domingo, outubro 14, 2012

O caso ACAPOR.

No ano passado, a ACAPOR entregou à PGR duas mil queixas contra “piratas informáticos” identificados apenas pelo endereço IP, data e hora dos alegados crimes. Trinta queixas foram pela divulgação indevida dos emails da ACAPOR e as restantes por violação de direitos de autor. No mês passado a PGR notificou a ACAPOR de que todas as queixas tinham sido arquivadas (1). A ACAPOR critica que «o Ministério Público não requereu a identificação dos titulares dos IP’s apontados nas queixas porque tal seria “impossível em face do número de IP’s e do que em termos de trabalho material e gastos tal pressupõe (…)” . [P]ara justificar a inércia de nada fazer existem vários apontamentos trágico-cómicos, como seja [...] não ser público e notório que os titulares das obras não cedem os direitos para que as mesmas sejam partilhadas em redes P2P [...] ou ainda a tentativa de fazer acreditar que nenhum crime cometido na internet pode ser investigado face à “difusão do Wireless e a facilidade de acesso à internet, designadamente por recurso aos Cybercafés”» (2).

O despacho da PGR é bem mais razoável do que a ACAPOR dá a entender. Primeiro, as trinta queixas de violação de correspondência privada foram arquivadas porque a ACAPOR não forneceu à PGR os elementos pedidos pelos investigadores para averiguar se a correspondência era mesmo privada ou apenas assuntos da associação. Sem a colaboração do queixoso, não me parece estranho que a investigação seja arquivada. Aparentemente, a ACAPOR concorda, visto que no comunicado apenas menciona as queixas por violação de direitos de autor.

A ponderação dos custos da investigação e probabilidade de identificar os culpados também é correcta, e penso que a ACAPOR até concordaria se os detalhes fossem diferentes. Por exemplo, segundo o código penal, a condução perigosa é punível com até três anos de prisão, a mesma moldura penal da partilha de filmes e músicas. Mas se entregar na PGR queixas, por condução perigosa, contra dois mil indivíduos desconhecidos e identificados apenas pela matrícula, data e hora de cada ocorrência, suspeito que me mandam dar uma curva. A matrícula identifica o carro e não o condutor, investigar dois mil proprietários de automóveis para determinar se estavam a conduzir nos momentos referidos teria um custo enorme, e a probabilidade de conseguir provar o crime específico que a queixa refere é quase nula. Não se justifica o custo de tal investigação. É claro que se seguissem estes condutores durante uns tempos provavelmente iriam apanhá-los em flagrante numa contra-ordenação qualquer, mas isso já não teria nada que ver com a investigação dos crimes mencionados na queixa.

Além disso, enquanto a condução perigosa é sempre crime e uma matrícula corresponde sempre ao mesmo carro, a partilha de ficheiros só é crime se não for autorizada e os endereços IP são quase todos dinâmicos. Não detendo direitos sobre os ficheiros alegadamente partilhados, a ACAPOR não tem legitimidade para decidir se há ou não crime na partilha, e a investigação criminal não pode assumi-lo só porque a ACAPOR o diz. Além disso, a ACAPOR recolheu os endereços “de sites”(3), provavelmente trackers, o que é pouco fiável porque qualquer pessoa pode submeter qualquer endereço nesses “sites”, mesmo que não seja o seu, e cada endereço pode ficar registado no “site” mesmo depois de já ter sido atribuído a outra pessoa. Com um fundamento tão fraco e evidências tão dúbias, parece-me justo que as queixas da ACAPOR tenham sido arquivadas. Além disso, por razões práticas, não é boa ideia incentivar este comportamento de enviar milhares de queixas indiscriminadas de cada vez.

Agora a ACAPOR pergunta «Quem vai querer alugar um DVD se pode na mesma hora sacá-lo da internet e vê-lo, sem pagar nada a ninguém, tudo na máxima legalidade?» Eu diria que praticamente ninguém. Mas este é um problema comercial para ser resolvido pelos comerciantes. Não é um problema para leis, polícias e tribunais. E o próprio comunicado da ACAPOR sugere uma medida imediata. «[E]m Portugal, na realidade, quem paga para ter DVDs, Cds, livros, videojogos, programas informáticos, ou é estúpido ou é benemérito. O problema é que a indústria depende dos estúpidos e dos beneméritos para continuar o seu caminho.» Eu não tenho muito jeito para o negócio mas, intuitivamente, parece-me que chamar estúpidos aos clientes não é boa ideia. Especialmente quando não o são.

Quem não é estúpido sabe que o serviço de distribuir filmes, músicas e software não tem qualquer valor. O serviço que o clube de vídeo presta vale exactamente zero, e ainda custa o tempo e trabalho de lá ir. Quem gosta de música, livros e programas informáticos sabe que o que custa, e vale a pena pagar, é o serviço de criar as obras. O que vale é o original, que é só um, o primeiro de todos. Não são as cópias que os distribuidores rotulam de “originais” só porque cobram dinheiro por elas mas que são tão cópias como quaisquer outras. É precisamente porque não são estúpidos que muitos estão dispostos a pagar aos criadores para criarem (4). A ACAPOR quer salvar pela multa o seu negócio inútil da distribuição, entregando a fiscalização da Internet «a uma entidade administrativa»(2). Além de ser uma intromissão inaceitável na nossa vida pessoal, isto não resolve nada. A indústria clássica de distribuição está ultrapassada e não há lei que a salve. Por outro lado, a criatividade floresce graças à mesma tecnologia que está a lixar a ACAPOR. Se querem ter um negócio com sucesso vendam alguma coisa que valha a pena comprar. Sejam criativos. Porque isso de vender o acesso à cópia já deu o que tinha a dar.

1- Despacho disponível no Público, DespachoDIAP.pdf.
2- ACAPOR, Ministério Público torna Portugal no único país da União Europeia onde partilhar filmes na Net é legal
3- Fórum do PPP, ACAPOR ameaça processar Partido Pirata por calúnia.
4- Por exemplo, o Kickstarter, em três anos e pouco, angariou 350 milhões de dólares de dois milhões e meio de pessoas para financiar trinta mil projectos.

64 comentários:

  1. Olha o que já aparece nos livros da 4ª class em espanha:

    http://www.bitaites.org/porreiro-pa/educacao-e-non-sense/?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+bitaites%2Fblog+%28Bitaites%29

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  2. Flávio,

    Lindo... e pela fonte, fui dar a este video. Eu até acho que estas coisas são bom sinal. Por um lado, mostram o desespero dos detentores de monopólios (não faz sentido chamar a isso direitos). Por outro, são bons exemplos de como a concessão desses monopólios é asneira.

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  3. Então achas que o ónus da investigação cabe ao queixoso? :) Pelo menos num Estado de Direito, o ónus da investigação cabe, justamente, ao Ministério Público e às polícias a quem o caso for distribuído. No caso português, até é proibido fazer investigação por conta própria para «auxiliar» a justiça...

    Claro que isto são leis antigas que funcionam bem no «mundo atómico» mas que requerem adaptação ao «mundo digital». Se me assaltam a casa e não faço ideia de quem foi, posso colocar uma queixa contra «partes incertas». É evidente que se sei o nome do assaltante a justiça será um pouco mais rápida. Mas o nosso sistema de justiça parte do pressuposto que os profissionais da investigação forense são capazes de identificar os assaltantes melhor do que os cidadãos comuns — porque supostamente têm mais meios e recursos (jurídicos, financeiros, de experiência profissional forense, e meios humanos).

    No meio digital claro que as coisas se complicam um pouco. Se me «entram» no computador e me «roubam» todos os dados — e até sei que isso foi feito e posso prová-lo com logs — mas não faço ideia de quem foi, deveria, em teoria, ter o direito de me queixar mesmo com informação incompleta. Claro está que a Unidade de
    Telecomunicações e Informática da PJ, embora tenha algumas mentes brilhantes, tem falta de recursos humanos, e
    é legítimo que rejeitem a investigação de um processo cujos dados são extremamente vagos e cuja prova seja muito difícil.

    Quanto ao resto, eu continuo estúpido e benemérito porque acho que os autores têm direito a serem remunerados pelo seu trabalho.

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  4. Já agora Ludwig, aqui está o artigo do TorrentFreak sobre isto. À objecção do chefe da ACAPOR que as queixas foram arquivadas porque "davam muito trabalho", o autor oferece este comentário:

    «Another way to frame it is that the prosecutor adapted the law in the interest of the public at large, which is generally speaking not a bad idea.»

    :-)

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  5. Miguel,

    Há uns tempos a minha casa foi assaltada. Fizemos queixa contra desconhecidos, a polícia esteve lá a tentar recolher impressões digitais e o caso acabou arquivado. Em teoria poderiam ter feito muito mais. Recolhido todos os cabelos para analisar o ADN, entrevistado todas as pessoas do prédio para ver se tinham ouvido alguma coisa, e a que horas. Verificar alibis de todos os que pudessem saber que não tinhamos fechado a porta à chave nesse dia, etc. Mas isso seria uma investigação demasiado dispendiosa e retiraria recursos de outras possivelmente mais importantes. Portanto, acho razoável que a tenham arquivado. Não por achar que tenho eu o dever de investigar, mas porque a investigação exigiria demasiado trabalho e demasiada intromissão na vida de presumíveis inocentes.

    É exactamente esse que penso que deve ser o resultado se alguém entrega duas mil matrículas queixando-se de condução perigosa ou dois mil endereços IP queixando-se de violação de direitos de autor.

    «Se me «entram» no computador e me «roubam» todos os dados — e até sei que isso foi feito e posso prová-lo com logs — mas não faço ideia de quem foi, deveria, em teoria, ter o direito de me queixar mesmo com informação incompleta.»

    E tens. Se me entram em casa e me roubam dinheiro e outros pertences tenho todo o direito de me queixar. Foi o que fiz, e a polícia até foi muito prestável nisso. Mas há limites para o que podem fazer na prática, e avisaram-me logo que era muito improvável aquilo dar em alguma coisa.

    Nota, no entanto, que a ACAPOR nem sequer pode mostrar que ocorreu um crime. Só está a dizer que descobriu nuns trackers aqueles IP registados como partilhando certos ficheiros, mas nem tem provas de que os ficheiros não podem ser legalmente partilhados nem de que esses endereços IP os estavam a partilhar.

    «Quanto ao resto, eu continuo estúpido e benemérito porque acho que os autores têm direito a serem remunerados pelo seu trabalho.»

    Eu penso que toda a gente tem o direito de ser remunerado pelo seu trabalho (não acho que os “autores” sejam uma raça à parte), mas só têm esse direito quando há um contrato. Não é o trabalho em si que dá o direito à remuneração. É a promessa de remuneração contra o trabalho encomendado. E não acho que os distribuidores têm direito a monopólios legais para que possam coagir as pessoas a remunerá-los por serviços que, de outra forma, não teriam qualquer valor comercial.

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    1. Sim, estou de acordo que hajam limites quanto à capacidade da polícia andar a investigar coisas. Tiveste sorte que no teu caso ainda recolheram impressões digitais; aqui ao meu lado foi assaltada a casa de uns amigos e a polícia, muito compreensiva, explicou que nem sequer valia a pena tentar as impressões digitais. E concordo com eles: o roubo foram meramente €400, um balúrdio para quem ganha pouco mais do que isso por mês, mas o custo de recolher impressões digitais é superior a isso, já nem falando nas custas de tribunal. Com isso tudo estou de acordo: é uma questão meramente funcional.

      Isso não quer dizer, claro, que se suprima o direito às pessoas se queixarem de crimes cometidos. Senão passamos a ter uma justiça baseada na capacidade do queixoso pagar pela investigação! Por outras palavras: não gostaria de viver numa sociedade em que me assassinam a mulher e violam as filhas e que para ter a certeza que a polícia investiga o assunto, tenho de depositar umas centenas de milhares de Euros junto do Ministério Público para que eles possam investigar... ou seja, em que só pode haver justiça para os ricos. Já hoje em dia, a nível dos processos no cível é assim. Mas no criminal ainda não é.

      A outra coisa é o ponto que não tinha ficado claro no teu artigo: «a ACAPOR nem sequer pode mostrar que ocorreu um crime. Só está a dizer que descobriu nuns trackers aqueles IP registados como partilhando certos ficheiros, mas nem tem provas de que os ficheiros não podem ser legalmente partilhados nem de que esses endereços IP os estavam a partilhar.» Ora nesse caso, eu se fosse o MP multava a ACAPOR por estar a fazer perder tempo à justiça :-) Pronto, isso talvez seja ir longe demais, mas eu se fosse o MP não tinha respondido com o argumento financeiro, que, a meu ver, é fraco. Responderia simplesmente como tu fizeste: «Não há quaisquer evidências que sustentem a queixa, pelo que esta vai ser arquivada». Ponto final. Afinal de contas, é o que os juízes fazem em milhares de processos no cível: nem sequer deixam o caso chegar a tribunal porque consideram as provas insuficientes ou irrelevantes. Em Portugal, os juízes podem fazer isso perfeitamente. Se não há dados suficientemente claros para apontar que tenha havido qualquer crime, e não houver provas que mostrem que tenha havido dolo (i.e. que uma das partes tenha efectivamente sido prejudicada financeiramente), então conclui-se simplesmente de que não houve crime e arquiva-se o processo. Não é preciso vir com a desculpa de que é «muito caro investigar se houver crime ou não».

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    2. O teu segundo ponto não vale a pena discuti-lo: é uma questão ideológica. Qualquer que seja o argumento que eu invoque para dizer que o Artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (transposto para os artigos 58 e 59 da Constituição Portuguesa) não devem ser suprimidos apenas porque nos apetece ouvir música e ver filmes à borla, tu vais tirar um coelho qualquer da cartola para justificar justamente porque é que esses artigos não se aplicam. Ok, é uma questão ideológica e dogmática que não pode ser argumentada. De notar que nenhum dos artigos fala em «contratos», propositadamente.

      O que me podes dizer é que esses artigos também não passam de uma convenção e de regras, que, como tal, podem ser alteradas; e que o actual Governo da República está farto de violar a Constituição naquilo que lhe interessa. Com certeza que não irei negar isso. Mas justamente por saber que anda por aí o mau princípio de mandar a Constituição às couves é que insisto que devem haver processos democráticos para mudar as coisas :) Se realmente a maioria da população aceitar que se mudem as cláusulas referentes ao direito à remuneração pelo trabalho, subsituindo-as por uma excepção, então obviamente que poderei resmungar por se estarem a violar princípios universais mas terei de me submeter à vontade da maioria que democraticamente apoia a alteração das leis par excluir minorias do seu direito à remuneração.

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    3. Não confundir isto com a questão dos monopólios das distribuidoras; a mesmíssima Constituição, no seu artigo 81 f), coloca como incumbência prioritária do Estado: Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral. Infelizmente, com os governos que temos eleito nas últimas duas décadas, este artigo tem sido completamente ignorado.

      Penso que não seria muito difícil argumentar que as práticas das distribuidoras se aproximem muito de modelos monopolistas e «lesivas do interesse geral» — dos criadores artísticos e da população em geral — e que, como tal, deveriam ser controladas. Em particular, rejeito a noção de que as distribuidoras devam ser «favorecidas» com legislação que as «proteja», «criminalizando» um acto que é do for cível e jamais se devia ter caído na tentação de o passar para o âmbito criminal!

