domingo, março 29, 2015

Treta da semana (atrasada): a lista.

O Ministério das Finanças implementou um sistema que notifica a chefia quando um funcionário consulta registos fiscais de certas pessoas importantes. A preocupação principal neste momento parece ser a de descobrir quem criou a lista dessas pessoas e apurar “responsabilidades políticas”. Para descobrir o autor eu sugeria que usassem o método Rua Sésamo. Na lista constam o Presidente da República; o Primeiro-Ministro; o Vice-Primeiro-Ministro; e um dos cinco Secretários de Estado que auxiliam a Ministra das Finanças. Perguntem qual dos quatro não pertence ao conjunto e terão pelo menos uma ideia do autor mais provável. Mas isto não é sobre a lista e muito menos sobre o autor, ambos problemas menores.

Um problema mais sério é a forma como o Ministério das Finanças zela pelo sigilo fiscal. Aparentemente, criaram a lista porque todos os funcionários das Finanças têm acesso permanente a todos os registos de todos os contribuintes e era necessário saber quem andava a bisbilhotar os processos das três pessoas mais importantes do Estado. Ou os do outro. Mas não há razão para dar a todos os funcionários um acesso permanente a todos os registos. Se bem que todos os registos devam estar sujeitos a verificação, cada funcionário precisa apenas de aceder àqueles com os quais está a trabalhar em cada momento. Seja por amostragem, denúncia ou detecção de inconsistências, é fácil automatizar a atribuição de processos aos funcionários permitindo acesso apenas aos registos relevantes e enquanto for necessário. Isto até nos serviços de atendimento telefónico e presencial. O contribuinte que telefone com dúvidas pode ser atendido por um telefonista que regista o NIF, o sistema depois atribui aleatoriamente o atendimento a um funcionário disponível e só este último tem acesso aos dados do contribuinte enquanto resolve o problema. No atendimento presencial, o contribuinte pode inserir o seu NIF quando obtém a senha de atendimento e a autorização de acesso aos dados e concedida temporariamente ao funcionário que atenda essa senha.

Haverá certamente muitas formas de restringir o acesso apenas ao que é estritamente necessário e, se bem que nenhuma seja impossível de contornar, é o que basta para resolver o problema do funcionário que vai bisbilhotar a situação fiscal do Ministro, do vizinho, do ex-namorado ou do tal secretário só porque tem tudo à mão. Mas este episódio levanta uma questão mais fundamental do que a incompetência informática das finanças. É a questão daquilo que devíamos mesmo manter privado e o que devíamos abrir ao escrutínio público. Nisto parece-me que andamos com os critérios trocados.

Se queremos respeitar a privacidade, o melhor é não registar a informação privada. Por exemplo, sempre que andamos com o telemóvel ligado, a operadora vai registando as antenas por onde passamos. Além de dar um incentivo errado à polícia – se apreender criminosos é mais fácil do que prevenir o crime temos mais cada vez mais agentes a olhar para o ecrã do computador e cada vez menos a patrulhar as ruas – não se justifica que registem as antenas por onde já passámos. Deviam manter somente a informação actualizada das antenas às quais o telemóvel está ligado no momento. A retenção dessa informação devia ser proibida.

Se a informação tiver de ser registada e guardada, então a segunda melhor opção é apagá-la assim que for possível. Por exemplo, no Metro o bilhete pode ter de ser validado à entrada e à saída, pelo que é preciso guardar um registo até ao final da viagem. Mas assim que a viagem termina o registo pode – e deve – ser apagado. Não há razão para acumularem perpetuamente o registo de quem anda onde, especialmente quando muitos usam passes com identificação. Que a lei permita, encoraje e, em alguns casos, até obrigue o registo de informação que devia ser privada é muito mais grave do que qualquer violação do sigilo fiscal.

E se a informação tem de ser guardada por períodos prolongados, a única forma de preservar alguma privacidade é restringir o acesso apenas a pessoas de confiança. É o que fazemos com o que partilhamos com um médico ou um advogado, com quem estabelecemos uma relação pessoal. A situação fiscal não encaixa em qualquer destas categorias. Como tem de ser guardada durante anos e tem de estar acessível a gente que não conhecemos de lado nenhum, o sigilo fiscal permite apenas uma frágil ilusão de privacidade, facilmente quebrada por episódios como este. Além disso, a situação fiscal nem sequer é informação de natureza privada. O pagamento de impostos é um dever público; a remuneração depende de mecanismos públicos de regulação de contratos e até o dinheiro em si depende da colaboração de todos para funcionar como reserva de valor e meio de troca.

Compreendo que manter secreto o salário que se recebe ou os impostos que se paga dê algum conforto psicológico mas, em rigor, estas são interacções públicas, e até de interesse público, que não merecem medidas especiais que as mantenham no sigilo. Além disso, há claras vantagens em tornar pública esta informação, entre as quais reduzir a fuga ao fisco; revelar conflitos de interesse, especialmente de quem ocupa cargos públicos; acabar com a assimetria do que é secreto para uns mas facilmente acessível a muitos outros; ou até ajudar a combater a discriminação salarial e outra desigualdades injustas. Em vez de nos preocuparmos em manter os impostos secretos devíamos estar muito mais preocupados com aquilo que é privado, que pode ser mantido privado e que deve ser mantido privado. Como o sítio por onde andamos, o que consultamos na Internet ou a quem telefonamos.

sábado, março 21, 2015

Zulmira.

Voava Zulmira, quando aquela tira que lhe segurava o chapéu
se soltou das rugas, saltou três verrugas e ao longo nariz se prendeu.
Por isso, ao espirrar, tapou-lhe o ar e estalou com um estrondo tamanho
que atirou com o chapéu e espalhou pelo céu uma chuva de moncos e ranho.


