomem a maior parte do orçamento que as pessoas poderiam gastar em cinema.

1- Público, O histórico Cinema Londres, em Lisboa, vai transformar-se numa loja de produtos chineses
2- Pedro Rolo Duarte, Chorar nos enterros é fácil
3- Pordata, Receitas de bilheteira
4- Box Office Mojo, Yearly Box Office
5- Box Office Mojo, All Time Box Office

sábado, janeiro 18, 2014

Treta da semana (passada): ...entre outros.

A Susana Cor de Rosa é uma mulher excepcional. Ser perito num esoterismo qualquer já é corriqueiro. Reikis, tarots, curas vibracionais quânticas disto e daquilo, já nada disso sobressai porque, nessas coisas, é muito fácil ser perito. O que torna a Susana Cor de Rosa especial entre os seus pares é, além da cor, o número de perícias que acumulou. Tendo «concluído a licenciatura, exercido advocacia e feito uma pós-graduação» decidiu mudar de direcção e «aprender e pôr em prática conhecimentos de física quântica, meditação, cura, xamanismo, pedagogia waldorf, entre outros». Para isso, participou «em formações em Portugal e noutras parte do mundo com cientistas, professores, mestres, terapeutas, pedagogos, coachs entre outros». Agora, o seu «propósito de vida é reeducar os seres humanos para a felicidade […] na área da cura quântica unificada, da inteligência espiritual e emocional, entre outras» recorrendo à sua experiência «como formadora e terapeuta na área da Cura Quântica Unificada, da Inteligência Quântica, Quântica do Coração e para a Alma, crescimento pessoal e espiritual, coaching por valores, entre outras»(1). É, entre outras coisas, um percurso fascinante que tornou a Susana numa profissional muito versátil.

Por um “valor” de apenas 182€, pagável em duas vezes, a Susana pode «corrigir o ADN e instalar nova informação física, e em especial, novos filamentos de luz no seu ADN subtil para implementar novas forças, sentimentos e comportamentos que o beneficiam.» Tal operação tem, alegadamente, muitos efeitos benéficos, desde o «alisamento da pele» à «possibilidade de cura de doenças incuráveis, aumento da criatividade, mais memória e capacidade de concentração, entre outros.»(2) E isto é só para a primeira activação do ADN subtil: «Existem mais dois retiros que pode realizar para fazer as activações de ADN subtil II e IIII». A própria activação é uma entre outras.

A Susana também dá consultas de várias especialidades, desde a cura quântica unificada, na qual «A pessoa é trabalhada na sua energia, através de uma conversa, seguida de um período de descanso em que está relaxada», até à consulta de sucesso, que «é falada e escrita e propicia a interacção entre os participantes». É uma ideia excelente. Muita gente perde tempo com os meios pelos quais pode atingir os objectivos mas a Susana vai directamente ao que interessa. Faz-se uma consulta de sucesso e, zás, já está. Como disse Einstein, «quem tem sucesso tem tudo, e só por 75€ é uma pechincha»*.

Acredita a Susana que «Somos seres ilimitados, poderosos, conectados uns aos outros e à vida, a cada instante, falando uma linguagem comum. […] Segundo Albert Einstein «(...) Tudo é um milagre»...»**. Motivada pela crença no poder ilimitado do ser humano coadjuvado por milagres, a Susana pretende «desenvolver a consciência, expandir o coração, ligar pessoas, revolucionar mentalidades e criar felicidade no mundo» e também fazer uma «ponte entre a ciência, a cura e a espiritualidade»(1). Além de ser uma ponte invulgar, por unir três pontos, acresce a dificuldade de unir a ciência com a tal espiritualidade. A ciência surge de um confronto constante entre, por um lado, a nossa imaginação e capacidade de acreditar, que nos permitem inventar ideias e confiar nas conclusões a que chegamos e, por outro lado, a realidade que nos rodeia e contra a qual se revelam os nossos erros e se desfazem as nossas ilusões. O conhecimento é o resquício das nossas fantasias que ainda é credível depois de embater na realidade. A espiritualidade é metade disto. Tem imaginação, crença, intuição e essas coisas que vêm de nós mas evita qualquer confronto com a realidade. Como terá dito o Einstein desse universo paralelo, «a realidade é uma cena que a mim não me assiste».