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  6. Gauthma,

    Eu penso que devia ser logo a lei a ser escrita no interesse público e não no interesse de lobbies. O Miguel é um bocado suspeito porque tem interesses económicos nisto, mas acho que nem ele consegue defender os 3 anos de prisão por partilhar ficheiros que os autores decidiram publicar. Coisas como isto têm piada por parecerem ridículas, mas são exactamente o que se passa com o copyright no domínio digital.

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    1. Na realidade, não tenho quaisquer interesses económicos nisto :) Justamente porque sei que é impossível assegurar a protecção do meu trabalho de criação artística face à legislação em vigor é que decidi há muito tempo atrás licenciar toda a minha alegada produção «artística» — textos, vídeos, imagens, software — de acordo com uma licença Creative Commons 3.0 Attribution. Mas isso é porque cheguei à conclusão de que não valia a pena o esforço :) O total que ganhei em vinte anos com a produção de conteúdos foram €450 — €250 para um artigo no The Guardian, €200 na co-autoria de um livro publicado pela Saída de Emergência com uma tiragem de 2000 exemplares, todos eles vendidos. Acho que ainda tenho um livro qq. listado na Amazon pelo qual não acredito alguma vez vir a ganhar um único tostão :-)

      No entanto, e retomando o comentário anterior, é evidente que não defendo absolutamente nada do absurdo que se tem andado por aí a fazer em termos legislativos. Em primeiro lugar, para mim, o foro dos direitos de autor é o tribunal cível — não o criminal. Do meu entendimento dos princípios jurídicos (temos de chamar aqui o Carlos Casimiro para discutir), as relações laborais e as de transacção de bens e serviços, desde que não sejam vigarice :), tratam-se no foro cível. Ou seja: se eu vendo um electrodoméstico com um manual de instruções, e alguém o usa de forma indevida, não tenho o direito de mandar prender a pessoa! (a não ser, claro, que ela electrocute o marido :) — então caímos no campo do homicídio por negligência, que é do foro criminal)

      Para mim é isto que se devia aplicar aos direitos de autor. A palavra «pirataria» é de origem muito duvidosa, e aplicava-se essencialmente a bandos de criminosos que montavam redes de falsificação de objectos — cassetes, vídeos, desenhos... — para os distribuirem «como se fossem os originais». Ainda por cima sem pagarem impostos :) Aí entra-se com certeza noutro campo diferente: até do ponto de vista do público em geral, que está a ser enganado e a «comprar gato por lebre», e penso que seja justificável considerar esse tipo de operações vigarice e falsificação, e legitimamente abordada em tribunais criminais.

      Alguém que resolve copiar uma música e distribuir a uns amigos apenas está a violar uma licença — está a ignorar uma cláusula ou duas de um contrato. Bom, nesse caso, existe o foro cível para tratar de quebras de contrato. Cabe ao queixoso apresentar as provas que tiver de que o contrato foi não só quebrado, mas que foi lesado em X. É muito importante esta questão do «ser lesado em X». Penso que é muito fácil argumentar que alguém que copia uma música que adquiriu e dá a um amigo não está a «lesar» a distribuidora, porque o amigo jamais seria um «cliente», e não é possível argumentar que a distribuidora esteja «a perder dinheiro». Está a perder oportunidades de negócio — mas a lei não protege os empresários do risco. O risco é com eles :)

      Já se está a perceber porque é que as distribuidoras não gostavam nada de quando isto era apenas discutido a nível do foro cível :)

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    2. Agora passar isto tudo ao foro criminal é ridículo.

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  7. Sim, em relação a esse sinal na árvore, era engraçado se eu fizesse uma associação de protecção dos direitos de autores de sinais colocados em árvores e exercesse pressão junto dos "powers that be" para que qualquer pessoa que lesse o sinal tivesse que pagar x euros de taxa. Punha um desses sinais num parque público e depois enviava queixas ao Ministério Público a dizer que no dia D passaram duas mil pessoas nesse parque e que elas leram (ou pelo menos puderam ler!) e até comentaram algumas entre si que viram um sinal muito giro e não querem pagar aquilo a que os autores do sinal têm direito! Malvados!

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  8. Neste mundo em que os direitos de propriedade se tornaram o mais sagrado que existe, acabo por ser forçado a ter uma certa consideração (um pouco estranha e contra natura) por tudo quanto seja ladrão e pirata.

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  9. Vasco Gama,

    Os direitos de propriedade servem para gerir o usufruto de coisas como camisolas, automóveis ou casas, coisas para as quais o usufruto por parte de uns exclui necessariamente o usufruto por outros. Não faz sentido haver direitos de propriedade para a tabuada dos nove, os advérbios de modo ou as regras da canasta, porque dessas coisas podemos todos usufruir sem interferir com o seu usufruto por parte de outros.

    Esta coisa da “propriedade intelectual” é um conjunto de monopólios sobre coisas como sequências de números que nos são impostos em violação dos nossos direitos de propriedade. Por exemplo, para dar ao Miguel o monopólio sobre a distribuição de uma sequência de 0s e 1s (um ficheiro de computador), que é algo que pode ser reproduzido e usado sem limite, é preciso que nos tirem parte dos nossos direitos de propriedade sobre os nossos computadores, que são coisas físicas às quais faz sentido aplicar estes direitos, porque têm de nos proibir de os usar para copiar esses 0s e 1s e partilhar essas sequências um com o outro.

    Se alguém é ladrão e pirata aqui são os lobbies que nos impingiram estas leis, e não os que se recusam a respeitá-las.

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    1. Então estamos a brincar com as palavras :) Na realidade, não existe a expressão jurídica «propriedade intelectual» — isso é uma invenção, mais um meme, usado para convenientemente agrupar sob o mesmo conceito quatro tipos de legislação completamente diferente. Não faz sentido, do ponto de vista estritamente jurídico, falar de «propriedade», com as características que descreves (o usufruto de algo que impede que outra pessoa tenha esse mesmo usufruto).

      No entanto, parece estares a implicar que tens direitos universais e ilimitados sobre o que podes fazer com a tua propriedade privada :) Isso não é assim. Por exemplo, não podes usar a tua casa de qualquer forma. A fachada da tua casa é propriedade pública; mas não podes cometer crimes no interior da tua casa. Também não podes usar a tua casa com negligência — tipo fazer furos nas condutas de gás ou fazer passar os cabos eléctricos pelo meio destas. Não podes usar o teu computador como uma arma para matar pessoas — na realidade, nem sequer o podes atirar ao teu cão para o magoares. Não podes (em Portugal, pelo menos) curto-circuitar o teu automóvel ou o teu telemóvel para dar um choque às pessoas que tocam nele.

      Mas isto pode ir mais longe. Se usas um computador para enganar pessoas ou para lhes mandar spam — abusando assim da tua largura de banda — ou se andares a fazer colecções de imagens de pedofilia, incorres em crimes e «perdes» o direito a poderes usar o computador como muito bem te apetecer. Portanto em todos estes casos, e em milhentos outros como estes, existem restrições ao que podemos fazer e ao que não é legítimo fazer com a nossa «propriedade», mesmo que seja aplicada a objectos feitos de átomos e não de bits.

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    2. A aplicação de certa legislação de direitos de autor sobre o software parte do pressuposto que, sem software, não podes usufruir do computador. Ou seja: por si só, o computador tem tanto valor intrínseco como um pesa-papéis. Mas da mesma forma, um programa de computador que esteja num CD ou numa pen drive de nada serve, por si só: também são pesa-papéis sem qualquer valor.

      Logo, é argumentável que o software tenha apenas valor enquanto corre num computador mas não seja muito fácil de argumentar que o software, por si só, tenha valor, mesmo que valor potencial. É por isso que se anda há décadas a tentar resolver o complicado problema legal decorrente da utilização de duas coisas que, separadas, são completamente inúteis, mas que uma vez juntas, passam a ter valor — essas coisas (hardware e software) só têm valor potencial.

      Não quero com isto dizer que tenha havido um excesso de abuso desses lobbies — porque sem dúvidas que há e continua a haver — mas há vários pressupostos filosóficos que explicam a sua origem. O problema são as deturpações, sendo o caso da Disney o mais frequentemente citado (que obriga o Congresso a alterar as leis do copyright sempre que se aproxima o final do prazo de protecção do Mickey Mouse), logo seguido pelas «patentes de software» (para as quais não existe nenhum fundamento filosófico que as justifiquem, já que as patentes só se aplicam a processos industriais para produzir qualquer coisa, e nem sequer protegem a «coisa produzida» em si).

      Do ponto de vista estritamente filosófico, é evidente que se o computador não funciona sem software, então quem produziu esse software deve ser remunerado por isso, tal como quem produziu o computador — senão, não podemos usufruir das duas coisas em conjunto. Mas isso pouco ou nada tem a ver com «o direito à cópia». O problema, e aí concordo contigo, é que os lobbies das distribuidoras estão só preocupados com o «direito à cópia», criminalizando-a por pressão sobre os legisladores, mas pouco se lixam com a remuneração a quem desenvolveu o software — ou a música, ou os vídeos, etc.

      De resto, tal como no caso das drogas, sou a favor da despenalização da cópia informática :) sem que para isso seja preciso retirar os direitos dos criadores a serem remunerados pelo seu trabalho. A legislação que tínhamos há uns 20 anos atrás permitia as duas coisas!

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  10. Miguel,

    O artigo 23 da DUDH diz

    «1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.

    2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.

    3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social.

    4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para a defesa dos seus interesses.»


    Isto está de acordo com a minha ideia de um salário pelo contrato e não de fazer uma coisa porque lhe dá na gana e receber dinheiro por ela durante 75 anos.

    Mas talvez estivesses a referir o artigo 27:

    «1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

    2. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.»


    Em primeiro lugar vem o ponto 1, só depois vem o 2. E o ponto 1 é contrário à ideia de que só quem tem dinheiro é que deve ter acesso a ficheiros mp3.

    Além disso, o ponto 2 não deve ser interpretado sem limites. Se tu esculpes uma estátua com 22.5 cm de altura tens o direito a uma parte do dinheiro sempre que a estátua é vendida, durante algum tempo, mas não tens direitos exclusivos sobre o número 22.5 ou qualquer outra medição da estátua. Também se criares uma fórmula matemática que der uma música gira quando convertida numa sequência de números e fornecida à placa de som não ficas com direitos exclusivos sobre isso. Por exemplo, não fazia sentido dar direitos exclusivos ao Mandelbrot sobre a fórmula z_n+1=z_n^2 + c.

    Em suma, concordo com o que está estipulado na DUDH, que as pessoas não devem ser discriminadas quanto aos salários, que o mesmo trabalho merece a mesma recompensa, que todos devem ter acesso à ciência e cultura e que têm direito a protecção dos interesses morais e materiais do que criam. Mas nada disto implica que se conceda monopólios sobre a distribuição sem fins comerciais de sequências de números.

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    1. Um contrato é um contrato! Só porque a tua ideia de contrato é diferente da que as editoras assinam com os seus autores, isso não quer dizer que tu estejas correcto e que o resto do mundo esteja errado :)

      Mas presumo que afirmas isso apenas por ignorância, porque eventualmente nunca tenhas celebrado um contrato de trabalho diferente do que o de receber uma quantia mensal pelos serviços que prestas... como eu passei 90% da minha vida profissional a celebrar contratos de todos os tipos e mais alguns, tenho um bocadinho de mais abertura de espírito :)

      Quanto à tua interpretação do ponto 1 do artigo 27, estás a assumir que a DUDH diga que todos têm o direito de tomar parte GRATUITAMENTE na vida cultural da comunidade. Mas não é isso que está lá escrito :) Bem sei que a DUDH tem imensas falhas — há décadas que são apontadas e discutidas; confesso que já passei semanas em debates sobre o assunto, numa altura em que tinha mais tempo livre — mas essa não é uma delas!

      Concordo que o ponto 2 não implica uma «interpretação sem limites». Isso seria absurdo. Até porque os artigos da DUDH não devem ser interpretados de forma a que uns impeçam o usufruto das liberdades e direitos dos restantes (é isso que o artigo 30 implica). Por exemplo, podes argumentar o que significa «direito à protecção dos interesses morais e materiais». Numa leitura mais simplista e muito mais restrita (com a qual nem sequer poderia discordar), isto poderia simplesmente ser interpretado como «o autor de uma obra tem sempre o direito a ser identificado como autor da obra, mesmo que ela seja pirateada» e «ninguém tem o direito de vender uma cópia da obra de uma pessoa como se fosse sua». Esta era, aliás, o sentido da legislação de direito de autor aí nos meados dos anos 80, quando a polémica começou — antes disso não haviam dúvidas :)

      O artigo 30 foi criado justamente por causa da tentação que os governantes podiam ter para usar uns artigos contra os outro. Assim, como no teu exemplo, por achar que é «mais importante» dar «livre acesso à vida cultural da comunidade», abre-se uma excepção ao «direito a uma remuneração». Isso, de acordo com as interpretações que têm sido dadas ao longo dos últimos 60 e tal anos, não é legítimo. O que o legislador deve fazer é promover ambos os artigos sem restringir direitos. Um exemplo típico (e era essa a intenção): se as pessoas não têm dinheiro para ouvir música e/ou ir ao cinema, então o Estado deve criar salas de concerto e de cinema, adquirir os direitos aos seus criadores, e passar música e filmes à borla (ex: televisão e rádio públicas!). Assim os criadores das obras são remunerados pelo seu trabalho, mas a população tem acesso à vida cultural sem restrições financeiras. É esse o entendimento da DUDH quando se pretendem conciliar artigos aparentemente contraditórios.

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    2. Se aplicarmos isto a um contexto mais contemporâneo, e assumindo um Estado que não estivesse falido como o nosso, eu seria totalmente a favor de um site do Estado português em que qualquer cidadão pudesse lá ir descarregar software, música, vídeos, etc., sem qualquer restrição ou limitação. O papel do Estado seria garantir que os autores fossem devidamente remunerados — mas também que o acesso a tudo isto fosse feito de forma gratuita para os cidadãos, que já pagam impostos q.b. para poderem, entre outras coisas, usufruir de alguns benefícios — também na cultura. Bem sei que isto é utópico, especialmente se for feito a uma grande escala. Mas não quer dizer que não se tenha feito no passado! O Roosevelt, por exemplo, é recordado pela política New Deal em que se fizeram obras de construção civil majestosas. Mas poucos se recordam que ele criou justamente agências federais para dar emprego a actores, guionistas, encenadores, autores literários, etc. O objectivo era justamente dar emprego — remuneração — a essas pessoas todas que estavam no desemprego porque a população não tinha dinheiro para adquirir produtos culturais — que essas agências federais depois colocavam à disposição da população de borla. E isto quase vinte anos antes da DUDH, e num país que tem horror ao socialismo e às coisas gratuitas! (Claro que entretanto tudo isto acabou, mas não interessa — é apenas um exemplo para mostrar que mesmo no país mais capitalista do mundo é possível conciliar o artigo 23 e o 27 sem contradições, desde que haja vontade política de o fazer).

