sábado, fevereiro 13, 2016

Treta da semana (atrasada): não há dinheiro.

A principal objecção a um rendimento básico incondicional(1) é a de que não há dinheiro para isso. É fácil refutar a alegação. O PIB per capita em Portugal é superior a 20 mil euros por ano. Basta 15% disso para garantir um rendimento incondicional de 600€ por mês por agregado familiar. Já resolveria muitos problemas a muita gente. É claro que, na prática, é difícil obter esse dinheiro. Seria preciso 25 mil milhões de euros por ano, o que equivale à soma dos dois impostos principais (IVA e IRS) e a dois terços da receita fiscal total do Estado português. Mas o problema não é que o dinheiro não exista.

O IRS perfaz 13 mil milhões, mas é cobrado a uma base tributária de 80 mil milhões de euros, o total dos rendimentos das pessoas singulares. O IVA, totalizando quase 14 mil milhões de euros, é também cobrado principalmente a pessoas singulares porque as empresas passam o IVA aos seus clientes. Por isso, estes dois impostos incidem principalmente sobre quem vive do seu trabalho. Os seus rendimentos e consumos são os mais fáceis de taxar. Em contraste, o IRC, que é o imposto principal pago pelas pessoas colectivas, perfaz apenas 5 mil milhões de uma base tributária que corresponde, grosso modo, aos restantes 90 mil milhões de euros do PIB. As grandes empresas e os rendimentos de capital são muito difíceis de taxar, não só pela facilidade com que fogem para outros países mas também pela influência que têm no código tributário. Quando as leis fiscais são aprovadas por deputados que trabalham para escritórios de advogados contratados pelas maiores empresas, o resultado não pode ser muito bom. No entanto, se se resolvesse este problema prático e se taxasse quem vive do capital como se taxa quem vive do seu trabalho, haveria receita fiscal de sobra para um rendimento básico incondicional.

Mas o erro mais fundamental na ideia de que não há dinheiro é a premissa implícita de que o Estado tem de cobrar impostos para se financiar. Isto não é verdade. Quem cria o dinheiro, em última análise, é o Estado. É essa até a definição de dinheiro e aquilo que o distingue de quaisquer bens que se possa usar em trocas. Por isso, o Estado pode financiar-se criando o dinheiro de que precisar. O propósito dos impostos é apenas limitar a inflação, retirando de circulação um montante semelhante ao que o Estado introduz na economia pelas suas despesas para manter a relação entre o volume total de dinheiro e o total de bens e serviços.

É pela criação de dinheiro que se controla a inflação do Euro, se bem que de forma muito indirecta por opção política. O Banco Central Europeu estabelece uma taxa de juro aos empréstimos de curto prazo que concede aos bancos privados. Se a inflação estiver abaixo dos 2%, o BCE baixa esta taxa de juro, incentivando os bancos a pedir mais empréstimos ao BCE e a usar esse dinheiro para conceder crédito, aumentando o volume de dinheiro na economia. Se a inflação estiver acima dos 2%, o BCE sobe as taxas para obter o efeito contrário. Além de não permitir um grande controlo sobre a inflação, especialmente quando há problemas na banca privada, dar o dinheiro aos donos dos bancos privados acaba por beneficiar mais quem menos precisa.

Uma alternativa seria distribuir este dinheiro igualmente por todos os cidadãos. Não só seria mais justo do que conceder a alguns banqueiros o monopólio sobre a distribuição do dinheiro que o Estado cria, como também daria ao Estado um controlo mais fino e directo sobre a inflação. Além disso, permitiria manter uma inflação mais alta, facilitando a erosão do monte de dívidas antigas que todos os países arrastam. Por exemplo, se o BCE criasse 10% do PIB europeu em cada ano e o distribuísse pelos cidadãos, com um crescimento real da economia de 2% a inflação seria de cerca de 8% ao ano. Isto parece muito mas esta medida praticamente eliminaria os principais efeitos negativos da inflação.

Normalmente, a inflação faz-se sentir primeiro nos preços dos bens e só mais tarde nos ordenados. Este desfasamento retira poder de compra à maioria das pessoas. Mas se a inflação resulta da distribuição directa de dinheiro por toda a gente, o desfasamento será o inverso. Os preços vão aumentar por causa do aumento do poder de compra da maioria. A inflação alta também tende a ser difícil de prever, inibindo o investimento por tornar o retorno incerto. Mas este mecanismo permitiria manter a inflação constante e ainda mais previsível do que o mecanismo actual dos empréstimos aos bancos privados.

