Pessoa ou não: quem decide?
Muitos consideram que na base de problemas como o aborto está o estatuto do embrião, e temos que decidir se é pessoa ou não. Eu vejo um problema mais fundamental: a legitimidade de decidir tal coisa.
Abundam exemplos de tais decisões, em que crianças, mulheres, e membros de certa raça, credo, casta, ou nação são considerados menos que pessoas. Invariavelmente, são decisões condenáveis, porque ignoram que os que classificam de sub-humanos seriam capazes de discordar da classificação se as condições o permitissem.
É importante salientar aqui a natureza hipotética desta condição. A maioria das crianças que são prometidas em casamento, vendidas como escravas, ou mutiladas em nome da fé não compreendem que têm direitos que estão a ser violados. Muitas das mulheres que são ensinadas desde o berço a obedecer ao pai, ao irmão, e ao marido não percebem que isto não é como deve ser. O sistema de castas está tão entranhado na cultura de certos povos que é muito difícil explicar a injustiça desta discriminação. Mas todos seriam capazes de discordar destas injustiças se tivessem as condições necessárias para o fazer: tempo, educação, e conhecimento das alternativas.
Por isso considero sempre ilegítimo este tipo de discriminação. Qualquer ser que tenha a capacidade de se reconhecer como pessoa é pessoa em virtude dessa capacidade, independentemente do que diz a religião, a nossa opinião, ou um referendo. Nem importa que esteja impossibilitado de o fazer por força das circunstâncias, seja pela sua idade seja pela sua educação. Uma rapariga pedir que lhe cortem o clitóris para ir para o céu não legitima esta barbaridade. Temos que considerar que a rapariga teria outra opinião se tivesse mais uns anos, se percebesse que há muitas crenças religiosas, e que não é necessariamente verdade que os deuses se ofendam com uma parte tão inofensiva da anatomia humana. É esta capacidade de decisão autónoma que faz da rapariga uma pessoa, e que nos obriga a respeitar os seus interesses mesmo quando ela não a pode exercer.
O caso da legalização do aborto é complexo, e depende de vários factores. Mas o argumento que defende tratar-se de um crime sem vítima porque o embrião não é pessoa é um disparate. Comete este erro que, precisamente por ser tão grave e frequente, já devíamos ter aprendido a evitar. Dadas as condições necessárias, aquele ser é tão capaz como qualquer um de nós de compreender que tem direito de viver, e que deve ser respeitado como pessoa. Isso torna ilegítimo que o classifiquemos de outra forma.
Existe algo que todos esses grupos detinham, mas que os embriões não: consciência, pensamento, memórias, passado.
ResponderEliminarA cada pessoa corresponde um traçado de relações afectivas, corresponde uma personalidade, corresponde um passado.
A um filho indesejado pode corresponder tudo isso, por vezes da pior forma. Não sei se estará correcto ser criado nessas condições. Até pode ser que sim.
Mas creio que é uma escolha demasiado delicada para que a maioria possa julgar o que é que cada casal decide ou não fazer.
De qualquer forma, no próximo referendo existe também uma questão mais pragmática subjacente: será que a actual lei não está a impedir que nenhum aborto seja feito, impedindo apenas que alguns sejam feitos em melhores condições higiénico-sanitárias?
ResponderEliminarSerá que não está a afastar as famílias que consideram a hipótese de abortar das instituições que as poderiam ajudar a não o fazer (pelo receio que terão de ser "apanhadas")?
O ponto que eu quero salientar é que a escolha é demasiado importante para que se possa decidir o critério a aplicar a outro para o classificar de pessoa ou não. Todos os grupos que enunciei têm características que os distinguem dos outros. Se pudermos escolher as características que quisermos podemos sempre excluir alguns da categoria pessoa.
ResponderEliminarO que eu proponho é que isso é ilegítimo sempre que seja possivel aos excluidos vir a discordar dos critérios que usamos, quaisquer que sejam.