      Agora evidentemente concordo que não se devem conceder monopólios sobre a distribuição sem fins comerciais de sequências de números — salvaguardado o direito de quem concebeu essas sequências de números ser identificado como seu autor, e de ser remunerado se essa sequência de números, por lhe ser reconhecida valor, for distribuida com o intuito de enriquecer alguém que não o seu criador :) Este é, aliás, mais ou menos o princípio de fair use na legislação de copyright anglo-saxónica, mas que infelizmente tem vindo a ser progressivamente pervertida.

      Outra perversão — que também condeno — é a dualidade de conceitos. Não sei como o caso é analisado ao abrigo da legislação de direito de autor continental (como é o caso português), mas debati isto com diversos especialistas em copyright americano, e trata-se do problema do analogue hole. Suponhamos que uma banda qualquer coloca um vídeo no YouTube com a sua música. Alguém (tu, por exemplo) saca o vídeo, extrai a música, e passa-a aos amigos. Pode fazer isto ou não?

      De acordo com a interpretação do fair use americano, quando a banda colocou o vídeo no YouTube, que é acessível publicamente sem restrições, «perdeu» o direito do controle sobre a forma como o vídeo é distribuído — porque a legislação anglo-saxónica incide no «direito de cópia» e não no «direito do autor». Ou seja, se de livre e espontânea vontade publico algo na Internet, isso significa que descartei o direito de controlar a forma como a minha obra é distribuida. Não se perde, no entanto, o direito a ser-se considerado o autor da obra — apenas sob a forma como é distribuída. Mas é claro que as distribuidoras que têm contratos com as bandas não acharam piada a este tipo de coisas e tentaram proibi-las, ou, pelo menos, processar «alguém» (nem que seja a Google por «deixar» que estas coisas aconteçam!). Ora isto é muito problemático do ponto de vista legal, porque no caso americano se aplica o princípio de fair use.

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    3. Outro exemplo típico: entro num museu e tiro fotografias. Vou a um concerto e faço um filme. Vou ao cinema e levo o meu telemóvel comigo para gravar o que está no écrã. Estou a violar alguma lei? Na realidade, nem por isso: o meu trabalho é também o de um autor, que está a fazer um trabalho derivativo, e estes são permitidos ao abrigo das leis de direitos de autor — estou a criar uma nova obra que não existiria antes. Como resolver este dilema legal é muito complicado, o que os museus, salas de espectáculo e cinemas fazem é proibir as pessoas de entrar lá com máquinas fotográficas, gravadores, e câmaras de vídeo :)

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    4. Eu acho que o problema realmente tem a ver com o princípio de distribuição, e, mais uma vez, os Estados Unidos são os principais culpados :) É que por lá, como não existe «direito do autor», este pode ceder todos os direitos sobre a sua obra — incluindo a autoria! — às distribuidoras. Isso obviamente que vai resultar em abusos por parte de quem adquiriu todos os direitos... e os autores, esses, coitados, nem sequer podem «participar» na discussão da remuneração. Abdicaram desse direito quando fecharam o contrato com os monopólios da distribuição...

      No caso do modelo de direitos de autor continental, as coisas são um pouco diferentes. Não se pode «vender» o direito a ser-se reconhecido como autor da obra, porque, em último caso, entende-se que isso viola o artigo 27 (2) da DUDH — ou seja, mesmo que o autor queira vender a sua autoria, não o pode fazer :) Isto obriga a que os contratos no modelo continental sejam um pouco diferentes. No entanto, mesmo no modelo continental, existe o princípio da «obra por encomenda», em que quem detem os direitos é quem faz a encomenda, não quem a executa (mas este tem obviamente de ter o direito a ser remunerado pelo seu trabalho). Penso que talvez sejas capaz de aceitar um princípio de «obra por encomenda» em que os autores percam depois o «direito à distribuição». Pessoalmente não concordo em absoluto com isso, mas desde que se mantenha o princípio de garantia de remuneração de quem teve o trabalho de produzir uma obra, dou-me por satisfeito. Afinal de contas, nem a DUDH, nem sequer a muito mais extensa Constituição Portuguesa, descrevem a forma como o direito ao autor ser remunerado deva ser implementado na prática — apenas garantem que este seja, de facto, remunerado «de alguma forma», que é o que me interessa :)

      A título comparativo, eis o que diz (apenas) a nossa Constituição:

      Artigo 42.º
      Liberdade de criação cultural

      1. É livre a criação intelectual, artística e científica.

      2. Esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor.


      Não fala de todo em que consistem estes direitos ou como são protegidos legalmente. Isso fica para a sociedade decidir, através dos seus representantes eleitos. Repito: não concordo de todo com a criminalização da cópia informática e estou perfeitamente à vontade para aceitar, de mente aberta, que existam outras formas mais elegantes e mais consensuais de proteger os direitos dos autores, nomeadamente o direito a ser remunerado pelo seu trabalho — e até concordo que o actual modelo não é, de todo, o melhor — até porque protege, isso sim, os «direitos das distribuidoras», que não está consagrado nem na DUDH, nem na Constituição! Por alguma razão será!

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  11. Miguel,

    Alguns pontos soltos primeiro, depois o essencial, no próximo comentário.

    Contratos:

    Não tenho problema com a diversidade de contratos nem nada contra os contratos que as editoras celebram com os músicos, ou quem quer que seja. O que considero ilegítimo é que um contrato entre duas partes obrigue terceiros que não o assinaram. Por exemplo, considero ilegítimo que um contrato celebrado entre mim e o teu irmão te obrigue a ti a algo contrário à tua vontade. Assumindo que estamos de acordo nisso, deves também concordar que um contrato entre ti e uma editora não terá legitimidade para limitar os meus direitos de propriedade sobre o meu computador.

    Remuneração:

    A remuneração por um trabalho é um conceito de mercado. Podemos discutir se é justo que um futebolista talentoso ganhe mais do que um estivador dedicado, mas o facto é que, eventualmente, temos de aceitar que a remuneração é simplesmente o preço de um trabalho e o que se ganha é aquilo pelo qual se consegue vender no mercado. Concordo que o Estado tem um papel fundamental nisto, mas será o de garantir que ninguém fica privado dos direitos fundamentais só por não conseguir vender o seu trabalho a um preço adequado. Por exemplo, com um salário de cidadão. Mas discordo de que o Estado determine o que é o preço adequado de cada trabalho. Por isso, discordo da concessão de monopólios legais com o propósito de alterar os preços de certos trabalhos (como o de gerir um clube de vídeo, por exemplo).

    Gravar e fotografar coisas nos museus:

    Concordo que haja restrições a estas actividades porque incomodam os outros visitantes. Uma coisa é estar toda a gente a olhar para um quadro, depois avançar para outro, etc. Outra é um tipo ficar à frente dos outros com um tripé, ou uma data de gente a tirar fotos com flash, ou a levantar a câmara acima da cabeça e assim quando estamos a tentar ver um filme, exposição ou concerto. Mas não acho que a gravação de imagens em locais públicos deva ser ilegal.

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    1. Concordo que não é legítimo duas partes assinarem um contrato que vai afectar terceiros que não o assinaram. Aliás, se não me falha a memória, isso nem é legal no foro privado (sei que as coisas são um pouco diferentes no foro público, mas há uma noção que, nesses casos, os cidadãos em democracia exercem controle sobre os governantes — que celebram contratos em seu nome — através do direito ao voto).

      No entanto, estás deliberadamente a esquecer-te de que toda a transacção financeira (mesmo que a custo zero!) é legalmente um contrato. A distribuição é também um contrato. Quando adquires um produto distribuído, estás a aceitar as condições de utilização desse produto. O contrato entre o inventor de um frigorífico e a fábrica que o produz em massa não tem nada a ver com o contrato de aquisição do mesmo frigorífico numa loja de electrodomésticos. São contratos diferentes.

      Podes é argumentar que não devia ser assim, mas como já afirmei antes, essa é uma posição ideológica que tem como objectivo acabar com certos tipos de contratos ou de definir o que é contratualizável ou não (ou em que termos as coisas devem ser contratualizadas). Não estou a dizer que não se «possa» discutir isso, mas o teu argumento carece de aplicabilidade: o contrato de encomenda ou de autoria nada tem a ver com o contrato entre o distribuidor e o consumidor final — são coisas distintas com regras diferentes.

      Já deves ter reparado que a minha preocupação é muito mais relativamente ao primeiro caso (autoria), que considero um direito constitucional, enquanto que para o segundo caso (distribuição) sou profundamente contra a actual legislação (que não tem nada a ver com os direitos estabelecidos, mas apenas com a forma que os contratos são aplicados entre distribuidores e consumidores).

      Não percebi o que defendes quanto à remuneração, mas gostei da questão do «salário de cidadão». :)

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    2. Também não acho que a gravação de imagens em locais públicos deva ser «ilegal». Eu acho que nem é, do ponto de vista estritamente legal — o que se passa é que cada entidade (museu, sala de concerto/teatro pública, etc.) determina normas de acesso individuais, caso a caso (que por acaso até coincidem) mas que não têm a ver com a «legislação» em vigor. Penso que a dificuldade seja a de impedir que alguém tire uma fotografia de uma obra de arte que é património de todos e a explore comercialmente para benefício próprio sem retribuir nada para com a sociedade que contribuiu financeiramente para que essa obra possa ser vista e usufruida por todos. Compreendo essa questão mas é justamente isso que se passa quando se fala que algo caíu no «domínio público» — todos podem beneficiar comercialmente de obras no domínio público. A questão então volta a ser ideológica: deve o Estado adquirir obras para a colocar no domínio público ou não? A meu ver, a resposta é «sim», porque acho que essa é uma das incumbências do Estado. Argumentaria que no caso que dei, o «explorador para benefício próprio» de uma obra de arte pública também vai pagar mais impostos, que por sua vez podem ser usadas pelo Estado para adquirir ainda mais obras, portanto toda a gente ganha — e pode ser justamente o incentivo de explorar comercialmente obras actualmente no domínio público mas pertencentes ao Estado que leve imensa gente a usar justamente essas obras (e não outras), por não precisar de pagar custosas licenças, e faça fortunas com a distribuição — pagando fortunas em impostos. Isto é um princípio de como um Estado pode tirar partido das obras que adquire e que coloca no domínio público. Mas reconheço que é um princípio puramente ideológico: não é nem racional, nem lógico, nem nada disso. É uma questão de ideologia, que por acaso até é a minha :)

      Por outras palavras, votaria de bom grado num partido que considerasse que toda a propriedade cultural e artística adquirida pelo Estado e que tecnicamente está no domínio público pudesse ser usufruida por todos os cidadãos sob qualquer forma e que autorizasse a exploração comercial da sua distribuição. Na minha perspectiva ideológica, vejo isso como a melhor forma de um país promover a sua identidade cultural — especialmente porque todos esses agentes no mercado que irão fazer essa exploração comercial irão pagar impostos, pelo que o Estado não «perde» dinheiro. Mas mesmo no modelo actual é ridículo pensar que o Estado esteja a «perder» dinheiro: afinal de contas, já desembolsou dinheiro para adquirir a licença sobre as obras. Está apenas a tentar ser ganancioso, limitando o acesso às mesmas (e à sua distribuição) através do pagamento de elevados custos de licenciamento. Ora isso parece-me (na minha ideologia!) que deve ser papel dos privados, não do Estado: o Estado adquire com o «nosso» dinheiro esses bens culturais e artísticos, e seria mais justo (na minha ideologia!) que aqueles que pagam para que o Estado tenha dinheiro para adquirir essas obras possam usufruir delas, livre de mais encargos. Isto não é bem a mesma coisa que dizer «a arte e a cultura devem ser gratuitas». Não são: nós estamos a pagar por ela, através de impostos. E o Estado recebe indirectamente impostos por quem usar esses bens e serviços e os explorar comercialmente, pelo que não vejo que a «coisa pública» seja de alguma forma prejudicada.

      Mas encerro dizendo que essa é a minha ideologia. E as ideologias baseiam-se em dogmas e princípios irracionais que não são justificáveis com mera argumentação :)

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  12. Miguel,

    Agora o que interessa. Imagina que, numa praia, eu uso a areia que é de todos para fazer uma estátua. Tu achas muito gira e ficas vários minutos a admirá-la.

    a) Legalmente, quando dinheiro deves ser obrigado a pagar-me?

    b) E se foste tu que me encomendaste a estátua e me prometeste 100€?

    c) E se em vez de 100€ me tivesses prometido 5€?

    d) Finalmente, supõe que eu te tinha prometido 100€ se esperasses um pouco que eu acabasse a estátua para depois me dizeres o que achavas. Nesse caso, quem devia quanto a quem?

    e) Se, depois de celebrado o nosso contrato (b, c ou d), o teu irmão aparecer e olhar para a estátua, quanto é que ele me deve? E quanto deve a ti?

    Se as tuas respostas são a) 0€, b) 100€, c) 5€ , d) eu devo-te 100€ e e) 0€ e 0€, então estamos de acordo no fundamental. A remuneração devida é função do contrato celebrado entre as duas partes e não obriga terceiros a remuneração alguma.

    Para concordarmos no resto basta que sejas consistente na aplicação destes princípios aos casos em que, em vez de areia, se usa palavras, acordes ou bytes – que são de todos – para fazer histórias, músicas ou ficheiros de computador.

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  13. O exercício é divertido e obviamente que a) a d) estão correctos. e) depende essencialmente do que está previsto no acordo entre ambas as partes. Se o acordo for, «depois deixamos aqui a estátua para toda a gente ver», então claro que é zero (exemplo concreto: estátuas encomendadas pelas câmaras municipais para meter em rotundas). Presumo que seja isso que tens em mente. E podes ir mais longe: se a estátua for depois deixada onde está e o meu irmão a fotografar, a quem é que ele deve dinheiro? A resposta é: legalmente, a ninguém. A fotografia é uma obra do meu irmão; a estátua ficou no «domínio público».

    No entanto, estás a misturar três questões legais numa só :) Se é por ignorância, então compreendo a tua atitude. Se é deliberado, convém perceber qual são os pontos diferentes e onde entra a ideologia no meio disto tudo.

    Vou partir do pressuposto de que a estátua fica no local onde está depois da transacção ter sido feita, ou seja, num local de acesso público.

    O caso a) é um caso de um autor que larga a sua obra no domínio público: nem sequer a assina! Se deixasse lá pelo menos o seu nome escrito numa placa ao lado, perdia todos os direitos de distribuição da obra, mas não o da sua autoria. No teu exemplo isso não acontece, pelo que devo considerar que a estátua ficou no domínio público. É um caso. Os casos b) e c) são casos de «trabalho por encomenda», em que o autor da obra é quem paga por ela, e o artista foi contratado para fazer uma estátua. Se depois quem pagou pela estátua renuncia ao direito de controlar a sua distribuição, é legítimo que o faça — pode revertê-la para o domínio público se quiser. A «propriedade» é sua. O criador da estátua não pode resmungar: foi pago pelo seu trabalho e não tem quaisquer direitos sobre o que se faz com a sua obra depois de ter recebido o dinheiro. O caso d) não tem nada a ver com direitos de autor, é um contrato separado. O caso e), presumindo que a obra seja deixada no domínio público, significa que mais ninguém ter a pagar para usufruir da mesma. De notar que as estátuas nas rotundas não estão no domínio público: a autoria é garantida (ninguém pode dizer que a estátua lhe pertence e fazer o que quiser com ela, excepto o autor e/ou a câmara, se a estátua foi explicitamente encomendada por esta).

