O crime.
No dia 27 de Outubro, o João Galamba perguntou no Twitter «Há link para o Porto-Sporting?»(1). Várias pessoas prontamente responderam com ligações para sites que disponibilizavam streams de canais como o da Sport TV. Mais recentemente, a ACAPOR decidiu solicitar a «renúncia de mandato ao Sr. Deputado João Galamba»(2) por pedir «à comunidade que lhe facultasse um link com a transmissão não autorizada do jogo entre o FC Porto e o Sporting CP»(2). A ACAPOR alega que o deputado teria violado o disposto na alínea e) do artigo 14º do Estatuto dos Deputados, o dever de «Respeitar a dignidade da Assembleia da República e dos Deputados» e que este pedido seria uma «incitação à prática de crime à comunidade». Segundo algumas notícias, a FEVIP acusou o deputado de «solicitar links ilegais para o visionamento do jogo»(3).
Quem ler o tweet do João Galamba com alguma atenção – não é um texto extenso – notará que ele não pediu um link ilegal. Perguntou se havia um link, apenas isso, não exigindo que fosse ilegal. Outro detalhe pertinente é que não parece existir na legislação portuguesa o conceito de “link ilegal”. O Uniform Resource Locator, aquela coisa que começa com “http://” e forma o link, é um endereço na World Wide Web. A nossa legislação não parece prever que um endereço em si possa ser ilegal por muito grave que seja o crime lá cometido.
Além do João Galamba não ter pedido links ilegais e não parecer existir tal coisa na nossa legislação, também não se percebe como é que ver o jogo seria ilegal. A carta da ACAPOR alega que a ilegalidade advém de ser «uma transmissão desportiva com exclusividade de visionamento por subscrição paga»(1) mas esta afirmação está certamente incorrecta porque a Sport TV só pode ter negociado o direito exclusivo de transmissão e não o direito exclusivo de visionamento. Ou seja, pode haver um contrato que regula quem está autorizado a transmitir o jogo, onde o contrato tiver valor legal, mas nunca um contrato que regule quem pode legalmente olhar para a televisão ou para o ecrã do computador durante o jogo. É certo que seria muito vantajoso para os clubes de vídeo poder cobrar o aluguer por cabeça, em função do número de pessoas que fosse ver o filme mas, por enquanto, a lei não parece permitir essa modalidade. Não se pode culpar o João Galamba por um crime de “visionamento não autorizado” quando não existe tal coisa na lei. A transmissão do jogo pode carecer de autorização. O visionamento não.
Nem sequer o streaming do jogo pelo site que o João Galamba alegadamente teria visitado é necessariamente ilegal. Por exemplo, um dos endereços fornecidos em resposta ao pedido do João é «http://www.sporttvhdmi.com/Sporttv1.html»(1). Segundo a WHOIS, este URL remete para um servidor localizado em Kirkland, no estado de Washington, EUA. Ao abrigo do Digital Millenium Copyright Act, para que o provedor deste serviço não cometa qualquer ilegalidade basta que bloqueie o acesso a conteúdo cuja transmissão viole a lei vigente nos EUA após a denúncia de quem tenha o direito legal para impedir essa transmissão. Se o stream está disponível é porque, provavelmente, nenhuma lei vigente nos EUA está a ser violada. Ou porque ninguém ainda denunciou essa transmissão como ilegal ou porque o contrato de exclusividade celebrado entre a SportTV e clubes portugueses não tem valor legal nos EUA. Se alguém pode ter cometido uma ilegalidade foi quem enviou esse stream para o servidor nos EUA. No entanto, não se pode averiguar se esse acto foi mesmo ilegal sem saber quem o praticou, onde o praticou e que legislação vigora no país onde o acto foi praticado, pois nem todos os países pertencem à OMPI. Seja como for, esta questão não parece ser da responsabilidade do João Galamba, porque se fosse ele quem estava a fazer o upload do stream provavelmente não teria pedido o link pelo Twitter.
Estas considerações são importantes porque, segundo o artigo 180º do Código Penal, «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias», com pena agravada se o lesado for membro de um órgão de soberania. Se bem que discorde, em geral, de se legislar a ofensa da “honra ou consideração” por ser demasiado subjectiva, concordo que se puna a imputação infundada da prática de um crime por lesar objectivamente a reputação do visado e a presunção da sua inocência. Por isso, parece-me grave que a ACAPOR impute publicamente ao João Galamba a prática de instigação pública a um crime – punível com até 3 anos de prisão pelo artigo 297º do código penal – sem qualquer indício de que o João Galamba tenha praticado ou incitado à prática de actos ilegais.
Pondo de parte as palhaçadas destas associações inúteis, há uma mensagem importante neste episódio ridículo. É revelador como abandonaram qualquer tentativa de legitimar as suas reivindicações com apelos aos direitos de autor, à protecção da cultura, ao incentivo à criatividade e essas desculpas que normalmente invocam para justificar os monopólios sobre a distribuição. A carta consiste apenas de um choradinho pela perda de lucros e a acusação, infundada, de que perguntar onde se pode ver o jogo de futebol que uma empresa apropriou como exclusivo seu é uma incitação ao crime. A reivindicação da ACAPOR ilustra bem dois problema do sistema que esta associação defende. Por um lado, o absurdo, a injustiça e o custo para a sociedade de conceder direitos exclusivos sobre informação que se torna pública e, por outro, os extremos a que a lei teria de chegar para proteger esses monopólios, ao ponto de ter de ser crime “visionar sem autorização”, divulgar um URL ou perguntar «Há link para o Porto-Sporting?»
1- Twitter, 27-10-2013, 20:24
2- ACAPOR, ACAPOR solicita renúncia de mandato ao Sr. Deputado João Galamba
3- Exame Informática, João Galamba e o link pirata para ver derby
4- WHOIS, sporttvhdmi.com