Zulmira tombou e ainda tentou segurar-se à vassoura. Em vão.
O cabo de lenho, polido e com ranho, depressa lhe escapou da mão.
Foi assim que Zulmira, num gira que gira, acabou estatelada no chão.



Isto deve ser um efeito de preparar e dar cinco aulas diferentes por semana. Espero que seja reversível e tenciono retomar a programação regular em breve.

domingo, março 15, 2015

Treta da semana (passada): a origem da superstição.

Duarte Sousa Lara é padre católico, exorcista e autor do livro «Deus está a salvar-me ... e a libertar-me de todo o mal. Perguntas frequentes sobre o demónio e os exorcismos»(1). O livro é vivamente recomendado por Gabriele Amorth, exorcista da Diocese de Roma, presidente da Associação Internacional de Exorcistas e reputado exorcisador de milhares de casos de possessão demoníaca (2). Segundo este, as quarenta perguntas e respostas que Lara apresenta «São o fundamento da religião e, consequentemente, defesa contra o perigo de qualquer forma de superstição, a qual tem sempre origem no demónio».

Dada a importância do assunto, é natural que o autor disponibilize no site a ligação para a distribuidora, à qual podemos encomendar o livro por €9.85, entregue em cinco dias úteis. No entanto, é estranho que não disponibilize também o texto em formato electrónico. Seria de esperar que não sujeitasse a restrições de cópia as perguntas e respostas fundamentais à defesa contra o demónio. Pode alguém pensar que quer ganhar dinheiro à custa dos possuídos e arriscando a alma de quem não tenha dez euros para dar sem saber ao que vai ou que já tenha pouco espaço nos armários para mais livros em papel.

Mas outros textos do autor dão uma ideia do problema. No prefácio da tradução portuguesa do livro “A Virgem Maria e o Diabo nos Exorcismos”, Lara escreve, citando o catecismo da Igreja Católica, que:

«A existência dos seres espirituais, não-corporais, a que a Sagrada Escritura habitualmente chama anjos, é uma verdade de fé» e portanto não se encontra no âmbito das hipóteses ou opiniões teológicas. Alguns desses anjos, criados bons por Deus, liderados por Satanás, também chamado Diabo, «radical e irrevogavelmente recusaram Deus e o seu Reino», e portanto deve-se afirmar que «de facto, o Diabo e os outros demónios foram por Deus criados naturalmente bons; mas eles, por si próprios, é que se fizeram maus». (3)

Uma vez solidamente estabelecida a existência dos demónios «que se fizeram maus» pela evidência incontestável de alguém ter escrito que é mesmo assim, Lara enuncia também a importância de Maria nos exorcismos. Baseado «na Sagrada Escritura, no Magistério da Igreja, na experiência dos santos, nas reflexões dos teólogos [e em] palavras e reacções dos demónios durante os exorcismos», defende que «Maria acompanha-nos nos combates desta vida. Nos exorcismos “tocamos” a sua presença materna ao nosso lado e fazemos experiência da eficácia da sua intercessão.» Não sei se será uma das perguntas às quais responde no livro, mas ocorre-me questionar porque é que Maria só intercede na presença do exorcista. Ou até, indo mais longe, porque é que Deus só expulsa o demónio se o exorcista pedir a Maria que interceda. Parece um procedimento demasiado burocratizado para um ser supostamente omnisciente. Por outro lado, talvez partilhe a justificação com a opção de só divulgar as respostas a quem pagar o livro. Se bem que nem só de pão viva o homem, a palavra de Deus também não enche a barriga.

Para que a crítica seja mais construtiva, gostava de terminar com uma sugestão. Pelo que percebo, os exorcistas católicos estão na linha da frente de uma guerra de atrito que já dura há dois mil anos e não parece ter um fim em vista. Os exorcistas exorcizam, os demónios possuem, os exorcistas voltam a exorcizar e é uma gritaria e um gastar de água benta sem que a coisa se resolva. É preciso disseminar algo que proteja verdadeiramente as pessoas. Algo que faça à posse demoníaca o que o flúor na água faz às cáries ou que o iodo no sal faz ao bócio. Uma vacina contra demónios. E penso que encontrei um bom candidato, graças às palavras do padre Amorth. Não sei se a superstição terá mesmo sempre origem no demónio, mas suspeito que o demónio só consiga possuir quem for supersticioso e acreditar nessas coisas. Os ateus, pelo menos, parecem ser muito resistentes às investidas do mafarrico. Podem vomitar de esguicho se tiverem uma intoxicação alimentar, e alguns poderão dizer coisas menos simpáticas aos padres, mas nada daquelas coisas de rodar o pescoço uma volta inteira ou andar a gatinhar pelo tecto.

Fica então a sugestão. Se querem mesmo derrotar o cornudo e acabar de vez com este terrível flagelo, experimentem divulgar o ateísmo. Julgo que se protegerem as pessoas de todas as superstições, incluindo as vossas, o problema fica resolvido logo. Posso até deixar aqui a próxima edição do livro de perguntas e respostas de Sousa Lara, mais levezinho, sucinto e fácil de ler:

Estas coisas dos deuses e demónios, isto é verdade?
Não. É tudo treta.



1- santidade.net
2- Wikipedia, Gabriele Amorth
3- Prefácio a “A Virgem Maria e o Diabo nos Exorcismos” (pdf)

sábado, março 14, 2015

Boas razões.

Muitos crentes, teólogos e filósofos da religião defendem que é racional acreditar na existência de Deus porque há boas razões para concluir que existe um deus. Discordo, porque não basta encontrar boas razões para que seja racional aceitar uma conclusão. Neste caso, até é irracional.