    A segunda falácia é mais filosófica. Partes do princípio que a utilização da matéria-prima tenha alguma coisa a ver com a forma como a obra é distribuída. Isso não é verdade. Se pintar uma paisagem de um parque natural, que é «propriedade» de todos (e administrada pelo Estado para garantir o usufruto da mesma paisagem), a pintura continua a ser do artista. Poderás argumentar que nesse caso ele está a usar tinta que teve de pagar por ela. Mas o mesmo se aplica se um poeta, inspirado por uma paisagem natural, resolve compôr um poema, e, sendo muito ecológico, apenas o memoriza e recita em voz alta, não gastando papel e caneta. O poema continua a ser propriedade do poeta, mesmo que a paisagem que o tenha inspirado seja pública, assim como o ar que é usado para propagar as palavras do poeta também é (ainda!) público.

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    1. Não é relevante nesta discussão o material que é usado, seja para a criação da obra, seja para a sua disseminação. A única coisa com que posso eventualmente concordar é que se um músico dá um concerto num espaço público (um auditório de uma câmara municipal, por exemplo), na minha visão da sociedade, esse concerto deveria ser gratuito (somos nós que pagamos IMI à câmara para ela nos dar cultura). Se a câmara quiser fazer dinheiro com o concerto, deveria fazê-lo num espaço privado. Bem sei que no mundo real não é isto que acontece: as câmaras muitas vezes fazem concertos a pagantes. Ou o Ministério da Cultura quando promove concertos no CCB. Aqui o problema é ideológico: deve o acesso à cultura ser pago ou não? Eu acho que não, mas isso é uma posição ideológica, com a qual a maioria dos governos eleitos não concorda, pois subscrevem ao princípio do «utente-pagador». É discutível, mas é uma discussão que é remetida para outra altura, pois pouco tem a ver com o direito de autor :)

      Em última instância, o argumento de que a matéria-prima tem influência sobre a forma como os direitos de autor são assegurados, então o teu argumento aplicar-se-ia a tudo. Mesmo um pintor que compre as suas tintas vai respirar ar que é público. As tintas são feitas de materiais que existem na natureza — ou mesmo que não o sejam, foram fabricadas numa fábrica que terá algures objectos que provavelmente foram buscar à natureza. É o Estado (ou seja, todos nós) que regula, com alvarás, quem é que pode explorar certas matérias-primas (mediante o pagamento de uma taxa) para assegurar (idealmente) o acesso equalitário às mesmas por todos os cidadãos. Mas mesmo que uma fábrica seja totalmente sintética, os seus trabalhadores vão respirar ar que é gratuito e é de todos. Em última instância, pois, podes provar que para existir qualquer obra, no mínimo, o artista tem de respirar ar que é de todos, pelo que, com esse argumento, nunca poderia vender os frutos do seu trabalho.

      Em vez disso, a criação artística recai sobre a noção de que o artista utiliza justamente matéria-prima (areia, palavras, bytes) que «são de todos» mas dá-lhes uma forma (física ou não) única, que não existiria sem o trabalho do artista. O direito de autor recai sobre essa forma e sobre a maneira como é distribuída.

      Não te preocupes com a minha consistência, desde que os princípios sejam racionais, eu não me importo de ser consistente q.b. :)

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  14. Miguel,

    A nossa diferença não é apenas nas premissas ideológicas. Parece-me que há algumas confusões a esclarecer também. Por exemplo, o cenário da estátua de areia pretendia delimitar o que é legítimo considerar como contrato, e o dever de remunerar, para demonstrar que a tal coisa da “propriedade intelectual” não se deriva nem dos contratos nem do dever da remuneração. Mas tu saltaste logo para a distinção entre a obra sob protecção e em domínio público, curto-circuitando o raciocínio. A questão importante aqui é: porque é que quem copia um ficheiro tem obrigação de remunerar? Se passas logo para “porque tem copyright” ou “porque é propriedade intelectual” estás apenas a andar aos círculos.

    Vou tentar com outro exemplo. Eu celebro um contrato contigo, pelo qual eu dou-te uma cópia de um programa que eu fiz e, em troca, dás-me dinheiro e comprometes-te a não dar este programa a mais ninguém. Tu ficas com o programa, não me pagas e pões o programa no bitTorrent. Ao fim de usn dias cem mil pessoas estão a partilhar o programa entre si.

    Penso que podemos concordar que tu violaste o nosso contrato. Mas o que eu proponho é que as outras cem mil pessoas não violaram contrato nenhum porque eu não tenho contrato nenhum com elas. Tu tinhas a obrigação de me remunerar e não pagaste. Tu comprometeste-te a não dar o programa a ninguém e distribuiste-o por algumas pessoas. Mas essas outras pessoas, e todas as outras por onde o programa se propagou, não tinham nem obrigação de me remunerar nem se tinham comprometido a não dar o programa a ninguém.

    Esta é a grande diferença entre “propriedade intelectual” e contratos. O contrato obriga quem celebra o contrato. A “propriedade intelectual” é um conjunto de monopólios concedidos pela lei que obrigam toda a gente, e que não se justificam nem pelo contrato nem pelo dever subjacente de remunerar algo pelo qual nos comprometemos pagar.

    Toda a tua justificação para o copyright e afins parece vir da noção de liberdade contratual e do dever de pagar. O meu argumento é que não consegues chegar daí ao copyright. São coisas completamente diferentes. Uma é uma obrigação voluntariamente assumida por partes contratuantes, e a outra é a concessão de monopólios pela legislação.

    Eu sou a favor da liberdade de celebrar contratos, mas sou contra que a lei conceda monopólios sobre actividades pessoais, fora do âmbito comercial, e que mesmo os monopólios estritamente comerciais só devem ser concedidos em casos extremos (que não é o caso da música pop, dos jogos de computador e das séries de TV...)

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  15. Penso que sim, a questão é mesmo ideológica :)

    Acho que a apresentas bem no teu exemplo. Em primeiro lugar, partes do pressuposto que há formas de estabelecer contratos que consideras incorrectas. Do ponto de vista legal, tudo é contratualizável desde que ambas as partes concordem com os termos e desde que o objecto do que é contratado não tenha um objectivo criminoso (i.e. que não viole nenhuma lei). Acrescentar mais ou menos coisas que possam ser contratualizadas é justamente um aspecto ideológico; por exemplo, para algumas ideologias, deveria ser proibido o Estado estabelecer contratos com privados para a distribuição da água (porque a água é um bem comum e não devia ser objecto de contrato); para outras, não há problema nenhum (desde que a água, que é um bem comum, não seja distribuída apenas para uns e não para outros — o que violaria a Constituição). Não se pode dizer que uma é mais "errada" que a "outra" — mas apenas que, consoante a ideologia, o tipo de contratos "permissível" varia.

    O teu exemplo lembrou-me logo o ditado «ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão». Parece quereres dizer que o facto de alguém ter quebrado um contrato dá o «direito» a que cem mil pessoas possam usufruir sem problemas da consequência dessa quebra de contrato. É verdade que me vais criticar a analogia — por achares que são coisas diferentes — mas na minha ideologia, isto é a mesma coisa que alguém estabelecer um contrato com uma biblioteca para transportar os livros para um armazém, mas, a dada altura, achar que é melhor estacionar a carrinha no meio do Terreiro do Paço com as portas abertas e deixar que toda a gente leve os livros. Ou um camião TIR que vai abastecer o Pingo Doce subitamente achar que é melhor ir com o conteúdo do contentor para um bairro social, abrir as portas, e deixar que as pessoas se abasteçam à borla (talvez este exemplo seja melhor).

    Ora do ponto de vista legal, isto não é aceite. Se uma casa é assaltada, e o ladrão vende a mobília a terceiros, a polícia, ao recuperar os bens, vai mesmo retirá-los de quem os adquiriu ao ladrão. Podes argumentar que isto é injusto, porque essas pessoas nem sequer sabiam que o ladrão era um ladrão, e pagaram honestamente pelos móveis que compraram. É verdade: pode ser injusto. O que a lei lhes permite é exigir uma indemnização ao ladrão, ou, no mínimo, agravando a sua pena (por furto e por fraude — venda de coisas que não lhe pertencem).

    Este princípio é aplicado para as coisas materiais e não materiais. Se um funcionário de um banco quebra o sigilo bancário (contratualizado com a entidade empregadora) e dá a password do sistema informático a um grupo de amigos para que façam transacções bancárias para as suas próprias contas, aplica-se a mesma lei, apesar de neste caso se estar a lidar com bens não tangíveis — bits num sistema informático que representam dinheiro, acções, obrigações, títulos, etc. Podia acrescentar aqui uma tonelada de exemplos de como o mesmo princípio se aplica a bens não-materiais que são considerados como tendo valor — mesmo que não sejam materiais — mas já sei que de nada me serve o argumento: vais sempre dizer que a música, a cultura, etc. são «coisas diferentes». Tudo bem, mas não é assim que a nossa sociedade, por uma questão ideológica, as define: tudo o que é passível de ter valor para o seu proprietário é passível de protecção legal. Podemos discutir se esta ideologia faz sentido ou não. Um exemplo de uma interpretação alternativa é a que mencionas uns comentários mais atrás: a cultura, como o ar, devia ser um bem comum, e como tal, não se deveria poder contratualizar a sua posse. É um argumento possível, sem dúvidas. Apenas poderei comentar que «a cultura não surge espontaneamente do ar» e requer trabalho que deve ser remunerado de alguma forma; e que o fruto desse trabalho também tem valor, e, como tal, deve ser protegido como qualquer coisa que tenha valor. Podemos obviamente é discutir qual é a melhor forma, ou a forma mais justa, de o fazer.

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    1. Espero que tenha ficado claro que, ao contrário do que afirmas, um contrato estabelecido entre duas partes tem, de facto, repercussões sobre terceiros que podem não ter assinado esse contrato mas que estão sujeitos à mesma legislação e Constituição.

      Agora podemos é depois discutir: mas é justo prender 100 mil pessoas só porque copiaram um ficheiro? Já disse, e repito: não. Não acho justo (mas há quem ache!). Pessoalmente acho que se deve aplicar o mesmo tipo de legislação que à droga: não criminalizar o consumo, despenalizá-lo, e em vez disso concentrar os esforços em prender os distribuidores da droga — e em educar a população. Como já referi, existem outros mecanismos legais para uma distribuidora agir, vendo-se lesada nos seus direitos: o processo no cível. Bem sei que é um processo que tem poucas hipóteses de ter sucesso. No exemplo que dás, a produtora poderia processar a pessoa que ficou com o programa e o meteu no BitTorrent, e alegar em tribunal que o caso é mais grave por haverem 100.000 pessoas com cópias do programa. Ok, boa sorte para conseguir vencer esse processo :) Mas até vou mais longe. No caso da droga, por exemplo, é muito diferente alguém ir comprar droga para dar a três amigos, ou montar uma rede de distribuição de droga à escala nacional para alimentar centenas de milhares de toxicodependentes. No primeiro caso, embora tecnicamente se esteja a cometer um crime, a justiça será tolerante. No segundo, não deve ser minimamente tolerante. Ou seja: o número de pessoas afectadas deve ser importante na elaboração da sentença.

      Ora o que temos nas actuais absurdas leis da protecção de direitos de autor é que basta haver uma cópia que tanto a pessoa como copiou, como a que disponibilizou o original para copiar, vão ambos para a cadeia — por três anos. Isto é completamente absurdo. Especialmente porque, no caso em concreto, na maior parte dos casos, o autor original da obra nem vai sequer ser consultado em tribunal — o processo-crime é despoletado pela distribuidora contra os prevaricadores, e o autor fica «esquecido» a um canto. Isto é, para mim, uma perversão completa do princípio.

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    2. Um comentário apenas: quando dizes «toda a tua justificação [...] parece vir da noção de liberdade contratual e do dever de pagar». Não é a minha justificação :-) É a da sociedade em que nós os dois vivemos. Mas tens de acrescentar bem mais pressupostos a isso: o conceito de valor; o conceito de trabalho; o conceito de direitos sobre o trabalho; e mais as outras coisas que tenho mencionado. Nada disso é a «minha» justificação, mas sim os princípios pela qual os legisladores se regem, no nosso país e na maioria dos Estados de Direito. Eu não me preciso de justificar :) Se vivêssemos noutra sociedade, que se regesse por outros valores, não poderia fazer qualquer comentário! Podes é argumentar que estes valores estão errados e devem ser substituídos por outros. Tudo bem — as sociedades mudam. Mas aí vou ter sempre de questionar o modelo que propões para manter os artistas e os criadores incentivados a produzir obras, e as distribuidoras incentivadas em fazê-las chegar ao público em geral, para que possam remunerar o criador. Se te recordas bem, eu até sugeri dois modelos (um nem sequer é ideia minha) no passado :) Devo dizer apenas que quando os proponho praticamente ninguém gosta deles...

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  16. E finalmente: «sou contra que a lei conceda monopólios sobre actividades pessoais». Lá voltamos ao discurso ideológico :)

    Em primeiro lugar, gostas de abusar do significado da palavra «monopólio», que, só para chatear, até tem um significado preciso em teoria económica: é quando existe apenas uma única entidade fornecedora de determinado bem ou serviço. Escusado será dizer que isto não se aplica ao que estamos a discutir: qualquer pessoa pode ser criador/artista/programador, qualquer pessoa pode montar a sua própria editora literária e/ou de software, qualquer pessoa pode tornar-se distribuidor de livros ou CDs, qualquer pessoa pode abrir uma loja e vender CDs e livros. Não há qualquer «monopólio» no mercado. Mais ainda: graças à Internet, nem é preciso esta cadeia de valor toda. Qualquer autor/criador pode montar um site Web e vender o seu produto directamente ao consumidor final.

    Mesmo que na verdade queiras usar a expressão «oligopólio» ou «cartel» em vez de monopólio, nem isso é estritamente correcto. Quando a FNAC entrou em Portugal, fez tremer todo o mercado — porque a FNAC tinha a sua própria capacidade de distribuição, as suas próprias lojas. O «cartel» (se é que o havia...) fragmentou-se, metade desapareceu, e outros — a Bertrand, a Leya... — reformularam-se para serem competitivos no mercado, criando novas redes de distribuição e de venda. Ou seja: mesmo o argumento de que havia um «cartel» controlado por uns poucos e que era impossível de «quebrar» veio a mostrar-se que era uma falácia conveniente. É verdade que, em dado momento, há um conjunto de agentes económicos dominantes que «parecem» agir em cartel. Mas há espaço para a concorrência inteligente — como o exemplo da Amazon.com, e mais tarde da App Store, veio a mostrar à escala global.

    Ok, mas talvez estejas a usar a palavra «monopólio» com o sentido de dizer «só há uma forma de uma obra artística chegar às mãos das pessoas, e, nesse sentido, é um monopólio». Podemos discutir a aplicabilidade da palavra «monopólio» neste sentido, mas, em linguagem comum (e na «cassete ideológica»!), este tipo de metáforas parece-me totalmente aceitável.