Por exemplo, se eu ficar em coma irreversível por dano cerebral, acho que não serei mais pessoa. Mas se for reversível, acho que serei ainda pessoa. Apesar de em ambos os casos ter o mesmo passado, a mesma teia de relações afectivas, e tudo o resto. A única diferença é que num caso eu poderei vir a discordar se me disserem "Não és pessoa porque...", e no outro nunca poderei discordar.
E concordo que ser um filho indesejado é mau. Mas ninguém deixa de ser pessoa por isso.
E também concordo que há outros factores a considerar (até o disse no post). Tentarei abordá-los conforme o tempo o permitir.
e se amanhã se descobrir nalguma selva perdida um australopithecus? é pessoa ou não? e podemos matá-lo ou não? e a uma vaca? e a vaca no matadouro, sofre mais ou menos que um embrião de 10 semanas? não me parece que a questão a referendar seja sobre a definição de embrião como cidadão de plenos direitos ou não. muito pelo contrário refere-se à mulher grávida que comete IVG: vai presa ou não? pode fazê-lo em condiçõs de segurança e higiene ou não?
ResponderEliminarSe descobrirmos australopitecos e tiverem consciencia de si próprios como pessoas, então não será moralmente aceitável matá-los. O mesmo se passa se concluirmos que as baleias, ou os chimpanzés, ou elefantes, ou outros que tais têm esse nível de auto-consciência. Nesse caso são pessoas. Não acho correcto limitar o conceito apenas à nossa espécie.
ResponderEliminarO caso do sofrimento da vaca é a razão principal para eu não as comer, mas é diferente. É que matar uma vaca sem a fazer sofrer não será um problema tão grande como matar um de nós sem o fazer sofrer. Eticamente, terminar a vida de um ser autoconsciente tem implicações para além do sofrimento causado pela morte em si.
Quanto aos aspectos legais, tenciono abordá-los mais tarde, mas quero apenas apontar que temos sempre que pesar o custo ético de permitir um comportamento com o custo ético de o punir. É que punir é sempre moralmente condenável, e apenas pode ser considerado como ferramenta adequada se previne um mal maior.
«É que punir é sempre moralmente condenável, e apenas pode ser considerado como ferramenta adequada se previne um mal maior.»
ResponderEliminarE em grande parte é isso que está em jogo no referendo. É que parece que essa ferramenta se tem revvelado extremamente desadequada.
«Eticamente, terminar a vida de um ser autoconsciente tem implicações para além do sofrimento causado pela morte em si.»
Tem algumas:
a) O sofrimento causado nos outros seres capazes de sofrer que tenham relações afectivas com esse ser
b) O sofrimento causado em cada um de nós por temer que, nas mesmas circustâncias, o mesmo nos acontecesse.
O ponto b) colhe no caso dos exemplos que o Ludwig tem dado acerca das pessoas em coma, mas não colhe no caso dos embriões.
Quanto ao ponto a), esse sofrimento seria causado fundamentalmente aos pais, que seriam os mesmos a quem caberia a decisão de abortar ou não.
«o mesmo nos acontecesse.» = »o mesmo nos pudesse acontecer»
ResponderEliminarSer errado matar uma pessoa porque ela terá medo de morrer é insuficiente. Isto quer dizer que é moralmente aceitável convencer alguém que quer morrer (para ir para o paraíso, por exemplo) porque nesse caso morre de bom grado, sem medo nem sofrimento.
ResponderEliminarEu acho que o pior que há em matar alguém é privar esse ser do seu futuro. Eu prefiro sentir a dor duma facada e, por instante, temer que vá morrer mas afinal não acontecer nada, do que me anestesiarem e matarem. Perco muito mais no segundo caso, mesmo sem sofrimento...
bom, ao menos és vegetariano pelo que és consistente no que dizes! :-)
ResponderEliminarmas então nem sequer podes ser a favor da actual lei sobre a IVG, certo? quer dizer, mesmo que uma mulher tenha sido violada, isso é irrelevante, dada a forma como encaras o embrião. certo? ou não?