Admito que há boas razões para concluir que existe um deus. A existência do universo é uma boa razão para concluir que algo o criou. A complexidade dos seres é uma boa razão para concluir que um ser inteligente os criou. Os relatos de milagres de Jesus dão boas razões para concluir que ele é mesmo a encarnação de um deus e haver milhões de cristãos é uma boa razão para crer que o cristianismo foi divinamente inspirado. No entanto, também os relatos, a fé e os livros sagrados dos muçulmanos dão boas razões para concluir que o deus verdadeiro é Alá e que o seu profeta é Maomé. Até há boas razões para concluir que o Pai Natal existe. Milhões de crianças acreditam nele, têm evidências empíricas de prendas que surgem debaixo da árvore e até a garantia dos seus pais de que foi o Pai Natal que as trouxe.

O problema destas boas razões é serem uma amostra tendenciosa da informação relevante. Escolhendo a dedo, encontra-se boas razões para qualquer coisa, pelo que não é uma forma fiável de inferir conclusões verdadeiras. Por isso, em vez de partir de boas razões, o racional é partir de uma interpretação consistente de tudo o que percebemos ser relevante. É verdade que, como os dados não se interpretam por si, temos sempre de conjecturar algo para os poder interpretar. No entanto, é possível minimizar esta arbitrariedade. Em primeiro lugar, evitando a multiplicação de hipóteses ad hoc que só sirvam para proteger uma conjectura. Por exemplo, sabemos que o universo tem cerca de treze mil milhões de anos mas a humanidade, na sua forma moderna, só existe há umas centenas de milhares de anos. Sabemos também que praticamente todo o universo que observamos é hostil a seres como nós. Para compatibilizar isto com a tese de que o universo foi criado a pensar em nós é preciso hipóteses interpretativas como a do paraíso e da queda ou a de que esta é a melhor solução possível mesmo que não pareça. Essas hipóteses são suspeitas porque só surgem para resolver problemas com a tese inicial e não têm qualquer outra utilidade na interpretação dos dados. Em segundo lugar, devemos ter em conta a possibilidade de erro na criação dessas hipóteses interpretativas, dando preferência àquelas que, se forem falsas, mais facilmente o revelem. Por exemplo, hipóteses acerca de milagres ou magia devem ser relegadas ao fim da lista porque não as conseguimos testar. É sempre melhor optar por hipóteses testáveis pois só essas permitem corrigir erros.

Portanto, a forma racional de concluir acerca do que existe não é escolhendo boas razões. É organizando a informação relevante numa interpretação consistente que dependa o menos possível de premissas gratuitas e assente o mais possível em hipóteses testáveis e informativas. Ou seja, por inferência à melhor explicação. E quando aplicamos este critério aos vários deuses propostos por aí, o ateísmo é inevitável. A ideia de que existe algum deus surge apenas para explicar as religiões e algumas crenças humanas. Mas, para isso, é uma má explicação. Exige seleccionar arbitrariamente uma minoria de crenças e religiões que se vai considerar correcta, porque são maioritariamente inconsistentes entre si, muitas das suas hipóteses interpretativas são tão vagas que não podem ser testadas e outras, por se revelarem inconsistentes com o que observamos, exigem novas hipóteses conjecturadas apenas para resolver essas inconsistências. Do criacionismo evangélico à teologia católica e do Islão à filosofia da religião, só se consegue encontrar boas razões para acreditar num deus ignorando a melhor explicação.

A melhor explicação é a de que as religiões são um fenómeno psicológico e social. Esta explicação abrange toda a diversidade de superstições e religiões sem precisar de hipóteses ad hoc acerca de milagres e deuses e as hipóteses de que depende são mais susceptíveis de confronto com os dados. Por exemplo, enquanto a tese de que um livro sagrado foi inspirado por Deus é compatível com qualquer maravilha ou disparate, se o livro for obra humana o texto tem de se restringir ao permitido pela criatividade e conhecimento de quem o escreveu. Que é precisamente o que se constata nos textos sagrados. E isto não é só para a explicação das religiões. Tudo o que outrora se tentou explicar com deuses, desde as estrelas às doenças e a origem da vida, hoje explica-se melhor sem deuses.

Qualquer crença em deuses pode ser apoiada em boas razões. Basta escolhê-las com cuidado. Mas a melhor explicação, que é muito menos arbitrária, implica o ateísmo.

sábado, março 07, 2015

Treta da semana (passada): incentivar a inovação.

Devido a uma queixa da Audiogest e da Gedipe, o Tribunal da Propriedade Intelectual determinou que os principais ISP de Portugal têm de impedir os clientes de aceder a trinta domínios associados ao Pirate Bay (1). Antes de explicar o que isto quer dizer e o pouco que adianta, saliento duas inovações nesta decisão. O Pirate Bay é um fórum onde pessoas de todos os países anunciam os ficheiros que partilham e discutem os ficheiros partilhados por outros. Se bem que a partilha viole monopólios legais, o fórum em si não tem material gerido pela Audiogest ou pela Gedipe. Inovador, o juiz decidiu que a mera manifestação da intenção de violar estes monopólios já constitui um crime, decisão essa que devia ser do legislador e assente num debate público que ponderasse devidamente os direitos em causa. Além disso, como o fórum está fora da sua jurisdição e não pode coagir quem lá escreve, o juiz mandou aplicar a medida de coação a toda a população de Portugal. É incorrecto dizer que o Pirate Bay será “bloqueado em Portugal” porque o Pirate Bay nem será bloqueado nem está em Portugal. O que o juiz pretende é impedir-nos de aceder a este site. Os bloqueados somos nós. Esta abordagem inovadora de punir quem não foi sequer acusado merece alguma reflexão.