    Mas nem sequer isso é verdade! Se fosse assim, não tínhamos software open source nem obras publicadas ao abrigo do Creative Commons ou licenças semelhantes. Ou seja: o princípio de que o copyright (no sentido «licenciamento que determina o direito à cópia») é universal e um «monopólio» que não se pode quebrar é uma falácia. Há outras formas de licenciar obras, e cabe aos autores das mesmas escolher qual o modelo que preferem. E se não gostam dos modelos existentes, podem inventar um — basta assistir à multiplicidade de licenças de software open source e da dificuldade incrível dos programadores que querem combinar licenças de aplicações diferentes (é um pesadelo jurídico). Ou seja: não só há liberdade total e completa dos criadores em licenciarem as suas obras da forma como quiserem, como absolutamente nada lhes impede que inventem novas formas. Mais importante, da perspectiva do autor, é que este nem sequer precisa de abdicar do «direito de autor» quando opta por outras formas de licenciamento: o que está apenas a fazer é substituir o direito de cópia padronizado pelo copyright por um outro modelo mais permissivo.

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  17. Agora voltemos ao ponto essencial. O que queres — opinião partilhada por milhares de milhões de pessoas — é ter acesso de borla, sem penalizações, a tudo o que é produzido por parte dos terceiros. Vamos até assumir que não te importas de que os autores pelo menos mantenham o direito de serem autores das suas próprias obras. Por outras palavras, a ideia revogar as leis que protegem a cópia, e forçar todos os autores a licenciarem as suas obras com uma licença Creative Commons 3.0 Attribution, ou, se forem programadores, uma licença BSD.

    Posso concordar que o resultado seria um mundo melhor — para os consumidores. Mas seria um mundo em que os autores morreriam de fome, e, numa geração, desapareceriam os artistas profissionais. Há quem diga que até seria bom :) Mas para aqueles que ainda acreditam que a cultura, como qualquer outra actividade humana, deve ser profissional, isto implica encontrar uma forma de os remunerar. E aqui voltamos à velha questão, que já estou cansado de a repetir. Não é legítimo esperar que os artistas, que são especializados em produzir objectos artísticos, sejam também homens de negócio, capazes de montar formas de negócio em torno das suas obras, para que as possam distribuir gratuitamente. Este problema não está resolvido. Os Stallmanistas Radicais gostam de citar dezenas de milhares de casos de artistas com enorme talento para o negócio e que com isso conseguiram ganhar dinheiro mesmo distribuindo as suas obras de borla. É verdade, mas isso não é a maioria dos artistas. O próprio Stallman, se não tivesse um salário de professor universitário e ganhasse balúrdios a fazer conferências sobre software livre, não tinha capacidade para oferecer o que desenvolveu para o GNU — tinha de se preocupar em comer primeiro, e oferecer coisas depois.

    Altruismo é fácil quando se tem a barriga cheia :)

    Mas nem sequer o próprio Stallman advoga peremptoriamente a abolição das leis em vigor. O que ele faz é encorajar os criadores artísticos a pensar que não existe apenas uma forma de fazer as coisas. O modelo open source é um sucesso. O modelo Creative Commons é outro. O software open source, em muitos casos, especialmente quando tem uma empresa ou uma fundação por trás, é superior em qualidade e capacidades que o software comercial. O OpenStreetMap é melhor que o Google Maps em muitos casos, porque há um milhão de pessoas a colocar informação cartográfica no OSM, enquanto que a Google pode ter muito dinheiro mas tem «apenas» umas centenas de pessoas a fazer o mesmo. A Wikipedia tem milhões de pessoas a escrever, corrigir e editar artigos e conseguiu bater há anos a Enciclopédia Britânica. E podemos continuar a listar os casos de sucesso.

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  18. Quer isto dizer que neste momento da história, pela primeira vez, temos alternativas. Não estamos obrigados apenas a um único modelo de licenciamento dos produtos culturais — há muitos. O que escolhemos é opção nossa e dos artistas que os produziram. Posso ver coisas no YouTube — não preciso de ir ao cinema. Há compositores profissionais que só distribuem música licenciada via Creative Commons. No meu computador praticamente só uso software open source — as únicas coisas comerciais que compro são aplicações baratas, porque essa é a minha opção. Podia ter Windows ou Office, se estivesse disposto a pagar por isso, mas não estou. Então a escolha é minha. Podia alugar vídeos com documentários, mas prefiro ver documentários e séries disponibilizados pelos seus autores de forma gratuita no Vimeo ou Blip.TV.

    O teu argumento é que «isso não chega». Estás a argumentar que a Microsoft devia oferecer o Office de borla, porque o que as pessoas querem é usar o Office, e a malandra da Microsoft exige que pagues dinheiro para usar um produto deles. As pessoas querem ouvir a Beyoncé de borla porque não gostam do Kevin MacLeod. Querem ler a última novela do Dan Brown de borla, porque não gostam de nada que esteja no Projecto Gutenberg. Então o que fazem é atacar aqueles que se recusam a ser altruistas e que querem apenas ganhar uns tostões com os frutos do seu trabalho, usando uma argumentação ideológica que «a cultura devia ser de borla para todos» e justificando-a com tudo e mais alguma coisa que pareça fazer sentido.

    There ain't no such thing as a free lunch. Se queres propor um modelo em que tudo seja de borla, precisas de explicar como pagas às pessoas para que o seu trabalho possa ser distribuído de borla.

    E, como já disse há uns bons meses atrás, há obviamente alternativas. Mas a sociedade em que estamos não está para isso :)

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  19. Miguel,

    Na tua analogia do móvel roubado, há uma diferença fundamental para o "roubo" de "propriedade intelectual". Para devolveres o móvel ao seu dono legítimo, TENS de o tirar à pessoa que o comprou ao ladrão. Aposto que se houvesse maneira de ambos manterem o móvel, essa alternativa seria preferível (a não ser que o gajo final tivesse contratado o roubo do móvel, mas isso é outra história).

    Uma analogia mais próxima do mundo digital seria algo do género:

    * compras um móvel por medida
    * um pirata gosta do teu móvel, faz um igual e vende-o a um terceiro

    Neste não ficaste sem o móvel, mas houve alguém que ficou com um móvel igual ao teu sem ter dado nada ao autor original do móvel, mas será que houve aqui um "crime"?

    Afinal o "pirata" teve de ter o trabalho e a habilidade de copiar o teu móvel e isso tem algum valor, que o terceiro esteve disposto a pagar.

    Eu acho que há crime quando há uma parte prejudicada, e neste cenário não estou a ver nenhuma: o autor do móvel recebeu o seu dinheiro pela construção do mesmo, quem o encomendou manteve o seu móvel, o "pirata" e o seu comprador fizeram a sua transacção completamente independentemente e sem prejudicar a transacção original, e ambos saíram a ganhar.

    Então e se o processo de copiar não necessitar de trabalho nem habilidade nenhuma, e não for pago, de repente este cenário é criminoso? Porquê?

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    1. Eu não sei porquê — eu afirmei por duas vezes pelo menos (só aqui!) de que sou contra a criminalização do processo de copiar, porque não me parece correcto (e só por causa disso) passar processos para o foro criminal que nunca deviam ter saído do foro cível, tal como estavam antes.

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  20. Miguel,

    Ponto um:

    «Parece quereres dizer que o facto de alguém ter quebrado um contrato dá o «direito» a que cem mil pessoas possam usufruir sem problemas da consequência dessa quebra de contrato.»

    Estou apenas a dizer que o facto de alguém ter quebrado um contrato não implica que terceiros tenham obrigações legais. Substitui o software do meu exemplo por batatas. Celebramos um contrato pelo qual eu forneço-te uma tonelada de batatas e comprometes-te a pagar-me e a não dar batatas a ninguém. Não me pagas e distribuis as batatas por mil pessoas. Essas pessoas estão a violar um contrato?

    Tu podes defender que, em certos casos, a lei declare ser crime beneficiar da quebra de um contrato. Mas isso terás de justificar por algo mais do que a simples quebra de contrato porque o contrato apenas obriga quem o celebra, e não terceiros, e nisso parece que estamos de acordo. Já disseste várias vezes que não é admissível que um contrato celebrado entre duas partes obrigue que não o aceitou.

    «Ora do ponto de vista legal, isto não é aceite. Se uma casa é assaltada, e o ladrão vende a mobília a terceiros, a polícia, ao recuperar os bens, vai mesmo retirá-los de quem os adquiriu ao ladrão.»

    Isto não tem nada que ver com a liberdade de celebrar contratos, nem com a violação de contratos. O argumento que quero refutar neste ponto é este:

    «Só porque a tua ideia de contrato é diferente da que as editoras assinam com os seus autores, isso não quer dizer que tu estejas correcto e que o resto do mundo esteja errado :) Mas presumo que afirmas isso apenas por ignorância, porque eventualmente nunca tenhas celebrado um contrato de trabalho diferente do que o de receber uma quantia mensal pelos serviços que prestas... como eu passei 90% da minha vida profissional a celebrar contratos de todos os tipos e mais alguns, tenho um bocadinho de mais abertura de espírito :) »

    O que quero estabelecer aqui é que a concessão de monopólios sobre a distribuição de certas músicas, filmes ou software não pode ser justificada pelos contratos de distribuição porque os contratos afectam apenas quem os celebra. Portanto, nem a minha ideia surge de uma noção diferente de contrato nem a tua alegada autoridade em matéria de contratos tem qualquer relevância para esta discussão :)

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  21. Miguel,

    Ponto dois:

    Se só tu tiveres o direito legal de vender ovos de codorniz, tens um monopólio sobre ovos de codorniz. Se só tu tiveres o direito legal de vender gravações do giroflé-giroflá, tens um monopólio sobre as gravações do giroflé-giroflá. Isto não deixa de ser verdade lá porque outros possam vender gravações dos três patinhos ou ovos de galinha. O direito exclusivo de vender X é um monopólio, por muito específica que seja a categoria X.

    «Ok, mas talvez estejas a usar a palavra «monopólio» com o sentido de dizer «só há uma forma de uma obra artística chegar às mãos das pessoas, e, nesse sentido, é um monopólio»»

    Não. Eu estou a usar a expressão “monopólio legal” no sentido de que há uma lei que concede a alguns agentes o direito exclusivo de distribuir certos bens ou prestar certos serviços. E esse é o sentido literal de monopólio. Por exemplo, a Microsoft tem um monopólio legal sobre o Windows. Não tem sobre o giroflé ou os ovos de codorniz, mas isso é irrelevante.

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    1. Se fabricares um móvel, usando a tua definição, tens o monopólio da sua primeira venda: ou seja, não pode aparecer alguém na tua carpintaria, levá-lo, e vendê-lo.

      Com essa definição tua, «direito de propriedade» passa a significar «monopólio», e a palavra «monopólio» perde todo o seu significado.

      É que na verdade não existe nenhum «monopólio» no sentido económico e legal da palavra, pois qualquer pessoa pode adquirir os direitos de distribuição da obra de qualquer artista, montar a sua própria agência/distribuidora, celebrar os contratos que quiser, etc. e não há nenhuma «lei» que impeça a concorrência livre no mercado.

      Não percebo o que queres dizer «a Microsoft tem um monopólio legal sobre o Windows». Tem o direito de distribuir o Windows como lhe apetecer, porque o Windows é um produto que a Microsoft desenvolveu. Isso não é um monopólio: qualquer pessoa pode fazer um produto semelhante se quiser. Seria, sim, um monopólio se existisse uma lei que proibisse desenvolver sistemas operativos para a arquitectura Intel/PC e só a Microsoft o pudesse fazer. Mas não é o caso, ou, pelo menos, não é o caso desde pelo menos 1992, salvo erro, altura em que começou a aparecer uma alternativa ao Windows :)

      A não ser que queiras empregar a expressão «posição dominante de mercado» como sinónimo de monopólio, a exemplo do que muita gente tem feito há décadas. A «posição dominante de mercado» conduz, de facto, a atitudes monopolistas: por exemplo, a Microsoft foi hábil, ao longo de décadas, em desenvolver mecanismos que fizessem os produtos da concorrência funcionar pior do que os seus (e.x. library calls «secretas» a que só os programadores da Microsoft tinham acesso), não criando forma de ser possível contornar o problema. Por exemplo, é quase impossível desinstalar o Internet Explorer por completo — mais cedo ou mais tarde, isso vai «estoirar» o Windows e deixar de funcionar. Portanto, quem quiser usar um browser da concorrência, terá de viver com o IE co-instalado, quer queira, quer não. Isso é um abuso de posição dominante de mercado, e por causa desse abuso, a Microsoft continua a pagar uma multa de um milhão de dólares por dia nos US e um milhão de Euros por dia na Europa, até que termine com essas «práticas de abuso de posição dominante»

      Combater estes abusos legalmente tem a designação de «leis anti-trust», que podem ou não visar «monopólios» de jure ou de facto. Por exemplo, se alguém adquirir um computador e só lhe puder instalar Windows (qualquer outra coisa não funciona e estoira o computador), estamos claramente perante uma prática monopolista. Se puder instalar qualquer outra coisa, mas for extremamente difícil de o fazer e resultar em performance inferior etc., trata-se de abuso de posição dominante. Se qualquer pessoa puder instalar qualquer outro sistema operativo sem quaisquer limitações ou perda de funcionalidade ou de direitos da pessoa que adquiriu o computador — que é o caso actual — então não há violação das leis anti-trust (ou pelo menos será difícil prová-lo!). O que se pode dizer é que o Windows é um produto «mais apetecível» do que o Linux, FreeBSD, Chromium, etc. e portanto a Microsoft é Má. Mas essa é uma conclusão emocional baseada no marketing da Microsoft; não é realmente uma questão legal. As pessoas têm alternativas, só que não as conhecem. Se a Microsoft for apanhada a publicamente dizer que as alternativas não prestam e a dizer aos seus clientes que as devem evitar porque não funcionam, então a Microsoft está a difamar a concorrência (pode ser legalmente processada por isso!) e essa iniciativa pode também ser incorporada numa batalha em torno de leis anti-trust — i.e. usar marketing para denegrir a concorrência e estabelecer uma posição dominante de mercado, usando falsas alegações que sabe que são difíceis de desprovar (porque a opinião da Microsoft é importante nos media).

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    2. Mas isto nada tem a ver com um músico, que pode escolher livremente como é que a sua obra é distribuída e como pretende ser remunerada por ela; e nada tem a ver com o consumidor final, que pode escolher entre inúmeros músicos, ou mesmo ter acesso a música de borla que tenha sido distribuída por músicos que assim entendem ser a melhor forma de chegar à sua audiência :)

      Não vejo como é que queres aplicar a palavra «monopólio» a um mercado que é livre: há inúmeros produtores, inúmeras formas alternativas de distribuição e inúmeras distribuidoras, e inúmeros consumidores potenciais que preferem um modelo ou outro.

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  22. Miguel,

    ponto 3: (ou 1a)

    «Espero que tenha ficado claro que, ao contrário do que afirmas, um contrato estabelecido entre duas partes tem, de facto, repercussões sobre terceiros que podem não ter assinado esse contrato mas que estão sujeitos à mesma legislação e Constituição.»

    Isto é falso. Tu não podes ser condenado por violar um contrato que não assinaste. Podes ser condenado por violar a lei, mas a lei não é um contrato que tu possas aceitar ou recusar. É imposta a todos. É por isso que continuo a defender que não podes justificar uma lei que concede monopólios sobre a distribuição de certos bens apenas a partir da premissa de que duas pessoas devem poder celebrar entre si os contratos que quiserem.

