A incompreensão profunda das diferenças cruciais.
O David Marçal escreveu ser «uma péssima notícia» a de que o governo vai certificar cursos e profissionais das medicinas alternativas (1) porque isto «Induz o público em erro, levando as pessoas a pensarem que estas terapias têm uma validade equivalente à medicina convencional, o que não é verdade.»(2) O Desidério Murcho opôs-se ao post do David «por enfermar de uma incompreensão profunda de uma diferença crucial», alegadamente «uma enorme, uma gigantesca diferença entre argumentar e mostrar que não funciona, e impedir as pessoas de a praticar, ensinar, divulgar, etc.»(3) Parece-me que a incompreensão está mais do lado do Desidério.
No texto do David não encontrei nada que sugerisse proibição, repressão ou censura destas ideias. Encontrei apenas a opinião de que o Estado não deve certificar coisas como homeopatia, e nisso estou inteiramente de acordo. Penso que estamos todos de acordo que quem criar um curso de Ecologia de Gambozinos não deve ser preso, silenciado ou proibido de ensinar tal coisa. Mas o que o David defende, e eu concordo, é que não seria correcto o Ministério da Educação certificar cursos ou profissionais de Ecologia de Gambozinos porque não há qualquer critério objectivo para identificar autoridades nessa matéria. Isto não é «Impor aos outros as nossas ideias»(3). É simplesmente o problema de não existirem gambozinos e, por isso, não haver maneira de certificar gambozinices. O Desidério está a confundir a oposição a que o Estado certifique disparates com a repressão de ideias.
Mas não é só essa confusão. Escreve também o Desidério que «A única coisa relevante é haver pessoas que querem consumir homeopatia. Essas pessoas têm o direito de errar e é por isso que é irrelevante, para efeitos legislativos, saber se a homeopatia é “científica” ou não»(3). Depende dos efeitos legislativos que estamos a considerar. A falta de fundamento científico (sem aspas) para a homeopatia não justifica que se proíba as pessoas de tomar gotas de água ou comprimidos de sacarose. Mas justifica que se proíba a venda de preparados homeopáticos como se fossem medicamentos, porque se não tratam nada isso será publicidade enganosa. Ou seja, o Desidério está a confundir o direito de fazer anéis de latão com a aldrabice de dizer aos compradores que são de ouro.
O Desidério engana-se ao julgar que «A homeopatia não prejudica seja quem for, involuntariamente.» Atrasos no tratamento de problemas graves, como o cancro, sobrecarregam o sistema de saúde. O tratamento ineficaz de doenças infecciosas põe em risco a saúde de terceiros, tal como a má prevenção, por exemplo com oscillococcinum em vez de vacinas. Alem disso, muitos produtos homeopáticos são dados a crianças por decisão dos pais. Mas neste ponto o Desidério está apenas mal informado. A confusão é esta: «É irrelevante se a homeopatia realmente ajuda as pessoas ou as prejudica, dado que as pessoas a escolhem em liberdade.» Aqui o Desidério confunde duas noções de liberdade crucialmente diferentes.
Uma é a liberdade como mera ausência de impedimentos externos. Se o Desidério andar à noite numa rua escura pode cair num buraco destapado. Neste sentido, podemos dizer que é livre de cair porque nada impede que o faça. Mas esta liberdade não é necessariamente boa. O outro sentido, o bom e crucialmente diferente, é aquele em que o Desidério só cai no buraco se o deseja consciente das consequências dessa escolha. Se cai por não saber que tiraram a tampa é queda livre mas não é vontade livre. Nas medicinas alternativas passa-se o mesmo. Quem toma um preparado homeopático porque o comprou na farmácia e está convencido que aquilo cura cai num buraco que teria escolhido evitar se soubesse que aquilo não serve para nada.
Finalmente, parece que o Desidério confunde um outro detalhe. «Isto porque sempre que excluímos dos nossos arranjos legislativos quem acredita nisto ou naquilo ou quem vive desta ou daquela maneira, estamos a oprimir essas mesmas pessoas, não lhes reconhecendo o direito a sentirem-se tão realizadas e aceites quanto nós mesmos.» A certificação de cursos e profissionais não tem como propósito fazer as pessoas sentir-se aceites ou realizadas. O objectivo é proteger o consumidor. Por exemplo, para que quando está doente e consulta um profissional de saúde possa confiar que este sabe diagnosticar e tratar doenças.
O que o David Marçal defende não é uma imposição de ideias. Mesmo sem a certificação oficial da homeopatia e afins as pessoas seriam livres de pensar o que quisessem. Também não é a proibição da prática de disparates; é apenas que o estado não seja cúmplice na venda enganosa de disparates inúteis como se fossem tratamentos eficazes. E não é um ataque à liberdade das pessoas. Pelo contrário, o problema que o David Marçal aponta é que a certificação estatal destas tretas retira liberdade de escolha porque induz as pessoas em erro. Ironicamente, o título do post do Desidério é «Em defesa da aldrabice.» Mais uma confusão entre dois conceitos crucialmente diferentes. Uma é a aldrabice no sentido de trapalhada. A essa todos têm direito. Mas outra, bem diferente, é a aldrabice ardilosa que serve para enganar. Essa não é um direito. É uma violação da tal liberdade que o Desidério diz defender, e é crucial distinguir cuidadosamente entre a liberdade de escolher e a liberdade de aldrabar os outros.
1- Público, Vai ser preciso tirar um curso para praticar acupunctura
2- David Marçal, Regulamentação das medicinas alternativas é uma aldrabice convencional
3- Desidério Murcho, Em defesa da aldrabice.
Adenda: os gambosinos (com s) afinal existem. Obrigado, D. Barbosa, por esta espantosa novidade. No entanto, não são o mesmo que os gambozinos (obrigado, António Parente).