Consequências de não ser pessoa.
Uma boa forma de testar uma hipótese é pelas suas consequências. Se é uma hipótese descritiva, confrontamos previsões com observações. Se é uma hipótese normativa, confrontamo-la com outras normas que aceitamos. Proponho que a hipótese de só se tratar como pessoa um ser que manifesta o atributo X falha este teste, qualquer que seja o X.
Vamos assumir que há um período no desenvolvimento embrionário, antes do tal atributo X se manifestar, durante o qual aquele grupo de células é moralmente equivalente a quaisquer outras células do corpo da mãe. Seria legítimo que a mãe retirasse ao embrião as células que dão origem ao olho esquerdo (ou a um braço, ou pé, enfim, percebe-se a ideia). Isto choca com a nossa noção do que é moralmente aceitável, mas podemos salvar a nossa hipótese original com uma hipótese auxiliar: não é aceitável fazê-lo porque, mais tarde, quando for pessoa, o filho vai sofrer as consequências desta acção. Por outro lado, se destruirmos o embrião antes de ser pessoa nunca é pessoa, e não há problema moral.
Mas vamos supor que há um tumor naquelas células, e removê-las é a única forma salvar o embrião. A hipótese que adicionámos condena esta acção, pois se o embrião morrer não há consequências para uma pessoa, mas se for salvo uma pessoa vai ter que viver sem um olho. Além disso esta hipótese adicional tem a particularidade muito curiosa de não considerar a morte uma consequência relevante.
Pior ainda é a possibilidade de impedir a manifestação do tal atributo X, continuando o desenvolvimento. Suponhamos que o atributo X é o pensamento, ou consciência. Se anestesiamos um ser na fase embrionária e o mantemos inconsciente durante a gestação, infância, puberdade, e assim por diante, podemos levá-lo a qualquer estágio de desenvolvimento sem o dever moral de o tratar como pessoa. Isto pode ser muito conveniente para criar dadores de órgãos, mas mais uma vez entra em conflito com a nossa percepção do que é moral e imoral. Não parece legítimo escaparmos do dever de o tratar como pessoa só porque o impedimos de manifestar o atributo X.
Finalmente, os atributos característicos duma pessoa são mais evidentes em muitos animais adultos que num humano recém nascido. Mas poucos estão dispostos a aceitar a exclusão de recém nascidos, ou a inclusão de macacos, cães, e porcos, na categoria de pessoa. Por isso a maioria dos que defende esta hipótese opta por se restringir arbitrariamente á nossa espécie, para que possa escolher atributos a gosto (por exemplo, ter neurónios) sem se preocupar com outros animais.
A hipótese que nos tornamos pessoas quando manifestamos certos atributos não é generalizável, depende de premissas ad hoc, não oferece uma forma clara de escolher os atributos, e tem que ser protegida por hipóteses auxiliares inventadas caso a caso para evitar conflitos com a nossa noção do que é aceitável.
É preferível tratar como pessoa todo o ser que possa vir a considerar-se a si próprio como pessoa. Resolve os problemas acima duma forma satisfatória, é generalizável a qualquer espécie (se um chimpanzé tiver um nível de consciência suficiente para se considerar uma pessoa, temos certamente o dever moral de o tratar como tal), não precisa de hipóteses auxiliares criadas caso a caso, e captura bem o cerne do que é ser pessoa, que é essa capacidade de autoconsciência, do sujeito se identificar como sujeito. E exprime adequadamente o que vemos de especial num recém nascido, que não é os atributos que manifesta (a saber, manter os pais acordados e converter leite em fezes amarelas), mas a capacidade que tem para se tornar em algo como nós.
Eu acho que a questão não é de atributos.
ResponderEliminarÉ mesmo de autonomia do ser. Antes do momento Y o feto não tem autonomia.
Era uma hipótese a considerar, mas tem que ser mais clara (o que é exactamente autonomia? um recém-nascido não é propriamente autonomo...)
ResponderEliminarAlém disso sofre do mesmo problema. Antes do momento Y podemos manipular o organismo de forma a adiar arbitrariamente o momento Y. Não é legítimo impedir que se torne pessoa desta forma, para que possamos fazer o que quisermos com ele. Moralmente o problema é o mesmo com a autonomia que é com qualquer outro atributo.
Nota que o exemplo do violinista (da Judith Thompson) apenas funciona se quem o mantém vivo não tem responsabilidade pela situação. E mesmo sem autonomia o violinista aínda é pessoa. Apenas se justifica que se deixe morrer, em certas condições (que não são equivalentes às da gravidez em consequência de sexo consensual, pois nesse caso a mulher tem alguma responsabilidade pela situação).
Mais fundamental, a escolha desse critério é arbitraria e subjectiva. Tu podes pensar que é boa ideia, outro qualquer pode pensar que é irrelevante. Esta subjectividade de qualquer juízo de valor obriga a que consideremos como igualmente merecedores de consideração os juízos de todos os seres que possam discordar dos nossos.
É imoral matar um ser por um juízo subjectivo que do qual ele possa vir a discordar. Isto vale tanto para os ateus como para os religiosos... :)
Se um chimpanzé se considera pessoa, é pessoa. O ponto principal é mesmo esse: ser pessoa não é meramente subjectivo, é a própria subjectividade. É ser um sujeito e não apenas um objecto.
ResponderEliminarSe um chimpanzé é capaz de avaliar a sua vida como algo de valor, então temos todos o dever de a respeitar como tal, mesmo que nós consideremos a vida dele como não tendo valor.
Concordo contigo que é a qualidade de vida que interessa. O que devemos respeitar é o valor da vida para quem a vive, e se tivermos boas razões para assumir que esse valor é pequeno ou mesmo negativo, então pode-se (ou mesmo deve-se) matar esse ser.
Mas o que devemos sempre considerar é como esse ser vai avaliar a sua vida, e não como nós a avaliamos. Neste contexto todos os critérios que uns impõem aos outros estão errados.