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    1. Ok, acho que já percebi onde queres chegar.

      Se eu compro um carro e atropelo uma pessoa, estou a violar duas coisas distintas: o contrato com quem me vendeu o carro e uma lei que me impede de atropelar pessoas. O contrato só me afecta a mim e o vendedor. A lei afecta-nos a todos, independentemente da forma como adquiri o carro.

      Talvez a minha ingenuidade advenha do facto de, na maioria das situações, um contrato não existe sem um framework legal em que se insere — este é o caso dos sistemas legais baseados no francês/alemão e que vigoram em quase todo o mundo não-anglo-saxónico. Ou seja, quem vende um carro, apesar de ter um contrato meramente com o seu cliente, que não afecta mais ninguém, só pode, no entanto, celebrar contratos válidos. Não pode, por exemplo, dotar o automóvel de armamento militar e celebrar um contrato dizendo que autoriza o seu comprador a assassinar pessoas (até pode, mas o contrato não seria válido). Porquê? Porque há leis que proibem que as pessoas andem-se a matar umas às outras. Um contrato não se pode «sobrepôr» às leis.

      No caso da «propriedade intelectual» (entre aspas de propósito), a consideração legal (a tal que se aplica a todos) é que um bem não-tangível criado por alguém tem valor, e esse alguém tem o direito de determinar a forma como o seu bem não-tangível é distribuído. Isso é a lei. Depois há o contrato entre o autor e a distribuidora; e o contrato de aquisição do bem, entre o consumidor e a distribuidora. Mas ambos os contratos, embora não afectem mais ninguém para além das duas partes que o assinam, não existem num «vazio legal» mas sim enquadrados num framework legal mais amplo que regula o que pode ser e o que não pode ser contratualizado.

      O que estás a contestar é justamente a lei (e não o contrato) que concede ao autor o direito de dizer como é que a sua obra pode ser utilizada por terceiros. Como disse, eu defendo que esse direito está explícito na DUDH e na Constituição, e que, como tal, é inalienável (podemos, claro, abandonar a DUDH e mudar a Constituição :) ). No entanto, defendo a despenalização, e, talvez mais importante do que isso, a descriminalização (que é exageradíssima) do acto de violar esta lei: deveria caber à parte lesada provar em tribunal que foi, de facto, lesada (e não o contrário: pune-se primeiro sem averiguar a extensão do dolo, o que, a meu ver, é uma perversão jurídica). Era assim que a lei funcionava antes e acho que estava muito bem assim!

      Agora lamento mas não posso aceitar a argumentação (não é só a tua; há mais de uma década que é defendida por muitos activistas :) ) de que «o autor não é lesado porque nunca ficou sem o bem original» quando se faz uma cópia do mesmo sem remunerar o autor. Isso é, como digo sempre, «brincar com as palavras». Existe um conceito fundamental em economia que se chama custo de oportunidade. O autor, para distribuir a sua obra de determinada forma, tem um custo de oportunidade. Sabendo que há pessoas interessadas em apreciar a sua obra, mas não desejando pagar por ela, existe uma atribuição de valor ao seu trabalho. Esse valor é real. A obra de um músico que ninguém quer ouvir não vale nada. Se, pelo contrário, há pessoas que querem ouvir essa obra, é porque tem valor para elas. Se ouvem a obra sem remunerarem o autor pelo valor que dão à obra, então há dolo — há um desejo de usufruir de um bem não-tangível sem pagar pelo valor que implicitamente lhe é dado.

      A argumentação da tua linha ideológica (como disse, não é só tua; isto não é um ataque pessoal) é que a duplicação facilitada e o fenómeno de analogue hole tornam os custos de distribuição efectivamente nulos, pelo que não é legítimo cobrar por eles — especialmente tendo em conta o argumento que as leis de copyright originais protegiam justamente o investimento da duplicação, que era muito caro antes do séc. XIX. Hoje em dia a duplicação «não tem valor» (o que é factualmente verdadeiro) por isso não é legítimo cobrar por essa duplicação (o que é uma argumentação válida).

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    2. Visto estritamente desse prisma, é evidente que o argumento contra as distribuidoras faz sentido: estas estão artificialmente a aumentar os preços de um bem que não custa nada a distribuir, e, nesse sentido, estão a perverter as regras de mercado. É, pois, legítimo questionar as leis que «desregulam» o mercado, permitindo criar preços artificiais para algo que (quase) não tem custo. Com tudo isto estou de acordo!

      No entanto, esse é apenas o prisma da distribuição. O autor, esse, é lesado, mas pode não ser óbvio porquê. É que lhe é dada apenas uma única forma de remuneração pelas suas obras — protegendo o direito que lhe é dado de decidir como a sua obra é distribuída. E esse modelo parte do princípio (nota: este princípio é antigo...) de que uma obra cultural ou artística tem um custo elevado, fruto do trabalho especializado do artista; para um maior número de pessoas poder usufruir dessa obra cultural, é preciso que o preço ao consumidor final seja irrisoriamente baixo (o princípio de «cultura acessível» que já mencionaste e que está na DUDH e na Constituição). Logo, o modelo que se «inventou» foi o de dividir o custo de produção de uma obra por milhares ou milhões de pessoas, que pagam assim apenas uns tostões para usufruirem da obra.

      Se se elimina este mecanismo, das duas uma: ou os artistas morrem de fome, e deixam de haver produtos culturais (e a seguinte geração não vai produzir produtos culturais porque prefere ir trabalhar no MacDonald's em vez de estar a compôr música); ou desenvolve-se um modelo alternativo que permita que «alguém» pague os custos de produção artística e que mantenha os artistas vivos e saudáveis. Esse é o princípio de there ain't no such thing as a free lunchalguém tem de pagar pelo trabalho de outrém :)

      Pessoalmente, como tenho inclinações capitalistas, acho que quem deve pagar é quem tem acesso às obras e pretende usufruir delas: dá-lhes valor, por isso deve pagar pelo que considera importante. No entanto, não me oponho (como já disse há muito tempo atrás) a modelos em que, pela via dos impostos, o Estado adquira a «propriedade intelectual» de todos os artistas e produtores de conteúdo e que os coloque com acesso livre a todos os cidadãos. É irónico que o país mais capitalista do mundo, os Estados Unidos, tenha vastos arquivos de documentação e gravuras de artistas (Library of Congress, etc.) disponíveis gratuitamente, porque existe por lá um princípio fundamental de que «tudo o que foi adquirido com fundos federais é de todos os americanos»... enquanto que por cá, por exemplo, para tirar uma fotocópia de um mapa num museu público pedem-nos €200 ou €300...

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  23. Miguel,

    ponto 4:

    «Mas seria um mundo em que os autores morreriam de fome, e, numa geração, desapareceriam os artistas profissionais.»

    Isto é também falso. Se acabássemos com os monopólios sobre a distribuição é certo que, sendo a distribuição praticamente gratuita, acabavam-se os profissionais da distribuição a menos que conseguissem oferecer algo mais pelo seu serviço.

    Mas não há razão nenhuma para defender que acabariam os artistas profissionais. Isto é como dizer que se cada um for livre de trocar receitas deixa de haver cozinheiros profissionais, ou que se cada um for livre de trocar software deixa de haver programadores profissionais.

    Num mercado livre, sem monopólios, quem tem algo de valor para vender consegue vendê-lo. Estes monopólios só serviam para subsidiar a distribuição, quando esta era muito cara. Hoje não há necessidade disso.

    A música dá um bom exemplo disto. Os artistas ganham dinheiro com os concertos, mas quem ganha com os CDs são as empresas discográficas.

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    1. Não é falso — não sei se alguma vez participaste em forums de discussão sobre o assunto com verdadeiros artistas profissionais que vivem justamente do modelo existente. Eu já. São muito esclarecedores. As discussões são muito parecidas às que tens aqui entre criacionistas e evolucionistas, com uma única diferença: os artistas, praticamente sem excepção, dizem bem claramente que se o modelo for abolido, eles deixam de produzir conteúdos, ponto final. Têm de ir trabalhar para as obras e acabou-se. Muitos obviamente que ficam furiosos por causa disso — por causa do egoismo dos activistas, são forçados a abandonar a carreira que escolheram, mas a sua «vingança» é que depois os activistas, daqui por uma geração, ficam sem nada para copiar, porque os artistas se recusam a trabalhar de borla (essa é, na realidade, o que distingue um profissional de um amador :) ).

      A música é um bom exemplo em que há de facto uma alternativa viável, e que está a ser colocada em prática. Há de facto um número suficiente de pessoas dispostas a pagar €100 ou mais por um concerto, regularmente, para sustentar uma banda. A música clássica, que tem custos ainda mais elevados (uma orquestra pode ter 80 ou mais elementos no palco!), é justamente subsidiada para que os concertos não precisem de custar €100 mas apenas €10 ou 20.

      Um pintor de quadros ou um escultor também pode sobreviver sem direitos de autor. Basta ter uma galeria que consiga vender a um bom preço o quadro ou a escultura original. Depois nunca mais verão um tostão pelo seu trabalho. Penso que argumentarás que é o mais justo.

      Uma peça de teatro também eventualmente poderá sobreviver: parte da «ida ao teatro» tem a ver com o ambiente social, etc. Como os teatros proibem que as pessoas levem para lá câmaras de vídeo ou gravadores, o problema está resolvido :) Eventualmente isto significa que nunca mais se terá adaptações em vídeo, mas tudo bem: quem gosta mesmo de teatro, não quer necessariamente ver a peça num quadradinho de um écrã.

      Mas noutras áreas as coisas não são assim. Um autor literário não tem outra forma de rendimento possível senão vender livros. É certo que o Dickens ganhava dinheiro a dar conferências, tal como o Stallman ainda faz hoje, mas contam-se pelos dedos os que conseguem fazer o mesmo — é que a arte da oratória não é propriamente dominada por todos os autores literários. Por isso, bye-bye literatura.

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    2. A fotografia profissional já praticamente desapareceu. Conheço imensos fotógrafos profissionais que já mudaram de profissão há muito. Por um lado, hoje em dia qualquer pessoa com Photoshop consegue tirar fotos tão boas como qualquer profissional. Por outro lado, é impossível conseguir impedir a cópia de imagens. Logo, os fotógrafos praticamente já não conseguem ter quem os contrate. Haverá algum espaço para a fotografia artística, baseada na noção de «lançamento original» numa galeria ou museu. Os actuais interessantíssimos modelos tipo Getty Images, e dezenas de concorrentes, que pagam aos fotógrafos alguns tostões sempre que as pessoas usam as suas imagens — o que permite a alguns fotógrafos profissionais sobreviverem neste modelo — deixariam de fazer sentido. Portanto, deixaremos de ter fotógrafos profissionais.

      A produção de vídeo parte do pressuposto que as grandes redes de distribuição (TV por cabo ou aérea...) paguem, a peso de ouro, os custos elevadíssimos dessas produções. Se estas cadeias passarem a poder copiar os vídeos produzidos e distribui-los à vontade sem pagar um chavo, adeus produção de vídeo. Haverá alguma que é subsidiada, claro, mas para todos os efeitos, o modelo desaparece. Há quem ache isto uma boa ideia — seria o fim da televisão comercial, se qualquer programa que apareça num canal qualquer pudesse ser copiado instantaneamente (hoje em dia, em tempo real!) para qualquer outro canal e estar em simultâneo no YouTube, Livestream, etc. Nenhum canal de TV iria suportar os custos elevadíssimos de produção para depois não conseguir vender a ninguém o acesso ao mesmo — aliás, melhor negócio fariam abandonando a TV por cabo e vendendo apenas acesso à Internet :) Claro que as pessoas passarão apenas a ver «coisas históricas» — tudo o que tenha sido pirateado até à data! — e depois nunca mais haveria nada de novo para ver. Excepto um documentário ou outro de vez em quando, um ou outro filme do Manoel de Oliveira, subsidiado pelos governos.

      O cinema, em geral, passaria a ser muito mais caro, como os dos concertos de música. Dado que as distribuidoras deixariam de poder ganhar dinheiro com os DVDs, mas apenas com os bilhetes das salas de cinema e com algum merchandising (que ainda por cima seria poderia ser livremente copiado na China, por isso em pouco tempo desapareceria — e nem todos os filmes têm algo que seja «merchandisável»). Logo, ir ao cinema passaria a ser um luxo, excepto para filmes do Manoel de Oliveira e do Michael Moore. A Disney fecharia as portas (há quem não ache má ideia). A produção independente passaria para modelos de crowdfunding (tipo os filmes da Energia). Ou seja: teríamos menos cinema, menos variedade, qualidade duvidosa, muito mais caro, mas aceito que não «desaparecesse».

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    3. E no caso do software, bom, talvez desaparecessem a Microsoft e a Oracle :) embora acredite que muita gente ache que não façam grande falta. A Apple, essa sim, tem tendências fortemente monopolistas (o hardware teoricamente só corre software Apple...) e pode-se dar ao luxo de oferecer os seus produtos de borla, porque o hardware é caríssimo. O software que corre sobre algum do hardware Apple só funciona se for adqurido via Apple, protegendo o investimento dos programadores. Acredito que a Microsoft tentará fazer o mesmo (de novo!) para sobreviver, mas terão maior dificuldade (porque não controlam o hardware). A Oracle é que não terá hipótese alguma :)

      O resto da indústria de software é que provavelmente não seria muito afectada. Já foram ensaiados toneladas de modelos de negócio que partem do pressuposto que as pessoas não precisam de pagar para usufruir dos mesmos.

      Por isso, enfim, admito que é falso o generalismo de que «todos os artistas desapareceriam». Só desaparecerão os autores literários, os fotógrafos (que praticamente já desapareceram), e grande parte da indústria do vídeo (mas não toda). A música está a sobreviver. O teatro, a pintura, a escultura provavelmente continuarão como hoje em dia — fortemente subsidiados no primeiro caso, e no modelo actual (o princípio de que a obra é um bem tangível como um móvel, e, logo, passível de ser vendida) para a pintura e escultura. A TV tal como a conhecemos tenderá a desaparecer; teremos apenas TV subsidiada, tipo a BBC ou a RTP2. No caso do software, tombarão gigantes, centenas de milhares de profissionais em todo o mundo irão para o desemprego, mas há boas perspectivas de continuidade da indústria que já usa outros modelos de distribuição. É mau para milhões, mas não é mau para todos.

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    4. Para mim este parece-me um ponto fundamental da discussão.

      É possível que o sistema que o Ludwig propõe "vença" porque se torna impossível manter o "sistema antigo" sem um tipo de controlo pidesco e invasivo, dada a forma como é fácil copiar. E nesse caso, até prefiro que o "sistema antigo" caia, se para ser mantido continuar a depender da corrupção do processo legislativo, do fim progressivo dos direitos à privacidade, etc..

      Mas o Ludwig recusa-se a reconhecer os custos do novo modelo que propõe, que são esses mesmos. Tornar-se-á muito mais difícil produzir produtos aos quais as pessoas dão valor. Cinema, literatura, séries de tv, certo tipo de software, etc... É sem dúvida uma pena.

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  24. Miguel,

    ponto 5:

    «O que escolhemos é opção nossa e dos artistas que os produziram.»