Quando se critica este tipo de coisas é comum invocarem que os génios muitas vezes são incompreendidos. Que chamaram louco a Copérnico e se riram de Galileu, por exemplo. Mas pessoas como a Susana Cor de Rosa ajudam-nos a compreender melhor a questão, fazendo-nos lembrar que também chamaram louca à D. Maria I e também se riram do Batatinha.

* OK, Einstein não disse nada disso. Mas nestes assuntos é de praxe citar Einstein mesmo que a citação seja treta.
** Outra coisa que Einstein não disse. Ver Debunking fake Einstein quotes.

1- Susana Cor de Rosa, Apresentação
2- Susana Cor de Rosa, Activação do ADN Subtil. Obrigado pela referência no Facebook.

sexta-feira, janeiro 10, 2014

Treta da semana (passada): Cultura na economia.

Segundo um relatório dos ministérios da cultura e economia da França, a cultura contribui cerca de 3% para o PIB francês e «o valor acrescentado da cultura [57,8 mil milhões de euros] aproxima-se do da agricultura e indústrias alimentares (60,4 mil milhões de euros) [e é] sete vezes superior ao do sector da indústria automóvel (8,6 mil milhões).»(1) À primeira vista é um resultado surpreendente porque sugere que os franceses gastam tanto em literatura e arte quanto gastam em comida. Mas, segundo o relatório, o que se passa é que usaram «uma definição alargada das actividades culturais» que inclui publicidade, parte do negócio dos supermercados por venderem livros e revistas e actividades indirectas como o consumo de electricidade pela indústria audiovisual e as reparações de edifícios históricos (2). Assim, é menos surpreendente que o total disto tudo seja quase tanto quanto a indústria alimentar e maior do que a produção de automóveis.

Mas o que me incomoda não é a inclusão destas coisas na cultura. Pelo contrário. O que me preocupa é o que deixam de fora, e porquê. Por exemplo, o ensino público francês tem um orçamento anual de 64,6 mil milhões de euros (3). É estranho que deixem a educação fora da cultura. Ou a investigação científica, com mais 26 mil milhões (4). Há, infelizmente, uma visão pedante da cultura segundo a qual um filme a preto e branco ou um livro de poesia são cultura mas a matemática ou a química não são. Ainda em Novembro passado, o nosso secretário de Estado da cultura afirmou que «cerca de 10% dos estudantes universitários em Portugal estão em cursos associados à cultura»(5). Não sei o que é que julga que aprendem os outros 90%. Mas não deve ser por pedantismo que o relatório francês exclui tanta coisa que devia incluir no “valor da cultura”, visto que incluem o dinheiro gasto em televisão, publicidade e revistas vendidas nos supermercados.

O critério parece ser o de considerar que só é cultura aquela cujo acesso é restrito e pago, e que o seu valor económico só se mede pelo negócio que se faz à custa dessas restrições e cobranças. É como dizer que o Mosteiro da Batalha só é cultura nas partes com acesso pago e que o seu valor é a receita da bilheteira. Um problema de assumir que cultura é só o que tem acesso pago é que deixa de ser razoável considerar que o dinheiro ganho com isto está a contribuir para a economia. Muito desse valor vem do pagamento de licenças de cópia e distribuição e não paga qualquer bem ou serviço útil. Se déssemos aos restaurantes o poder legal de licenciar a confecção de comida em casa também poderíamos contabilizar os milhões de euros pagos por essa licença e medir a quantos porcento do PIB corresponderia. Mas não seria um contributo para o PIB. Pelo contrário. O mais certo seria reduzir o PIB por canalizar fundos para rendas improdutivas e incentivar a criação de restaurantes que não faziam nada para servir comida de jeito mas apenas lucravam com o negócio do licenciamento. Análogo ao que acontece na tal “indústria cultural”.