Gostava que esta injustiça incentivasse a revisão da decisão e destas leis. Mas suspeito que a mudança mais rápida será imposta pela tecnologia em vez de pela ética ou pela política. É pena, mas não haverá alternativa enquanto lobbies com dinheiro e influência poderem comprar decisões absurdas e os decisores não forem substituídos por quem perceba o que está a fazer. Veja-se, por exemplo, a taxa pela “cópia privada”. A decisão deste juiz é mais um exemplo da ignorância ao serviço da ganância.

A Internet é uma rede heterogénea, com fios, sem fios, fibra óptica, satélite, cabos submarinos e o que mais calhe. Vale tudo. Cada ligação exige equipamento e protocolos específicos mas, uma vez assegurada a comunicação, podemos ignorar as diferenças e abstrair daí algo uniforme. Assim, os protocolos base da Internet criam uma rede homogénea por cima daquela outra atribuindo a cada nó um endereço, independentemente de ser tablet, PC, impressora ou frigorífico, e reencaminhando as mensagens pela rede sem ligar aos detalhes de cada trecho. Por exemplo, uma mensagem do meu PC para o Google passa pelo meu router, depois pelo modem que tenho na sala, três routers do meu ISP, dois da Tata Communications e, finalmente, por dois da Google até chegar ao servidor do motor de pesquisa. Por sua vez, o meu browser ignora isto porque a confusão de pacotes e retransmissões entre o meu computador e o do Google fica encapsulada num nível de abstracção ainda mais alto, no protocolo HTTPS, que não só trata da ligação como até encripta as mensagens que troco com o servidor. Esta construção de protocolos sobre protocolos e redes sobre redes permite esconder muita complexidade por trás da aparente simplicidade de navegar na web. Por exemplo, neste momento, o nome “thepiratebay.se” aponta para o endereço 108.162.193.114. Esta tradução é feita automaticamente por um servidor de Domain Name System (DNS) e o endereço não é sequer do Pirate Bay. Pertence à CloudFlare, uma empresa americana que optimiza a distribuição de conteúdos mediando a comunicação entre o cliente e o servidor. Quando o meu browser acede àquele endereço pedindo a página do Pirate Bay está a contactar um servidor da CloudFlare que vai buscar o conteúdo a servidores do Pirate Bay que podem estar espalhados pelo mundo e usar vários endereços diferentes.

Esta confusão toda serve para explicar três coisas que o juiz não deve ter percebido. Primeiro, os nomes de domínio não são endereços. São alcunhas. Em segundo lugar, mesmo os endereços não são fixos e universais, podendo parecer uma coisa de um lado da rede e ser outra noutro lado. Finalmente, a Internet é um grande número de redes construídas umas por cima das outras, cada uma abstraindo de outras os elementos de que necessita para criar funcionalidades diferentes. Se o juiz percebesse isto saberia que só pode impedir que um computador em Portugal aceda a um servidor do Pirate Bay desligando um deles da Internet. Se os dois estiverem ligados podem sempre comunicar entre si, e a necessidade de bloquear trinta nomes para impedir o acesso a um site já o devia ter feito suspeitar da ineficácia da decisão. Mas nem é preciso esperarmos pelo trigésimo primeiro porque, na prática, o juiz apenas mandou que os servidores DNS dos ISP não forneçam aos clientes a tradução daqueles trinta nomes para endereços. Sendo o DNS apenas mais uma abstracção criada por cima destas redes, não é preciso usar os servidores DNS que o ISP nos fornece. Se usarmos os da Google, por exemplo (2), já não há “bloqueio” de coisa nenhuma porque tudo funciona como normalmente.

A Internet é uma infraestrutura sobre a qual construímos cada vez mais dos nossos instrumentos de trabalho, correios, bibliotecas e até esplanadas onde conversar com os amigos. A versatilidade desta infraestrutura torna-a demasiado importante para aceitarmos que um juiz mande os ISP bloquearem o que quer que seja ou, pior ainda, que os ISP tenham o poder para o fazer. É por isso urgente retirar-lhes esse poder, a uns e a outros. Eventualmente, o ideal será fazer isto melhorando a lei mas, até lá, podemos aproveitar a robustez que esta versatilidade confere à Internet. A tecnologia já permite contornar os “bloqueios”. Precisamos apenas de incentivos como os desta decisão para irmos mudando os nossos hábitos. Quanto mais tentarem proibir e bloquear mais gente irá usar outros servidores de DNS, proxies, Tor, VPN e o que for surgindo, e cada vez será mais natural fazê-lo. Eventualmente não terão alternativa senão perguntar-nos se queremos sacrificar os nossos direitos pelo lucro dos associados da Gedipe. Nessa altura poderemos dizer que não e resolver o problema de uma vez por todas.

1- Expresso, Pirate Bay vai ser barrado em Portugal.
2- Instruções aqui: Using Google Public DNS

sexta-feira, março 06, 2015

Ateísmo e religião.

A propósito da “visão ateísta”, o Rui Sousa comentou que «a divisão no debate não deveria ser entre ateísmo e religião, mas sim entre ateísmo e teísmo». Como exemplo, mencionou que «muitas das variantes do Budismo são ateístas. Buda não é visto como uma divindade, Buda foi um homem que morreu há muito séculos, um homem sábio, mas ainda assim um homem» (1). Em parte, o Rui tem razão. Mas é na parte mais pequena porque, além de haver os dois debates, o debate entre o ateísmo e o teísmo é muito menos importante do que o debate entre o ateísmo e a religião.