Bem, não sou necessariamente vegetariano. Há animais que se pode matar com pouco sofrimento (e.g. galinhas) e animais que, tanto quanto se sabe, não têm estruturas nervosas necessárias para sentir, e são basicamente máquinas biológicas (camarões, peixes). Esses como na boa.
ResponderEliminarQuanto ao aborto, até estou de acordo com a lei actual. No caso de violação, se bem que por um lado temos o problema moral de matar uma pessoa, por outro lado temos o problema moral de usar o corpo de uma mulher inocente, que ainda por cima foi violada, e o problema moral acrescido de a punir se abortar. Nesse caso diria que a balança pende a favor da mulher, e permitir o aborto é o mal menor.
O caso de uma mulher que engravidou porque decidiu voluntariamente ter relações sexuais e sabendo que a gravidez era uma consequência possível é diferente. Em vez de ser vítima é um dos dois responsáveis pela situação.
Mas tenciono detalhar isto melhor nos próximos dias. Stay tuned :)
"...se bem que por um lado temos o problema moral de matar uma pessoa, por outro lado temos o problema moral de usar o corpo de uma mulher inocente..."
ResponderEliminarparece-me que com isto abres espaço a que, já agora, se mate também o violador. afinal, quem decerto não tem culpa nenhuma é o embrião. porque há-de ser ele/a a pagar as favas? venha a pena de morte para violadores então!
com isto apenas quero dizer que não faz sentido perder-se o tempo a discutir se um embrião tem estatuto de cidadão ou não quando todos concordamos que não tem. ou seja, todos encontramos excepções onde o embrião é tratado de forma diferente de um cidadão.
não será então mais útil discutir ao invés os verdadeiros problemas (e que podemos ter esperança de resolver): a mulher grávida que comete IVG: vai presa ou não? pode fazê-lo em condições de segurança e higiene ou não?
Certamente que aceito que a mulher mate o violador que a está a violar. Ou pelo menos, que não vá para a prisão se lhe der uma facada enquanto está a ser violada e ele morrer. E isto mesmo que o violador seja sonâmbulo, ou tenha sido drogado, ou seja deficiente mental, e não tenha culpa do que faz.
ResponderEliminarA questão também se prende com o valor da vida, e com a subjectividade dos valores, mas isso demora mais a explicar e tenho que estruturar melhor o texto. É melhor não tentar num comentário rápido senão baralho tudo :)
Quanto ao estatuto de cidadão, isso implica muito mais coisas que o valor da vida, e o direito a que a protejam se for atacada. Esse penso que é o único relevante, e acho que o embrião tem tanto como nós. Mas, ao contrário dos Católicos, não considero que a vida seja automaticamente um valor absoluto superior a todos os outros. Há muitas situações em que se justifica matar. Se viesse um doido esfaquar os meus filhos, mesmo achando que ele não tem culpa de ser doido só não o matava se não conseguisse, se fosse preciso matá-lo para o deter...
Ludwig:
ResponderEliminar«Ser errado matar uma pessoa porque ela terá medo de morrer é insuficiente.»
Primeiro queria esclarecer um equívoco: o ponto b) - e nota que havia um ponto a) pelo que o ponto b) não seria o único problema - não se referia ao medo que ESSA pessoa sentiria.
Refere-se ao medo que CADA pessoa sentiria por saber que isso lhe poderia acontecer.
Por exemplo, se matassem um conhecido meu quando ele estivesse em coma, inconsciente , mas pudesse voltar a sobreviver, isso causar-me-ia sofrimento de duas possíveis formas:
a) Por me ver privado da companhia dessa pessoa, caso gostasse dela
b) Por temer que, em iguais circustâncias fosse privado de continuar a viver.