Isto não pode ser conseguido só por Portugal. Mas é possível fazê-lo na União Europeia com meras alterações de política. Basta taxar de forma mais justa a fatia maior do PIB, que corresponde aos rendimentos de capital, e complementar esta receita fiscal com a injecção directa de dinheiro na base da economia, que será paga por uma inflação maior mas mais controlada e menos prejudicial do que aquela que temos agora. A tese de que não há dinheiro é falsa não só porque o PIB de países desenvolvidos chega perfeitamente para garantir que ninguém fica na miséria mas também porque o dinheiro não é um recurso limitado. Criar dinheiro gera inflação mas os efeitos podem ser ponderados de forma a encontrar um equilíbrio óptimo. E nada obriga a que o dinheiro só entre na economia pelo bolso dos banqueiros.

1- Treta da semana (atrasada): salário mínimo.

2 comentários:

  1. A questão de não haver dinheiro é uma falsa questão e é um modo cínico, ou manifesta ignorância, de justificar a privação das pessoas de bens e serviços. Se, por absurdo, eliminássemos todo o dinheiro, ou o colocássemos em sepultura, como se fez ao latim, deixaríamos de pensar que todos os problemas eram de falta de dinheiro. Os problemas passariam a ser eles próprios e não de dinheiro.
    O verdadeiro problema é que o dinheiro se tornou cada vez mais o grande problema.
    É sabido que as pessoas não comem dinheiro nem se deslocam em cima de notas ou de moedas. Não dêm dinheiro às pessoas, dêm-lhes bens e serviços e fiquem com o dinheiro todo.
    Se amanhã não houvesse dinheiro, o mundo não estaria mais pobre e não haveria mais famintos, nem mais doentes, nem menos fruta, ou lojas mais vazias.
    E podem ter a certeza de que, se não houvesse dinheiro, não haveria inflação, nem deflação, nem tantas outras situações deploráveis ligadas ao capitalismo financeiro.
    As imensas vantagens da fungibilidade do dinheiro (e haja em consideração o facto de este conceito estar longe de ser coincidente com o conceito de moeda)talvez saíssem muito diminuídas de uma análise sobre as, também imensas, desvantagens.
    O dinheiro tem vindo a adquirir uma tal abstração que se tornou um valor e uma mercadoria e um instrumento em si mesmo, profunda e terrivelmente dissociado da dinâmica e das leis da economia dos bens e serviços.
    Digamos que o facto de ser um mercado (cujo peso e relevância nas economias é assustadoramente crescente e incontrolável) à parte dos mercados de trabalho, mercadorias e serviços, exige que se compreenda, sem ilusões, de que é que se está a falar quando se fala de dinheiro.
    Fazem falta Newtons e Einsteins nas ciências económicas para nos ensinarem imensas coisas que é preciso saber.
    No entanto, nestas áreas, que também atraem os mais dotados, os cérebros preferem ocupar-se em esquemas de enriquecimento...

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  2. Ludwig,

    Embora eu não seja formado em economia, acho que é relativamente fácil perceber que essa ideia não tem grande futuro, senão vejamos: o estado inventa dinheiro, que distribui pelos cidadãos, os cidadãos gastam o dinheiro (em quê? afinal parece que não é necessário economia, logo, só vejo o pessoal a gastar o dinheiro a financiar o estado, mas isso é outro assunto...), depois, o estado inventa mais dinheiro, e o ciclo é infinito. Hum... coiso...

    Deixa-me dar antes uma ideia que me parece ter mais pernas para andar, embora reconheça que sem uma estratégia concertada a nível mundial, também não vai longe.
    Gabriel Zucman escreveu um livro intitulado "A riqueza oculta das nações" (Temas & Debates/Circulo de leitores). E lá calcula através de um método que ele descreve como sendo conservador, mas ainda assim, talvez seja a melhor estimativa do dinheiro depositado nas off-shores. Os valores apurados para 2013 só na Suíça, são (cf. pág. 47):
    - Alemanha: 200 MM€ (mil milhões de euros)
    - França: 180 MM€
    - Itália: 120 MM€
    - Reino Unido: 110 MM€
    - Espanha: 80 MM€
    - Grécia: 60 MM€
    - Bélgica: 60 MM€
    - Portugal: 30 MM€
    - outros países europeus: 160 MM€
    - países do golfo: 180 MM€
    - Ásia: 180 MM€
    - América latina: 170 MM€
    - África: 120 MM€
    - América do norte: 90 MM€
    - Rússia: 50 MM€

    No total, só na Suíça, a estimativa é de 1,8 milhões de milhões de euros!!!

    Tendo em conta que por exemplo em Portugal este dinheiro devia estar com os rendimentos a serem taxados a 28%, mesmo que gerem 1% de juro, dá: 84 milhões de euros ao ano.

    Na página 63 apresenta o número: 130 MM€ que os estados a nível mundial perdem em impostos.

    Eu concordo com o sr. Zucman, esta deveria ser uma prioridade a nível mundial - eliminar os paraísos fiscais, a começar com o da Suíca, do Luxemburgo, de Singapurta e de todos eles. O problema? É a vontade política. Não é esta também a pedra no sapato para todas as soluções para a pobreza?

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