O problema principal das religiões é assumirem que há uma fonte de factos, valores e prescrições tão superior a nós que a temos de aceitar pela fé, estando-nos vedada a possibilidade de a criticar, corrigir ou substituir. Isto é péssimo. Não só pelo disparate que é assumir tal autoridade quando se lida com factos como também por ser a antítese da ética transformar o problema de decidir o que fazer com a nossa liberdade numa lista pré-fabricada de “faz” e “não faças”. Somando a isto a casta profissional de alegados intermediários que, manipulando os crentes, vão concentrando prestígio e poder indevidos, é evidente que as religiões criam um problema muito maior do que a questão meramente académica de saber se o universo foi criado por uma inteligência sobrenatural ou se surgiu por processos naturais.

Estes problemas que aponto às religiões não exigem teísmo. Passa-se o mesmo na Coreia do Norte, com o culto dos Kim e o juche, e com vertentes religiosas do Budismo que, apesar de não considerarem o Buda como um deus, consideram que os seus ensinamentos estão suficientemente além do humano para que tenham de ser aceites acriticamente. Podemos discutir se estas variantes do culto de uma autoridade superior contam como religião ou não mas, como o que me importa não é a semântica do termo mas as consequências da abordagem, é contra isto que sinto mais necessidade de debater. Além disso, nem todos os teístas cometem o erro de presumir terem uma fonte autoritária de respostas. Felizmente, há muita gente que, mesmo acreditando num deus pessoal, não se fia em autoridades supremas nem nos seus alegados representantes. Por isso, o debate que vejo como mais importante está na oposição às organizações da fé numa alegada autoridade sobre-humana. Tanto me faz se é um Deus, um Buda ou um Kim.

Admito que não é obrigatório ser ateu para opor esta atitude religiosa. Há muita gente que não se identifica com o ateísmo mas que, ainda assim, se preocupa com a influência da religião, quer no sentido estrito que exige teísmo quer no sentido lato como aqui uso o termo. Mas, para mim, este debate é mesmo entre ateísmo e religião. Não só porque o termo “ateu” foi inventado precisamente para designar quem rejeita a tal autoridade suprema – que, nesse tempo, era sempre divina – mas também porque a minha oposição à religião é consequência daquilo que me torna ateu. Por um lado, saber que não existem deuses, algo que sei objectivamente tal como sei que a astrologia é treta e os unicórnios ficção. Por outro lado, a opção de que, mesmo que existissem deuses, não era por isso que ia delegar em alguém, humano ou divino, a tarefa de escolher os meus valores e o que dá sentido à minha vida. Isto põe-me em oposição às religiões, com ou sem teísmo, porque todas as religiões assentam naquela atitude de fé que considero errada.

O debate entre ateísmo e teísmo também é interessante. Entretenho-me com ele e até toca alguns pontos importantes de metodologia. Por exemplo, a defesa do teísmo depende demasiado da selecção enviesada de premissas que conduzam à conclusão desejada em vez de encaixar primeiro os dados em algo mais sólido onde assentar inferências. Mas, comparado com o outro, este é mera curiosidade. Preocupa-me muito mais os efeitos nefastos da fé numa autoridade suprema e as hierarquias privilegiadas que coagulam à sua volta.

1- Comentário em A visão.

domingo, março 01, 2015

Treta da semana (passada): a estratégia.

O Conselho de Ministros aprovou a semana passada uma «estratégia nacional de combate ao terrorismo» (1). Em concreto, isto parece consistir de dois tipos de medidas. Por um lado, «a unidade de coordenação antiterrorismo vai ter as competências reforçadas», o que é suspeito. Como resposta a um aumento do risco de ataques terroristas seria razoável aumentar os recursos desta unidade, o número de efectivos ou a qualificação do seu pessoal, mas as competências deviam ser as mesmas. Nomeadamente, coordenar as acções de antiterrorismo. Por outro lado, o Conselho de Ministros decidiu alterar várias leis, «atualizando a definição de terrorismo», mudando a «lei que estabelece o regime jurídico das ações encobertas para fins de prevenção e investigação criminal», a «lei que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada», as leis de «Organização da Investigação Criminal» e de «Segurança Interna», e até «criminalizando a apologia pública do crime de terrorismo». Isto é muito mais consistente com o aproveitamento do terrorismo como desculpa para abusar do poder do que com medidas racionais de combate ao terrorismo.

Logo à partida, não faz sentido haver legislação específica para o terrorismo. O terrorismo é o recurso organizado a crimes violentos para lançar o pânico e coagir populações e órgãos de soberania. Tudo isso já é regulado pelo código penal. A conspiração para cometer crimes, a organização de pessoas com intuito de cometer crimes, os crimes violentos, a perturbação da ordem pública, a ameaça e a coação já são crimes. Não há nada mais no terrorismo que precise de ser criminalizado. Pelo contrário. Dada a motivação e a psicologia do terrorismo, o pior que se pode fazer é conceder-lhe esta distinção. Nem lhes devíamos chamar terroristas. São criminosos. Não é por matarem por uma ideologia em vez de por dinheiro, ódio ou qualquer outro motivo corriqueiro do criminoso vulgar que merecem uma categoria própria para a sua criminalidade.

Outro problema sério é mudar as leis em resposta a uma ameaça que não traz crimes novos. Já temos leis pensadas para homicídios, crime organizado, uso de armas de fogo, bombas, e o que mais os terroristas possam usar. Não existem lacunas legais que o terrorista possa aproveitar para nos aterrorizar sem cometer ilícitos, a menos que seja membro do Conselho de Ministros.