O ponto b) não se aplica portanto apenas à pessoa cuja vida estão em questão, mas a todas aquelas que conhecem as circustâncias da sua morte ou conhecem tal possibilidade.
«Isto quer dizer que é moralmente aceitável convencer alguém que quer morrer (para ir para o paraíso, por exemplo) porque nesse caso morre de bom grado, sem medo nem sofrimento»
Eu acho que isso é muito menos grave que um assassínio. Mas não sou incoerente ao considerar moralmente condenável porque:
a) Existe sofrimento causado nos amigos e familiares dessa pessoa.
b) Para alguns pode existir o medo de que, num momento de fragilidade emocional, os convençam com a mesma facilidade
c) Eu creio que a desonestidade encerra em si (por diversas razões de índole utilitarista) algo de imoral, pelo que, se os argumentos usados para convencer essa pessoa forem desonestos (e parece-me provável que sejam; mesmo sem o exemplo do paraíso) existe algo de desonesto nessa atitude.
Nota bem: o que está em jogo não é o sofrimento da pessoa ou ser no momento da morte. É todo o sofrimento causado directa ou indirectamente com a sua morte, que poderia ser (ou não) evitado pela forma como morre.
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Conclusão: há inúmeras questões que distinguem os outros exemplos que dás da questão do aborto, e eu apontei duas razões «naturais» (de índole utilitarista) que permitem fazer tal distinção.
Isso também não resolve o problema. Podes imaginar uma sociedade em que os mártires são venerados, e que um tipo matar-se em nome do seu deus não só é uma ideia agradável a ele como a todos os amigos, familiares, etc.
ResponderEliminarMas o problema fundamental o teu utilitarismo não resolve, pois não podes determinar para todos o que é mais util. Uns poderão achar preferível uma mentira agradável, outros poderão preferir uma verdade desagradável, dependendo de darem mais valor de utilidade ao seu prazer ou à verdade.
O problema é que qualquer critério (utilitarista ou não) que uses para decidir que um certo ser pode ser morto à vontade pode não estar de acordo com o critério que esse ser escolheria se não o matasses. É isso que moralmente obriga a considerar também a posição dele.
Imagina esta alternativa: em vez de abortar, os filhos indesejados eram drogados, e criados isolados do resto da sociedade. Mantinham-se drogados para não sofrer, não se ensinava nada para não temerem o seu fim, e depois eram sacrificados para dar orgãos a quem precisasse. Ninguém nesta sociedade ia lamentar a sua morte (eram indesejados, e ninguém os conhecia), muita gente ia ficar feliz por ser curada, e ninguém tinha que temer acontecer-lhe o mesmo, pois qualquer pessoa que já tivesse idade para perceber o que se passava já estava safa deste destino.
Somar o prazer de todos e subtrair o sofrimento é insuficiente. Eu sou bastante utilitarista, mas o sistema só funciona se não restrigirmos o útil ao agradável :)
Respeitar que os outros podem considerar mais util algo que nós consideramos menos é uma parte fundamental de um utilitarismo que funcione.
«Respeitar que os outros podem considerar mais util algo que nós consideramos menos é uma parte fundamental de um utilitarismo que funcione.»
ResponderEliminarCom isso concordo.
Mas resta sempre a outra questão: até que ponto a lei evita abortos... e até que ponto o bem que daí adviesse compensaria os males causados pela proibição.
São questões às quais um utilitarista não se pode esquivar.
Uma boa questão, que tentarei responder nos próximos posts. O objectivo até agora era estabelecer o dever moral de considerar os interesses daquele ser que nos propomos matar. Mas esse era só o primeiro passo.
ResponderEliminarStay tuned :)
espero então por esse novo post, pois parece que aqui defendeste que os filhos devem poder ser condenados à morte pelos crimes dos pais, e que qualquer deficiente também pode ser condenado à morte... ;-)
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