    Isso é perfeitamente válido desde que não imponha restrições aos outros. O artista pode optar por publicar o seu trabalho ou não publicar. Pode optar por pedir 100€ ou 100,000€ pelo seu trabalho. Mas o artista não pode optar por proibir os outros todos de pintar um quadrado branco só porque o artista pintou um quadrado branco. Isso não é uma opção dele. É uma imposição aos outros.

    O que nos traz de volta aos contratos. Eu acho que o artista tem o direito de celebrar o contrato que quiser com quem quiser para receber o que entender pelo seu trabalho. Mas para isso basta a legislação que já temos para gerir contratos.

    O CDADC é um bicho à parte. Não é um contrato que seja “opção nossa ou do artista”. É uma imposição a todos criada por interesse de alguns lobbies.

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    1. O artista, na actual legislação, não pode impedir os outros de pintar um quadrado branco se ele pintou um :) O direito de autor não incide sobre as ideias, mas sobre a sua concretização física e a sua distribuição. Pode, isso sim, decidir como é que o seu quadrado branco é usufruido pelas pessoas, mas não pode «proibir» outros de criarem os seus próprios quadrados brancos :)

      Como disse há pouco, em estados de direito como o nosso, a lei dos contratos não existe num «vazio legal», mas dentro de frameworks que definem o que é contratualizável e o que não é. Ver atrás :)

      Mas acho que sei o que é que te irrita, que deixo para o último comentário...

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  25. Miguel,

    ponto 6:

    «Se queres propor um modelo em que tudo seja de borla, precisas de explicar como pagas às pessoas para que o seu trabalho possa ser distribuído de borla.»

    Em primeiro lugar, não proponho que tudo seja de borla. Proponho apenas que não criem leis concedendo monopólios sobre o que é de borla só para que os detentores desses monopólios possam cobrar por fazer algo que qualquer um poderia fazer de borla. O trabalho de qualquer pessoa, seja cantor pimba, seja matemático, seja filósofo, continuará a ter o preço que tiver no mercado.

    Em segundo lugar, não preciso de explicar como pago às pessoas seja pelo que for. Num mercado livre, a responsabilidade de encontrar formas de ganhar dinheiro em troca de algo de valor fica a cargo dos agentes envolvidos e não do legislador, e muito menos de mim. Esta é mais uma das excepções injustificadas que, no caso da “propriedade intelectual” são apresentadas como se fossem regra geral quando, na verdade, não se aplicam a mais coisa nenhuma.

    Quando me oponho a um monopólio sobre o cultivo da batata não me obrigo a explicar como os agricultores vão ganhar dinheiro. Quando me oponho a um monopólio sobre a receita do pastel de nata não me obrigo a explicar como as pastelarias vão ganhar dinheiro. Quando me oponho a monopólios sobre software ou filmes também não tenho de explicar como os autores disso vão ganhar dinheiro.

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    1. Penso que então finalmente — uf! — chegamos ao cerne da questão, e que já não tem absolutamente nada a ver com direito de autor :)

      Tem, isso sim, a ver com a ideologia a que subscreves, e às premissas dessa ideologia. Vejamos alguns pontos essenciais:

      1) O trabalho dos outros que se constitua num bem não-tangível não tem valor intrínseco.
      2) O direito dos outros a atribuir valor ao seu trabalho a um bem não-tangível não pode impedir o meu direito a usufruir do trabalho deles de borla.
      3) Estou-me a cagar como é que os outros ganham dinheiro, desde que eu possa usufruir do trabalho deles gratuitamente e sem penalizações. A forma como eles ganham ou dinheiro é problema deles. A forma como luto pelo direito a ter acesso gratuito a bens não-tangíveis criados por outrem é problema meu (e de todos os que concordam com a minha ideologia).

      É justamente por causa deste tipo de ideologias que temos a constituição que temos :)

      Há corolários destes 3 pontos, claro. São conclusões lógicas das premissas:
      Cor. I) Ninguém tem o direito a atribuir valor sobre bens não-tangíveis.
      Cor. II) Ninguém tem o direito a legislar sobre a circulação de bens não-tangíveis (excepto, claro, no sentido de permitir que essa circulação seja completamente livre).
      Cor. III) A maioria das pessoas não quer pagar um tostão pelos produtos culturais que consomem; logo, como em democracia é a maioria que decide, não é legítimo proteger uma minoria que discorda deste princípio universal.
      Cor. IV) Como há falhas no sistema legal — ex. não é clara a separação entre um direito inalienável e um «monopólio» (ou, pelo menos, «posição dominante de mercado»); não é clara a abrangência de contratos de venda de bens não-tangíveis — e como deixaram de existir custos de distribuição (ou se tornaram negligíveis), toda a legislação arcaica e contraditória deve ser imediatamente abolida.
      Cor. V) Não é responsabilidade de ninguém ter-se de preocupar com os problemas dos outros.
      Cor. VI) Como eu (não tu pessoalmente; todos os que subscrevem a esta ideologia) sei argumentar muito melhor que os outros, sou eu que tenho razão, e por isso todas as opiniões contraditórias devem ser eliminadas (falácia da autoridade ;) ).

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    2. Claro está que não posso argumentar que existem erros lógicos na argumentação que conduz a estes (e outros) corolários. Não há, na realidade, são conclusões válidas.

      O que questiono, claro, é as premissas. E sim, bem sei que podes dizer «estas não são as minhas premissas!» Been there, done that, got the T-shirt. Todos os proponentes dos modelos de abolição do direito de autor dizem o mesmo: que não são essas as premissas. Mas quando se começa a «espremer o sumo» vai ser a estas premissas que chegamos :) Ninguém gosta de as afirmar, claro, porque são politicamente incorrectas. É mais fácil elaborar um modelo cheio de palavras carregadas de emoção — por exemplo, «os monopólios são maus, e ninguém gosta de monopólios, porque limitam o mercado livre — logo, quero abolir os monopólios» ou «as distribuidoras são gananciosas e não acrescentam valor ao trabalho dos artistas, logo, proponho abolir os direitos das distribuidoras». A isto chama-se populismo :) Mas é muito eficaz. Eu também não gosto de monopólios. Eu também acho que as distribuidoras são gananciosas. Logo, vejo-me obrigado a «concordar» com essas afirmações também!

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  26. Nunca vi o Ludwig a cometer a falácia da autoridade, nem me parece que decorra da sua perspectiva quanto ao direito de cópia.

    O corolário II parece-me descrever bem a posição do Ludwig.
    Também me parece que muitas vezes argumenta no sentido do corolário IV.

    O corolário I parece-me errado. A ideia do Ludwig é que eu posso atribuir o valor que quiser, e depois posso vender o acesso ao bem que produzi - que terá então valor para mim e para o comprador - só não posso é impedir o comprador de o copiar - corolário II.

    Creio que o Ludwig discorda do corolário III, até porque mesmo que a maioria das pessoas seja a favor de leis que protejam o copyrigth ele considerará que essas leis atentam contra princípios fundamentais.

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    1. Pois, João, na verdade eu cometo o erro do exagero e emprego ironia e sarcasmo :)

      O corolário VI é aplicado de forma indirecta :) Não posso comentar mais sem cometer a falácia do ataque pessoal. Mas na verdade se resume a que qualquer opinião, por mais idiota que seja, se for fundamentada com um argumento lógico por alguém que tenha a capacidade de o fazer com eloquência, deve ser aceite. De notar que este argumento tem aplicação prática em muitos ramos da ciência, onde foram justamente «idiotas» que colocaram radicalmente em questão a forma de pensar da sua época que transformaram, de uma vez por todas, o mundo. Há, pois, algumas boas razões para o fazer.

      Mas isso é um pouco marginal nesta discussão. O meu argumento (e é chato chamar-lhe «meu» quando o estou a plagiar...) é um pouco diferente e tem a ver com princípios abstractos que não são sempre «demonstráveis» logicamente mas que, através da sua aplicação prática, têm mostrado — de forma empírica — que funcionam bem para criar uma melhor sociedade. Assim, é legítimo dizer que muitos dos princípios enumerados da DUDH não são «lógicos». Muitos são «racionais» no sentido em que foi através de pensar no assunto que certas pessoas os enumeraram, achando-os preferíveis quando aplicados a uma sociedade do que o seu inverso, e frequentemente usando exemplos (de uma forma não científica e pouco rigorosa) para explicar o porquê da sua adopção. Por exemplo, «toda a gente tem direito a trabalho remunerado de forma digna» — isto porque se observou que nas sociedades em que este princípio era válido, havia menos escravatura, havia menos abuso de autoridade por parte dos patrões, havia menos fricção social (todos os empregos são necessários e legítimos e todas as pessoas que trabalham têm dignidade, mesmo que o seu emprego não seja ser médico, advogado ou padre). Mas se formos muito frios e duros podemos questionar em que medida é que este princípio é verdadeiro ou não. Talvez hoje em dia seja mais fácil porque temos mais sociedades em que este princípio se aplica e podemos, a posteriori, medir alguns índices de satisfação, e constatar que o princípio foi uma boa ideia — mas em 1948 eram muito poucas as sociedades que de facto o adoptavam. Foi meramente «uma boa ideia» baseada, emocionalmente, em conceitos abstractos como justiça, igualdade, felicidade individual, dignidade, etc. Valores humanos que se achava na altura conduzirem a melhores sociedades.

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    2. Podemos dizer que foi por «pura sorte» que se acertou nos princípios enumerados — não vou contestar isso. Os tais «direitos inalienáveis» são dogmas como quaisquer outros — não têm necesariamente «lógica» mas são aceites por serem dogmas, como em qualquer ideologia ou teologia. Podem e devem, pois, ser questionados. Mas também podem e devem ser contrastados com o que efectivamente se passa na realidade. Uma pessoa que não tenha direito a usufruir de forma digna do produto do seu trabalho é ou não mais feliz? Devemos questionar isso. E literalmente calçar as sandálias: se amanhã o Estado decretar que o meu trabalho deixou de ter valor, porque a maioria acha que é melhor assim, e apresenta bons argumentos lógicos para o fazer, como me sentiria?

      Os movimentos anti-copyright mais radicais (e não digo que o Ludwig se insira nestes, mas usa muita argumentação que conheço muito bem deles — se não os segue, pelo menos já os leu e inspira-se neles) usam justamente a perversão da «lógica argumentativa» para justificar os seus próprios dogmas. O princípio orientador é simples: quero ter o direito a ter acesso gratuito a tudo que seja fruto de trabalho de terceiros que me interessa possuir e cuja duplicação esteja ao meu alcance. Essa é a base. A racionalidade para aceitar este princípio aplica-se, principalmente, à noção de que em democracia a maioria é que decide o que fazer: e constata-se facilmente que a maioria das pessoas quer, de facto, ter esse direito.

      Bom. Mas este princípio orientador esbarra nas leis que protegem as minorias de discriminação — no sentido em que os princípios na DUDH e nas constituições garantem que o direito à remuneração justa pelo trabalho é um princípio inalienável. Então vamos desmontar o argumento. Será o modelo de direitos de autor um sistema que garante «remuneração justa»? Não (porque as distribuidoras ficam com o bolo e os autores com uns restos). Será que, uma vez produzida uma obra, duplicá-la constitui uma forma de prejudicar directamente o autor? Não — se ele não sabe que a obra foi duplicada, como pode ser prejudicado por uma coisa que desconhece? Se não é o autor que efectivamente gasta trabalho na duplicação, como é que se pode afirmar que esta se constitui em «trabalho» que mereça ser remunerado? Não é o autor que faz a duplicação. Logo, não é o autor que trabalha. Logo, não se está a desrespeitar o princípio da remuneração justa do trabalho.

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    3. Com isto já se abalaram os princípios inalienáveis mostrando, por lógica, que não se aplicam. Depois continua-se, na linha que o Ludwig tem seguido (como disse, conheço esta argumentação de muitos e muitos grupos radicais, e não vou dizer que seja «original»). Questiona-se a seguir a questão de «valor» aplicado a bens não-tangíveis. Na realidade a palavra «valor» é um conceito abstracto — mais um dogma: uma definição — e pode ser «esticada» conforme nos convier. Na linha de argumentação das pessoas que pensam como o Ludwig, pode-se pelo menos argumentar de forma a fazer o begging the question: será que realmente uma cópia de um trabalho feita por outra pessoa tem algum valor? Há muitas formas de o argumentar — sei lá, uma forma corrente é de dizer que só tem valor o que é produzido com esforço e recurso a trabalho ou que consuma matéria-prima, e é fácil de demonstrar que clicar numa tecla para fazer uma cópia de uma música tem valor nulo ou próximo de nulo.

      Depois vem a argumentação, essa sim, sempre utilizada pelo Ludwig com grande destaque (cada grupo tem os seus argumentos favoritos): quem usa um computador para fazer duplicação está a usar o seu computador, e legislação que interfira na forma como posso ou não usar o meu computador é injusta e viola princípios de privacidade (entre outros). Depois, «uma música» é uma sequência aleatória de 1s e 0s, sobre os quais não se pode legislar — como não se podem ceder direitos sobre «triângulo» ou «quadrado» — e alegar que uma sequência de 1s e 0s adquiriu, misticamente, «valor» (porque na realidade deixa de ser aleatória quando usamos uma aplicação para transformar essa sequência numa coisa que podemos usufruir com o sentido auditivo e ter prazer nisso), é absurdo, como seria absurdo dizer que um padrão de nuvens tem «valor» por ser bonito para alguém que o observa pela janela.

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    4. E podemos continuar nessa linha... depois obviamente que voltamos ao princípio de base, que é se nada destas coisas fazem sentido, nada disto tem valor, tudo é abstracto e intangível, como pode haver leis que protejam então este «direito»? E aqui pode-se dissertar à vontade, alicerçando sempre em princípios lógicos. Se o argumento não for persuasivo, usam-se palavras carregadas ideologicamente: chamam-se nomes feios às coisas, como «isto é um monopólio, e as leis que regulam o comércio livre são anti-monopólios e anti-cartéis (daqueles que defendem estas leis)». Agora entramos na argumentação que usa a demonização para criar uma reacção emocional. Viramo-nos para alguém e acusamo-lo de ser uma pessoa malévola porque apoia «monopólios» (mesmo que o façamos de forma subtil — não é preciso ser-se mal educado!). Como somos treinados emocionalmente para termos acções, em geral, positivas para com a sociedade, o termo-nos de defender de uma acusação de sermos na realidade pessoas malévolas desarma o adversário. Estratégia comum, por exemplo, não só aos ideólogos mas principalmente aos religiosos :) (as diferenças esbatem-se).

      E, no final, quando o argumento «derrota» o adversário — que sucumbe à lógica e aos ataques emocionais — e este pergunta: «Ok, pronto, estou convencido que isto é uma coisa Má. Como podemos então remunerar o trabalho daqueles que criam objectos culturais?» a resposta, inevitavelmente, é sempre «estou-me a cagar para isso, isso não é meu problema».