E a cereja no cimo do bolo – ou, melhor, a varejeira pousada na bosta – são os novos crimes que propõem. «Uma das propostas passa pela criação de novos tipos de crimes de terrorismo, nomeadamente a criminalização da apologia pública do crime de terrorismo, viagens para adesão a organizações terroristas e o ato de aceder ou ter acesso aos sítios da internet onde se incita ao terrorismo.»(2). Viajar não é crime. Nem quando alguém viaja para assassinar, para roubar ou para burlar a viagem é crime. O que faz sentido porque viajar não é crime. O crime é assassinar, roubar e essas coisas. Excepto no caso do terrorismo. Aquelas três perigosas adolescentes britânicas que viajaram para a Síria, por exemplo, cometeram um crime terrível que nos deve assustar a todos. Temos por isso de dissuadir qualquer pessoa disposta a viajar para aderir a uma organização terrorista pela ameaça de três meses de pena suspensa, sessenta dias de multa ou o que o valha, se for apanhado em flagrante viagem.

Criminalizar a «apologia pública do crime de terrorismo» vai além do disparate. Primeiro, porque a apologia pública do que quer que seja é um direito que temos de proteger do terrorismo em vez de o sacrificar por causa do terrorismo. Em segundo lugar, não é nada claro qual o limite do crime. Se a apologia de que se rebente bombas em Lisboa for crime, também será crime defender que se rebente bombas em Mosul ou noutro sítio qualquer? Será inconveniente se tiverem de prender todo o Estado-Maior-General das Forças Armadas por causa desta legislação. Mas, acima de tudo, nenhuma lei que proíba a apologia do que quer que seja pode ser legítima numa democracia porque a legitimidade democrática das leis exige um debate livre acerca do que queremos ou não queremos que seja crime. A monarquia, por exemplo, é expressamente proibida na nossa Constituição mas nem assim se justifica criminalizar a sua apologia. Porque, se fosse proibida a sua apologia, já não seria legítimo proibir a monarquia.

Querem também criminalizar «o ato de aceder ou ter acesso aos sítios da internet onde se incita ao terrorismo». Não é só aceder. É também crime ter acesso. Suspeito que esta gente tenha a mesma ideia da Internet que a minha avó tinha há uns anos, quando me disse para não deixar os miúdos irem lá ver coisas depois das dez da noite porque a essa hora dão programas que não são para crianças.

As leis devem ser fruto de uma ponderação cuidada entre a segurança e as liberdades que queremos defender e a democracia exige que isto seja feito de forma transparente, respeitando a vontade dos cidadãos e os seus direitos fundamentais. Que meia dúzia de burocratas escolhidos pelo poder executivo se ponham a alterar coisas como a «o regime jurídico das ações encobertas» e a inventar crimes novos à porta fechada assusta-me mais do que a ameaça do terrorismo em Portugal.

1- Governo, APROVADA A ESTRATÉGIA NACIONAL DE COMBATE AO TERRORISMO
2- TVI24, Terrorismo: os novos crimes aprovados pelo Governo.

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

A visão.

Numa conversa no Facebook, o Miguel Pereira criticou o meu ateísmo escrevendo que «Dentro da tua visão ateísta, vazia de "qualquer implicação ética, moral, legal ou o que seja", não há nada de errado com a escravatura, desde que os seus [praticantes] consigam racionalizar isso em seu favor.» A ideia do ateísmo ser intrinsecamente imoral ainda persiste em países teocráticos, onde se considera o ateísmo uma forma de terrorismo, ou entre crentes menos progressivos, como o falecido José Policarpo, para quem o ateísmo seria «o maior drama da humanidade»(1). Felizmente, em sociedades laicas, a maioria dos crentes percebe que fazer do ateu um bicho papão é demagogia ridícula. Por isso, o mais interessante no comentário do Miguel são outros dois erros que, sendo mais subtis, são mais comuns.

O ateísmo consiste simplesmente em encarar todas as religiões como o crente encara aquelas que não são a sua. Ou seja, como fenómenos humanos e culturais em vez de conhecimento acerca do divino. E, tal como concluir que Odin ou Osiris não existem não nos diz nada acerca da escravatura ou do homicídio, também o ateísmo, por si só, não tem implicações éticas nem morais. Em contraste, para o crente, assumir que os dez mandamentos, a sharia ou o dharma foram inspirados por uma divindade suprema parece resolver o problema de encontrar regras morais. Esta diferença cria a ilusão de que o ateu se priva de moralidade por não tomar o atalho da fé quando, na verdade, o crente que fundamenta a sua moral na religião é que perde a parte crucial do processo de adoptar valores morais.

A moral é o conjunto de regras que regulam o nosso comportamento enquanto a ética é a procura racional e crítica pelas melhores regras, fundamentando-as em princípios universais e consistentes. Por isso, quem adopta um sistema moral simplesmente por ser o da sua religião fica com uma moral sem ética. O ateu também pode cometer este erro se for buscar cegamente os seus valores a algum lado, de forma acrítica. A uma ideologia política, por exemplo. E, com a secularização da sociedade, cada vez mais crentes compreendem que a sua crença é demasiado pessoal para fundamentar regras sociais, recorrendo à ética para filtrar criticamente as regras que adoptam da sua religião. Por exemplo, poucos cristãos portugueses de hoje concordarão com Tomás de Aquino acerca da necessidade de matar os hereges (2). O que importa não é ter uma religião mas sim ter ética. Ou seja, procurar as melhores regras morais de forma crítica e consciente em vez de adoptar aquelas só porque estão naquele livro.