Mas o mais preocupante é o efeito insidioso desta concepção de cultura na forma como a sociedade vê as restrições legais ao acesso e à distribuição de informação. Vistas bem as coisas, o peso da cultura no PIB é 100%. As nossas capacidades inatas, como bocejar ou abrir os braços se vamos cair, têm um valor comercial irrisório. Tudo o que contribui para o PIB teve de ser aprendido, ensinado, inventado e copiado. Ou seja, cultura. As técnicas agrícolas, o desenho e fabrico de automóveis e a tecnologia das telecomunicações são tão cultura quanto museus e telenovelas. Infelizmente, alguns têm interesse em ignorar isto porque, nos 97% do PIB que está fora daquela definição que lhes dá jeito, é evidente que a cultura vale muito mais, quer como cultura quer como motor da economia, precisamente quando é partilhada sem restrições.

A cultura tem imensa importância. Sem cultura não há PIB, nem sociedade, nem espécie humana enquanto tal e a preservação e difusão da cultura sempre foi fundamental para o nosso desenvolvimento. Quase se pode medir o progresso de qualquer civilização apenas contando escolas, museus e bibliotecas. Neste momento, com a Internet, bastaria pouco mais que uma alteração da lei para termos uma biblioteca mundial que tornasse toda a nossa cultura acessível a toda a gente. Essa devia ser a missão prioritária de todos os ministérios da cultura. Infelizmente, a malta que controla aqueles empolados 3% do PIB também controla a comunicação social e muitos políticos e sabe propagar esta ideia de que só é cultura o que se vende à unidade.

1- L'Express, La culture rapporte sept fois plus au PIB de la France que l'automobile
2- Ministére de la Culture et de la Cummunication, L’apport de la culture à l’économie en France (rapport)
3 Wikipedia, Education in France
4- Nature, Science safeguarded in French budget
5- governo de portugal, Jorge Barreto Xavier sublinha a importância de ligar a cultura «às políticas de desenvolvimento económico e aos fundos comunitários»

sábado, janeiro 04, 2014

Treta da semana (passada): O professor que ah, e tal...

De vez em quando aparece-me esta história na caixa de email ou na parede do Facebook. Reza assim: «Um professor de economia em uma universidade americana disse que nunca havia reprovado um só aluno, até que certa vez reprovou uma classe inteira» quando uns alunos insistiram que seria mais justo repartir a riqueza de forma socialista. «O professor então disse, “Ok, vamos fazer um experimento socialista nesta classe. Ao invés de dinheiro, usaremos suas notas nas provas.” Todas as notas seriam concedidas com base na média da classe, e portanto seriam ‘justas’.» Como resultado, ninguém quis estudar e acabou tudo reprovado porque estavam todos a encostar-se aos colegas. Moral da história, «o experimento socialista falhou porque quando a recompensa é grande o esforço pelo sucesso individual é grande. Mas quando o governo elimina todas as recompensas ao tirar coisas dos outros para dar aos que não batalharam por elas, então ninguém mais vai tentar ou querer fazer seu melhor. Tão simples quanto isso»(1). Isto não é uma treta. É uma carrada delas.

Em primeiro lugar, o dinheiro não é um bom análogo dos resultados da avaliação porque a sua distribuição tem pouco que ver com mérito ou esforço. Um passou décadas a trabalhar arduamente para ganhar o ordenado mínimo; outro é secretário de Estado porque conheceu aqueles numa universidade privada e entrou para aquele partido; outro já nasceu rico; e assim por diante. Uma ideia central dos socialismos é precisamente a de distribuir os recursos em função do mérito e das necessidades e não, como acontece no capitalismo, em função da sorte, do poder, da família ou das cunhas. Nisto, o sistema de avaliação pelo qual cada um tem uma nota conforme o seu desempenho é muito mais próximo do ideal socialista do que da realidade capitalista. Para aproximar a realidade do capitalismo precisávamos de um sistema de avaliação onde a família e as amizades contassem 90% na nota final.

Em segundo lugar, o dinheiro não é apenas uma recompensa. É também o factor principal para determinar o esforço necessário e até a possibilidade de obter certos resultados. É muito mais fácil ter um lucro de um milhão começando com cem milhões do que começando do zero. Também nisto a universidade é muito mais socialista do que a rábula quer admitir. Numa universidade decente, todos os alunos têm igual acesso às salas, mesas, laboratórios, biblioteca e tempo dos professores. Socialismo. Se a universidade funcionasse como um capitalismo os alunos teriam de pagar tudo, item a item, e os alunos mais ricos teriam muito mais possibilidades do que os pobres. É o que acontece quando não há ensino público gratuito ou apoio estatal às famílias pobres que queiram ter os filhos na escola. Ou seja, quando não há socialismo. No entanto, longe de ser um fracasso, parece ser consensual que a educação de cada um não deve depender totalmente do dinheiro que a família tem disponível.