      Se calhar é isso que pessoalmente me chateia mais: a desresponsabilização social dos grupos radicais que defendem apenas os seus princípios egoístas (mas que alegam serem os mesmos da maioria das pessoas!), mas que não querem saber dos outros para nada — especialmente se forem uma minoria que não interessa a ninguém (mas curiosamente, o trabalho dessa minoria insignificante tem tanto valor que o querem arrancar à força sem dar nada em troca...). Infelizmente, constato que também o Ludwig, como tanta gente que conheço de entre estes grupos radicais, tem exactamente a mesma atitude: obter um direito que não tenho, retirar direitos aos outros; obter aquilo que desejo sem dar nada em troca; argumentar para justificar a minha posição, e, quando a justifico, estar-me nas tintas para a posição daqueles que vão ficar sem subsistência. Argumentar com os direitos inalienáveis que tenho (direito à propriedade, à privacidade, etc.) retirando os direitos inalienáveis dos outros (isto é um problema que os autores da DUDH sempre tiveram, e por isso é que existe um princípio de que não se pode usar um artigo da DUDH para eliminar os direitos e deveres estipulados noutro artigo — o que faz, obviamente, que a legislação seja mais complicada, de forma a não violar nenhum artigo. Empiricamente, como disse, o que se viu nestas décadas é que as legislações que conseguem fazer isto criam sociedades mais justas e egualitárias).

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    5. Quando se chega a este ponto, então o que acontece é simples. Todos aqueles que racionalizam a justificação e que aceitam uma argumentação lógica como sendo o princípio que deve regular as sociedades humanas sentem-se muito contentes consigo próprio: é que qualquer racionalização lógica deste argumento vai chegar sempre à conclusão de que não faz mal algum privar os autores do fruto do seu trabalho, porque não há princípio lógico que consiga justificar que eles estão, de facto, a serem privados disso. Por isso é que este tipo de argumentação é tão forte!

      Como eu gosto de analogias exageradas para ilustrar os pontos, isto seria a mesma coisa que argumentar racional e logicamente que é justo matar os governantes quando estes são corruptos e não trabalham para o bem do povo que os elegeu democraticamente. In extremis poder-se-á justificar que a morte de uns poucos que prejudiquem todos é mais saudável para a sociedade como um todo do que estar a agarramo-nos a um dogma de que a vida é preciosa e deve ser protegida a todo o custo — afinal de contas, não temos guerras justificáveis e não temos ainda muitos países com pena de morte? (E esses países não têm sociedades assim tão disfuncionais como isso!) Ademais, é assim que se fazem revoluções, que por vezes conduzem a sociedades melhores: matam-se os governantes.

      Então porque é que não se usa essa argumentação para «retirar» o direito à vida aos governantes corruptos, já que pode ser demonstrada logicamente que seria a melhor solução? Bem, porque o princípio inalienável do direito à vida é «mais forte» do que uma coisa abstracta como o direito ao trabalho e à remuneração justa. Uma vida humana é algo de tangível; o trabalho de um artista não é. Privar uma pessoa da sua vida efectivamente remove-a da sociedade, o que parece mau; deixar de remunerar artistas significa apenas que têm de escolher outra profissão, tipo lavar pratos, mas não os suprime a sociedade enquanto seres humanos. Logo, matar pessoas, mesmo que justificadamente, é mau; retirar-lhes a capacidade de trabalhar numa coisa que beneficia toda uma sociedade em termos culturais, bem, isso é muito abstracto... melhor, isso sim, é tomar medidas com que todos estão de acordo: ter acesso gratuito a todo o património cultural da humanidade é muito melhor do que estar a proteger uma minoria inútil e insignificante!

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    6. Essa é a essência do argumento, com a qual não posso concordar. Posso-a compreender. Gosto muito de citar os 6 Estágios de Moral do Kohlberg, mesmo sabendo que são cientificamente refutáveis e estão incorrectos, mas são um bom princípio de discussão. Uma conclusão do Kohlberg é que temos sociedades que estão no patamar cinco — democracia: onde todos, por comum acordo, aceitam livremente adoptar comportamentos sociais eticamente correctos, porque compreendem que são os mais benéficos para a sociedade como um todo. Fazem-no de espontânea e livre vontade por terem esta compreensão.

      O dilema é que a esmagadora maioria que vive nessas democracias está nos estágios 2 ou 3: estágios em que apenas se respeitam as leis por medo da punição; ou, pelo menos, porque se acha que as leis devem ser respeitadas por serem leis. A meu ver, hoje em dia, a esmagadora maioria da população está a descer nos estágios de moral de Kohlberg: as leis já só existem como guidelines e podem ser corrompidas sempre que se quiser, porque não têm valor por si só; e a punição cada vez é menos eficaz — ou vista como cada vez mais injusta! — logo, deve ser progressivamente abolida.

      De notar que a adopção de determinado patamar segundo o Kohlberg não tem nada a ver com a inteligência, a educação, o meio ambiente, etc., embora Kohlberg — de forma optimista — acreditasse que fosse possível, através da educação, elevar o patamar moral das sociedades (ele era, afinal de contas, seguidor do Piaget). A crise de valores por que passamos hoje em dia mostra que ou Kohlberg estava totalmente errado — que de nada serve tentar elevar o patamar através da educação, porque o que temos hoje é mais educação e patamares de moral inferiores — ou que não mudámos o sistema de ensino para promover uma elevação desses patamares. (Aliás, estas duas críticas estão muito na base da refutação das teorias do Kohlberg — até porque ele começou os seus estudos observando os patamares de moralidade pelos quais passam as crianças, onde parecem estar presentes, e depois extrapolou para as sociedades).

      A minha opinião é que Kohlberg não estava de todo errado e que é possível uma mudança de mentalidade e de atitude morais através da educação, mas que na actualidade isto não é incentivado nem pelo sistema de ensino, nem pelos exemplos dados por aqueles que, de certa forma, idolatramos. Mas claro que é meramente uma opinião pessoal não fundamentada :)

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  27. Embora prometesse não o fazer, vou quebrar a minha promessa, e propôr, uma vez mais, o «meu» modelo, e oferecer algumas variantes. Nada disto é novo, nada disto é original. Mas é só para ficar clara qual a minha posição :)

    Em primeiro lugar, neste momento temos uma alternativa ao sistema de direitos de autor. Há software open source e gratuito. Há obras culturais em regime Creative Commons. Em ambos os casos, há imenso material de altíssima qualidade. Em todos estes casos, as pessoas que produzem estes bens não-tangíveis sobrevivem de alguma forma e não querem remuneração pelo seu trabalho. Então parece-me legítimo afirmar que há, de facto, um modelo alternativo que co-existe com o existente — não o suprime, apenas o «ameaça» num sentido de competição num mercado livre. Os autores têm opções para licenciarem as suas obras, que não precisam de ser apenas segundo um único modelo imutável há 150 anos. Têm opções. Mas mais importante que isso: os consumidores destes bens não-tangíveis têm, igualmente, opções. Podem desfrutar livremente de uma vastíssima quantidade de bens não-tangíveis cujos autores generosamente colocaram gratuitamente à disposição de toda a humanidade. E não se trata apenas de quantidade mas sim de qualidade.

    A prova de que este modelo tem vindo a safar-se bem é que tem crescido: cada vez há mais bens não-tangíveis a serem distribuídos neste modelo. Cada vez têm melhor qualidade. Então, enquanto consumidores, se não queremos aproveitar esta opção, é uma decisão nossa. Por outras palavras: podemos correr software livre, podemos ouvir música livremente, podemos ver vídeos e usar fotografias — aos milhões — que são todos livres. A opção existe. Então porque não a usamos?

    Porque na realidade achamos que os produtos comerciais que não são livres são os mais apetecíveis :-)

    Estranhamente, após tanta argumentação a dizer que estes bens não têm valor, é pelas acções — piratear apenas aquilo que tem valor para nós, descartar aquilo que é oferecido gratuitamente porque não tem valor — que invalidamos a nossa argumentação :)

    As pessoas como eu que defendem este modelo partem do seguinte princípio: eu também gosto de música à borla. Também gosto de ilustrar com imagens o meu blog. Não gosto de pagar uma licença pelo processador de texto que uso. Os meus clientes não têm dinheiro para pagar licenças de software para o servidores deles. Ok, são opções minhas. Tenho todo o direito de ouvir música à borla: então vou ouvir música daqueles que a fornecem em regime Creative Commons. Posso ouvi-la à vontade. Sim, não é a Beyoncé, mas e depois? A Beyoncé é um produto comercial tornado apetecível pelo marketing :) Há cantoras melhores, no mesmo estilo, cujas músicas estão disponíveis gratuitamente. Então, por opção minha, apenas ouço essas músicas e não pago nada à Beyoncé. Tenho alternativas e tiro proveito delas — sem prejudicar ninguém.

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  28. O que espero — mas com calma! — é que, com o tempo, ninguém mais ouça a Beyoncé porque as cantoras que oferecem a música de borla são tão boas como a Beyoncé e, bem, oferecem música de borla :) — ao ponto de «forçar» a Beyoncé a oferecer, ela também, a música de borla, para continuar a ser ouvida e poder ganhar dinheiro em concertos. Ora isto na realidade já está a acontecer aos poucos. Note-se que a diferença na minha abordagem é que são as próprias Beyoncés deste mundo que tomam elas a sua decisão. Ninguém as impõe nada. É certo que o mercado «conspira» num certo sentido, mas a opção continua a ser dos autores — e dos consumidores — não de um legislador que porventura negasse à Beyoncé de cobrar o que quer pelo seu trabalho.

    Este é o «modelo um» — basicamente, o que temos hoje em dia. Nalgumas áreas, por exemplo, o sucesso é extraordinário. Por exemplo, o Apache é o servidor Web mais utilizado em todo o mundo. O WordPress é um CMS usado em metade dos domínios .com que são actualmente registados, e está presente em 16% de todos os sites do mundo — tem a maior quota de mercado. O Linux há anos que é o sistema operativo com maior quota de mercado a nível de servidores — a ponto de empresas como a IBM há mais de uma década fornecerem-no de raíz nos seus servidores de médio porte. Os browsers open source, em conjunto, têm mais quota de mercado do que o único que ainda não é open source — o Internet Explorer. Tudo isto são fortes argumentos para mostrar que, a longo prazo, este modelo de «co-existência pacífica» está, aos poucos, a dar a vitória ao campo open source/Creative Commons, e que é meramente uma questão de tempo. Quem tenha paciência basta apenas esperar :)

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  29. O «modelo dois» é para quem não queira esperar :)

    É muito simples: pagamos impostos, e através destes, o Estado adquire os direitos de distribuição das obras culturais, que ficam depois disponíveis para todos os cidadãos. No fundo, é um modelo de cultura subsidiada. Como sou social-democrata (no sentido original da palavra), não me assusta nada que o Estado use o dinheiro dos contribuintes para lhes oferecer coisas que todos usufruam de borla.

    Claro que isto pode querer dizer mais impostos. Tudo bem! Só disse que este era mais um modelo, não que o modelo fosse melhor, pior, ou sem consequências :) O que quero dizer é que não é preciso privar os autores do direito à remuneração do seu trabalho, e, simultaneamente, facilitar o acesso da população a obras culturais. O Estado pode assumir esse papel. É uma hipótese.

    Vou repetir o exemplo americano, país mais capitalista e liberal do mundo: o dinheiro dos contribuintes que serve para adquirir produtos culturais a nível federal — livros, quadros, fotografias — é empregue na distribuição completamente gratuita e sem restrições de reproduções digitais dos mesmos. No pensamento americano, é injusto que algo que tenha sido pago por todos depois se torne numa fonte de rendimento do Estado! Por cá, se quero tirar uma fotografia a um quadro num museu público, tenho de pagar balúrdios. Porquê? O Estado já gastou dinheiro a adquirir a obra, dinheiro esse que saíu do meu bolso. Porque é que tem de fazer disso um negócio e cobrar-me duas vezes pela mesma coisa? Há um princípio de utente-pagador, com o qual concordaria em princípio, mas que neste caso — usando os mesmos argumentos do Ludwig que tirar uma cópia de um quadro não custa nada — penso não serem correctos. O dono da obra já foi pago. Há dualidade de critérios: se alguém é contratado pela câmara para fazer uma estátua numa rotunda, e como em Portugal tudo o que está na via pública é bem comum de todos os cidadãos, posso perfeitamente tirar uma foto e ganhar dinheiro com isso. Se o Estado constrói um museu por cima dessa estátua, tenho de pagar! Não faz sentido.

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  30. O «modelo três» é da autoria da minha mulher, e acho-o muito divertido :) Um artista, quando se regista como tal, tem o direito a escolher o modelo de «ganância» ou de «glória». No modelo «ganância» pode explorar comercialmente o produto do seu trabalho como lhe apetecer e esse direito é-lhe concedido; mas no momento da morte, toda a sua obra passa para domínio público, ponto final, e este direito não é um bem transaccionável (ou seja, o Walt Disney morreu, o Rato Mickey passa a propriedade da humanidade, fim da história).

    No modelo «glória», toda a obra do artista está no domínio público, mas é papel do Estado assegurar um subsídio vitalício do artista, assim como a promoção (gratuita) e distribuição (gratuita) da sua obra. Ou seja, é como se fosse celebrado entre o artista e o Estado um contrato de agenciamento e distribuição da sua obra. Evidentemente que em todas as actividades do Estado, este está proibido de contratar artistas no modelo «ganância» e apenas usar os que estão no modelo «glória». Por exemplo, câmaras municipais estariam proibidas de contratar artistas para festas populares no modelo «ganância». Só poderiam escolher artistas no modelo «glória». Claro que qualquer empresa comercial poderia, para essas mesmas festas populares, contratar os artistas que quisesse - mas estes não estariam nos cartazes impressos pela câmara com dinheiro dos contribuintes. Estariam apenas nos cartazes impressos pelas empresas comerciais. E, evidentemente, é papel do Estado listar de forma publicamente acessível os artistas que estão no modelo «glória».

    Simples :)

    De notar que a esmagadora maioria dos artistas escolherá sempre o modelo «ganância», mas depois tem de se sujeitar a ter de viver com a pirataria que é incontrolável :) Por outro lado, escolher o modelo «glória» implica uma vida de pobreza franciscana, mas muita divulgação gratuita, e pelo menos não se morre de fome ou se tem de ir lavar pratos — pode-se dedicar, a tempo inteiro, a uma actividade que será louvada por toda a sociedade.

    Obviamente que não estou a dizer que este modelo não tem falhas. Claro que tem. Mas é uma ideia gira. E, tal como os outros dois, procura conciliar as duas coisas — o direito dos artistas a ganharem dinheiro e o direito dos consumidores a terem produtos culturais de borla.

    A única diferença no modelo 1 e 3 é que se dão alternativas, tanto aos artistas como aos consumidores. Ambos podem escolher o que preferem. No modelo 2 não há alternativa: é o Estado que suporta tudo, e somos todos nós — quer consumamos produtos culturais, quer não — que pagamos os custos do modelo. A meu ver, dada a sua carga ideológica (o princípio que certas coisas devem ser suportadas por toda uma comunidade, para benefício de todos), é o que tem menos possibilidades de ser implementado. O modelo 3 é o que os artistas menos gostarão :) O modelo 1, que é o que temos de momento, requer uma mudança de mentalidade, e um trabalho de educação do consumidor quanto às opções de que dispõe. Ou seja, todos eles têm vantagens e desvantagens; nenhum é «perfeito». Mas todos são «justos» no sentido de estarem de acordo com os princípios inalienáveis da DUDH e da Constituição — não se retiram à força direitos a ninguém, dão-se é opções quanto à forma de exercer os direitos.

    E por hoje fico-me por aqui...

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