O outro erro do Miguel é o de sobrestimar a importância do ateísmo para o ateu. É uma dificuldade comum no diálogo entre ateus e crentes. Se o Miguel falar com um budista, muçulmano ou judeu, intuitivamente percebe que essas religiões serão tão fundamentais para esses crentes quanto o cristianismo é para o Miguel, constituindo para estes uma visão do mundo e até uma parte importante da sua identidade pessoal. Mas o ateísmo não é nada disso. O Pai Natal não existe, Zeus não existe, Jesus, se existiu, foi apenas um homem e Maomé ou andava a enganar os seguidores ou estava tão iludido quanto eles. Isto são meros factos históricos que não constituem qualquer “visão ateísta” nem são particularmente importantes. É verdade que muitos ateus se preocupam com a persistência de crenças falsas e, entre estas, as crenças religiosas sobressaem pela popularidade. Mas isto deve-se apenas aos problemas que as crenças falsas podem causar, quer seja a crença de que se vai para o paraíso se se matar infiéis quer seja a crença de que não se deve vacinar as crianças. O que me leva a escrever tanto sobre ateísmo e religião é a influência das crenças religiosas. Se não fosse isso, explicar que não existem deuses seria tão importante quanto explicar que não existe Pai Natal.

Este é o aspecto do ateísmo que é mais difícil para o crente compreender e que, mesmo quando compreende, é difícil de aceitar. Que haja outras religiões o crente pode aceitar consolando-se com a ideia de que, pelo menos, todas exigem fé na existência de algum deus. Daqui é um pequeno passo para incluir nas “outras religiões” uma caricatura do ateísmo. O fundamental, para alguém como o Miguel, é que a ideia de deus permaneça a mais importante para definir coisas como a moral ou a visão do mundo, nem que seja pela descrença. Mas não é esse o caso porque aquilo que determina a visão do mundo ou sistema moral de um ateu não exige assumir nada acerca de Zeus, Osiris ou Jeová. Por exemplo, para mim, a condenação moral da escravatura não tem nada que ver com deuses nem com o ateísmo. Tem que ver apenas com as pessoas. E a conclusão de que as teses sobrenaturais das religiões são mera ficção não constitui, para mim, nenhum fundamento para uma “visão ateísta” ou moralidade. É apenas bom senso. Reconhecer esta perspectiva é difícil para alguém como o Miguel porque implica reconhecer que ninguém precisa de definir a sua visão do mundo ou a sua moral com referência aos deuses, à fé ou à falta dela. Para quem assume que a ideia do divino é uma coisa fundamental e que, por isso, se esforça tanto para acreditar em proposições obviamente falsas, é naturalmente constrangedor perceber que a ideia é desnecessária e que o esforço é inútil.

1- DN, Cardeal diz que maior drama é a negação de Deus
2- Senza pagare, S. Tomás de Aquino explica o perigo da heresia

domingo, fevereiro 22, 2015

Treta da semana (passada): especial é pouco.

«A Romilda é especial. Desde muito nova começou a ver as pessoas para além da pele. Vê o corpo à transparência, como um raio X, onde as zonas problemáticas se apresentam em tons diferentes de acordo com a gravidade da situação.»(1)

É assim que se apresenta Romilda Costa, curandeira brasileira que já há 18 anos dá consultas em Portugal. Eu penso que esta descrição peca pela modéstia porque a Romilda tem de ser muito mais do que meramente especial. Para começar, um raio X apenas mostra a densidade dos vários tecidos e é preciso depois um médico com anos de formação e experiência para fazer daí um diagnóstico, normalmente usando também informação de outros exames. O raio X da Romilda indica automaticamente onde estão os problemas. Mas faz mais do que isso. No vídeo que Romilda apresenta no seu site, aos 14 minutos, ela diz a uma voluntária que a sua serotonina “trabalha muito rápido”. A serotonina é uma pequena molécula orgânica, libertada pelos neurónios nas sinapses, onde o espaçamento entre as células é de cerca de vinte milionésimas de milímetro. A transmissão sináptica demora menos de uma milésima de segundo (2). E a Romilda não só vê isto a olho nú como consegue perceber, só de olhar, quando a serotonina “trabalha muito rápido”. Mas isto nem é o mais fascinante. Ao diagnosticar aquela senhora, a Romilda viu um quistozinho “entre o ovário e o colo”. O extraordinário é que o quisto tinha sido removido dois anos antes. A visão da Romilda não se restringe ao tempo presente mas transcende as limitações espácio-temporais que a natureza impõe aos meros mortais.

Romilda Costa parece ter também uma vida extraordinária. Em 2003 foi instaurado um inquérito pelo Conselho de Administração do Serviço Regional de Saúde da Madeira pela morte de um paciente após uma visita pouco ortodoxa: «O inquérito refere que uma das duas mulheres que se encontravam no quarto particular do Centro Hospitalar do Funchal, estaria a vestir uma camisa da noite, em frente ao doente, um empresário do Porto Moniz, enquanto a outra, identificada como sendo Romilda, mas da qual o hospital não tem registo, estaria deitada num colchão com pouca roupa vestida.»(3)

Em 2011, o médico Paulo Jorge Coelho fez uma participação à Entidade Reguladora da Comunicação Social contra essa edição do programa A Tarde é Sua. No entanto, a ERC considerou a participação improcedente alegando que «não está habilitada, nem detém as devidas competências, para avaliar e manifestar-se sobre as questões de ordem médica que podem resultar do referido programa». Aparentemente, é preciso grande competência técnica para concluir que "serotonina trabalha muito rápido" e «muita esqueriose» são diagnósticos da treta.

Eu penso que à Romilda só falta um pouco mais de confiança nos seus dons. No mês passado, Romilda desapontou os pacientes a quem tinha prometido deslocar-se a Jersey, no Reino Unido, para dar consultas. Num comentário no Facebook, Romilda pediu desculpa mas, afinal, não poderia ir «Pelo simples fato de já varias pessoas me terem dito, que corro o risco de ser expulsa do pais, ou ate mesmo presa»(5). Parece que as autoridades britânicas têm uma certa aversão a quem vai lá trabalhar sem autorização nem intenção de pagar impostos. Gostava de deixar aqui uma palavra de encorajamento à Romilda para que confie mais na sua missão e na protecção divina. Que não tenha receio de levar os seus dons para outros países. E quantos mais e mais longe, melhor.