Finalmente, a ideia de trabalhar em conjunto e partilhar a recompensa não é estranha aos alunos do ensino superior. Há muitos trabalhos de grupo que contam para avaliação. Se bem que haja casos em que um se encosta aos colegas e leva a nota de borla, a realidade é que, em grupos pequenos e minimamente coesos, este tipo de colaboração é perfeitamente possível e até benéfico. Tanto que os modelos económicos, mesmo dos sistemas mais capitalistas, consideram que o agente económico é o agregado familiar e não o indivíduo. Cada família de pais e filhos normalmente funciona em socialismo.

Esta história tenta provar que o socialismo não funciona partindo de um sistema cujo funcionamento normal é muito mais socialista do que capitalista. Depois deturpa o método de avaliação de uma forma que não se aproxima de sistema económico nenhum. Nunca encontrei um sistema económico que uniformizasse os indicadores de desempenho. E, com base nisto, relata um cenário que, na minha experiência, é absurdo. Se a nota final de cada aluno fosse a média da turma, em geral aprovavam todos os alunos inscritos. Isto porque, por um lado, os alunos facilmente se organizariam para estudar em conjunto e, por outro, os alunos que vissem não conseguir ter positiva nos seus testes anulariam a inscrição para não prejudicar os colegas. As excepções seriam tão poucas que não teriam impacto no resultado. Com grupos pequenos formados por pessoas com interesses comuns e contacto regular, até este modelo forçado de colaboração funcionaria.

Se bem que o socialismo seja perfeito para grupos pequenos e coesos, como um agregado familiar, ter direitos de propriedade partilhados sobre os meios de produção não é compatível com a inevitável divergência de interesses em grupos grandes e heterogéneos e o planeamento centralizado não consegue lidar com a diversidade de valores. Por isso, o socialismo puro não funciona em grande escala. Mas também é ingénuo julgar que a liberdade de transaccionar bens e serviços, por si só, resulta num sistema justo em que todos recebem de acordo com o seu esforço e mérito. Pelo contrário. Essa liberdade amplia inevitavelmente qualquer vantagem relativa e o resultado é que a riqueza se acumula numa pequena minoria em detrimento não só da maioria mas da própria estabilidade do sistema. Neste momento, os milionários, 0.7% da população mundial, detêm 41% da riqueza total enquanto que os dois terços da população com menos recursos, 3.2 mil milhões de adultos*, repartem entre si 3% do total da riqueza (2). O capitalismo de mercado livre é necessário para lidar com a complexidade de interesses e valores num planeta com milhares de milhões de pessoas mas só funciona se assentar uma base socialista que garanta que parte da riqueza é distribuída de acordo com o mérito e as necessidades. Uma disciplina em que a nota de cada aluno fosse função de quanto pagassem ao professor também não funcionaria bem. Excepto para o professor.

* Nestas estatísticas só contam os adultos. Se considerarmos que a população dos países mais pobres tende a ser mais jovem, a desigualdade é ainda maior.
1- E.g.: Professor que nunca havia reprovado um só aluno
2- Relatório da Credit Suisse, via Guadian: The world's wealthy: where on earth are the richest 1%?

Contra a fome.

Nas últimas semanas tenho encontrado várias vezes pessoas nos supermercados em campanha contra a fome. Desde organizações grandes como o Banco Alimentar a escolas locais, reúnem-se voluntários que distribuem sacos de plástico e recolhem o que as pessoas quiserem comprar para ajudar quem precisa. É difícil criticar estas iniciativas, quer pelo entusiasmo sincero da maioria dos participantes quer pelo argumento de que alguma coisa se tem de fazer quando há gente a passar fome. Infelizmente, estas medidas são uma forma injusta de disfarçar o problema sem o resolver.

