Treta da semana (passada): Cacique Cobra Coral.
Um leitor brasileiro enviou-me notícias de uma interessante parceria público-privada no Rio de Janeiro, cujo prefeito acabou de «renovar o contrato com a Fundação Cacique Cobra Coral. Esta fundação tem poderes mentais que desviam a chuva»(1). Segundo o site da fundação, «A Fundação Cacique Cobra Coral foi criada para intervir nos desequilíbrios provocados pelo homem na natureza. Fundada por Ângelo Scritori e tendo a frente sua filha Adelaide Scritori», uma médium que “incorpora” o espírito do Cacique Cobra Coral, alegadamente o mesmo espírito que já fora «Galileu Galilei e Abraham Lincoln» antes de se tornar cacique. A Adelaide nasceu «acompanhada de uma profecia» do espírito do Padre Cícero que, manifestando-se por intermédio do pai dela, anunciou que a Adelaide teria «poderes para se comunicar com [...] um ente poderoso o suficiente para alterar fenômenos naturais»(2).
Além do ridículo de pagar ao espírito do cacique para levar a chuva para outras bandas, há também um aspecto trágico nesta parvoíce. As chuvas torrenciais no Estado do Rio de Janeiro são um perigo real para muita gente que vive em zonas sensíveis a inundações e derrocadas. Em Janeiro de 2011, por exemplo, morreram mais de novecentas pessoas num só dia de chuva (1). Investir em espiritismos quando há necessidades tão prementes devia ser crime.
Independentemente da gravidade das consequências, não se deve gastar o erário neste tipo de coisas. Nem é por serem fantasia. É legítimo haver investimento público em arte e cultura; não é obrigatório que o Estado invista apenas no que é factual ou útil no sentido prático. E, ao que parece, estas coisas do espiritismo têm muitos adeptos no Brasil, provavelmente ainda mais do que por cá. Mas não se deve gastar dinheiro público nisto porque o investimento presume que há mesmo espíritos com esses poderes, e pessoas especiais que os contactam, sem que haja quaisquer evidências objectivas de que tal premissa seja verdadeira. Não se pode provar que seja falsa, mas nada indica que seja verdade e, por isso, é um mau investimento.
Por cá temos um problema análogo. Não parece tão ridículo, talvez por ser mais discreto ou talvez pelo hábito, mas é fundamentalmente o mesmo. É o dinheiro que o Estado gasta com algumas organizações religiosas, especialmente a Igreja Católica. Desde isenções fiscais ao financiamento da propaganda religiosa nas escolas públicas, passando pelas capelanias dos hospitais e forças armadas, há muito dinheiro que vai dos impostos para estas organizações por uma premissa tão infundada como a da Adelaide falar com o espírito do cacique e este intervir na meteorologia. É a premissa de que os sacerdotes de algumas religiões falam com um Deus que lhes comunica doutrina e, ocasionalmente, faz um milagre ou outro.
Isto não tem nada que ver com a liberdade de crença, que não nego a espíritas ou religiosos, nem com a tradição e cultura de cada povo. Não me choca que o Estado invista na recuperação de mosteiros ou igrejas nem me oporia a uma disciplina sobre religiões na escola pública. Já várias vezes tive de relatar aos meus filhos trechos da Bíblia para poderem perceber referências que surgem em filmes ou livros, por exemplo. As religiões são uma parte significativa da nossa história e cultura e penso que o Estado deve contribuir para preservar essa memória. Mas isso não é o mesmo que pagar professores escolhidos por organizações religiosas, padres em hospitais e quartéis ou espíritas para fazer a chuva parar. Esses investimentos pressupõem mais do que um significado cultural ou valor histórico. Pressupõem que essas pessoas têm mesmo uma ligação especial ao sobrenatural e essa premissa é treta.
1- Jornal do Brasil, Garotinho condena convênio entre Paes e Fundação Cacique Cobra Coral. Obrigado pelo email com o link.
2- Fundação Cacique Cobra Coral, A Fundação