O problema fundamental não é a falta de comida. É a má distribuição de dinheiro. Em Portugal, há comida que chegue para todos que a possam comprar e a fome é apenas uma de muitas consequências das desigualdades que permitimos. Oferecer comida não resolve este problema porque, além de ser uma medida avulsa e pontual, quem não tem dinheiro continua sem voz no mercado. Se há coisas, como a saúde, a educação e a justiça, que não podem ficar à mercê da iniciativas privadas, há outras para as quais um mercado livre é a forma mais eficiente e justa de distribuir os recursos por quem mais beneficiar deles. Não vai tudo usar roupa da mesma cor, comer as mesmas coisas ou ler os mesmos livros e não é uma comissão de peritos que vai decidir quem recebe o quê. Com o dinheiro, cada um pode informar os outros daquilo que quer e quanto está disposto a dar em troca e, assim, o mercado adapta-se colectivamente às necessidades de cada indivíduo. Mas apenas do indivíduo que tenha dinheiro. Quem não tem não interessa, e esse é o problema fundamental. Essa extraordinária invenção que é o mercado só funciona bem se garantirmos que todos podem participar e a exclusão não se combate com um pacote de arroz e uma lata de feijão.

Estas recolhas de alimento são também uma medida injusta. A forma mais justa de redistribuir é cobrando de quem tem mais para dar a quem tem menos. É assim que se obtém o maior benefício com o menor sacrifício. Mas as pessoas que vão ao supermercado e enchem os sacos nestes peditórios não são as mais ricas. A maioria nem é de classe média. São remediados, para quem dar o pacote de arroz ou a lata de feijão não é um sacrifício insignificante. Além disso, parte do dinheiro que pagam em nome da caridade vai para os lucros dos supermercados, propriedade dos mais ricos do país. Isto não é redistribuição. Nem sequer é caridade. É negócio.

Em teoria, os problemas sociais de fundo deviam ser independentes do problema urgente de dar comida a quem tem fome. Em teoria, podia-se distribuir o arroz e o feijão para desenrascar enquanto se eliminava as causas do problema. Em teoria. Infelizmente, na prática, a caridade e a justiça acabam por ser mutuamente exclusivas. Como um acto só pode ser caridade se o beneficiário receber mais do que é seu direito receber, só pode reclamar a virtude da caridade quem assumir que está a fazer mais do que a sua obrigação. É por isso que dar um pacote de arroz parece muito mais virtuoso do que pagar impostos, com a vantagem de sair bem mais barato. É também isto que explica que as mesmas pessoas que fazem grande aparato de ajudar os pobrezinhos se oponham publicamente à redistribuição que combateria a pobreza. A Isabel Jonet, por exemplo, até considera perverso «As pessoas passaram a achar que têm direito a todas as prestações sociais»(1). É perverso porque aos ricos sobram muito poucas virtudes além da caridade. Se os pobres começam a pensar que têm direito a um apoio do Estado está tudo estragado. Pior ainda, além de estragar o arranjinho da caridade, a ideia de justiça social pode comprometer os benefícios fiscais dos ricos (2). Outro exemplo da incompatibilidade entre caridade e justiça é o novo plano da coligação de democratas cristãos e social-democratas para ajudar os pobres. Quem estiver mesmo aflito, desempregado há mais de um ano, sem subsídio de desemprego e com filhos terá o benefício de poder trabalhar 8 horas por dia recebendo menos do que o ordenado mínimo (3). Isto só pode ser caridade porque de justo não tem nada.

Se a caridade fosse ideologicamente neutra não me preocupava. Mas não é. É quase sempre uma maquilhagem aplicada à injustiça para que pareça virtude. Assenta na ideia de que a miséria é um estado natural ou parte de algum plano divino em vez de um mal a combater. Assim, é virtude alimentar os pobres, até porque sem comida não trabalham, mas seria perverso dar-lhes meios para negociarem o preço do seu trabalho sem a ameaça da miséria. Cambada de preguiçosos, ainda nos iam exigir o ordenado mínimo só para recolher o lixo que fazemos.

1- TSF, Isabel Jonet alerta para «efeito perverso» do Estado Social
2- Ocultados 1.045 milhões em benefícios fiscais a grandes grupos
3- Notícias ao Minuto, Governo dá trabalho abaixo do salário mínimo