1- RomildaCosta.com, Centro de Tratamento Natural (obrigado ao leitor que me enviou um email com este link).
2- Wikipedia, Chemical synapse
3- Tribuna da Madeira (via saudinha.pt), MP mantém investigação do caso que envolve o hospital e Romilda
4- ercs, Deliberações adoptadas pelo conselho regulador a 25, 26 e 27 de outubro de 2011
5- Romilda Costa, 22 de Janeiro de 2015 (Facebook)

domingo, fevereiro 15, 2015

Treta da semana (passada): o custo.

O nosso primeiro ministro e a comissão liquidatária que alcunharam de “governo” estão muito determinados a vender ao desbarato o que é de todos, a cortar na saúde e na educação, a salvar bancos falidos e a recusar qualquer negociação de juros. Quem lucra com a proibição dos Estados se financiarem directamente pelo Banco Central, fazendo de intermediário, tem de ter o seu rendimento garantido «custe o que custar»(1). O que Passos Coelho quer negociar são coisas como os medicamentos para a hepatite C. Salvar pessoas não é como salvar bancos. É importante, “mas não custe o que custar” (2). Mas este post não é sobre a desgraça de gente que alguns elegeram. É sobre a razão pela qual o medicamento nos sai tão caro.

O sofosbuvir imita os nucleótidos que a polimerase de RNA do vírus da hepatite C usa para transcrever os genes virais, entalando-se na enzima e estragando a vida ao vírus (3). Como a Gilead detém as patentes desta droga, vende o medicamento a dezenas de milhares de euros apesar do custo estimado de produção ser de cerca de cem dólares para um tratamento completo de três meses (4). Excepto na Índia, que lhes negou a patente. Lá o preço é de 300 dólares (3,4). O David Marçal defende que o Estado português deve produzir o medicamento à revelia da patente e depois negociar preços e indemnizações (5). É uma solução. Mas eu proponho ir mais longe e acabar com este sistema de concessão indiscriminada de monopólios.

As duas razões que normalmente se invoca para justificar as patentes são a “propriedade intelectual”, segundo a qual quem tem uma ideia é dono dessa ideia, e compensar o investimento privado para incentivar a inovação. Nenhuma delas se aguenta. Conceder direitos de propriedade sobre o processo de síntese e a aplicação de um medicamento resulta, na prática, em conceder a uma parte direitos de propriedade sobre o trabalho de outros que queiram sintetizar o medicamento ou usá-lo em tratamentos. Isto é como a escravatura. Ninguém pode ter direitos de propriedade sobre o que os outros fazem por sua conta.

Justificar a patente como incentivo ou compensação também é um erro, em quase todos os casos*, porque as empresas vão sempre investir menos em investigação do que aquilo que lucram com o monopólio. Ou seja, o custo de conceder a patente será sempre maior do que o custo da investigação que a patente financia e que, de resto, é uma pequena fracção daquilo que o Estado tem de investir. Por exemplo, recentemente, investigadores da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em colaboração com a EFACEC, desenvolveram uma técnica de soldadura de vidro útil no fabrico de certos painéis solares e venderam a «propriedade intelectual da tecnologia à empresa de energias sustentáveis ‘Dyesol’»(6) por cinco milhões de euros. Obviamente, a Dyesol comprou o poder legal de proibir toda a gente de usar esta técnica porque estimam ganhar mais do que isso com o monopólio. O resultado é que a FEUP, a Dyesol e a EFACEC lucram com o negócio em prejuízo do resto da sociedade, incluindo os contribuintes que pagaram gerações de investimento na criação de instituições como a FEUP, que financiaram a formação dos investigadores e a investigação fundamental necessária para este avanço e os muitos projectos que não deram resultado mas que foram igualmente necessários. A investigação científica não é como nos filmes, onde um tipo de bata branca dá umas voltas no laboratório e inventa o que queria inventar. Investigar é procurar soluções que, à partida, desconhecemos. É como ter umas centenas de polícias a percorrer um bosque à procura da arma do crime. Mesmo sabendo que, no máximo, só um deles a irá encontrar, não podemos dispensar os outros. Uma patente não compensa o esforço necessário para inovar. É apenas uma forma dispendiosa de premiar quem calhou dar o passo final para o lado certo.

No caso dos medicamentos, o custo é ainda maior porque se paga também em vidas. Apesar do investimento privado no desenvolvimento de medicamentos ser avultado, é apenas uma pequena parte do investimento necessário em formação e investigação fundamental, e esse vem quase todo dos contribuintes. Desde os estudos epidemiológicos à determinação da estrutura das proteínas alvo, há imenso trabalho indispensável que as empresas aproveitam gratuitamente. Como nenhuma empresa privada investe mais em investigação do que lucra com o monopólio da patente, mesmo que eliminar as patentes implicasse estender o investimento público a esse passo final da investigação, sairia mais barato do que comparticipar os medicamentos vendidos a preço de monopólio. O investimento privado só é eficiente quando há concorrência livre. Se concedemos monopólios eliminamos a única vantagem que esta actividade tem para quem não lucre directamente com ela.

As patentes acarretam ainda outros custos. Os tribunais, a fiscalização e os litígios constantes são pagos por toda a sociedade, directamente pelos impostos ou indirectamente nos preços. As restrições e despesa adicional que as patentes impõem à investigação prejudicam a inovação. Como incentivo, as patentes favorecem o desenvolvimento de produtos mais lucrativos em vez dos mais úteis. Um medicamento para o refluxo gástrico ou para controlar o colesterol é muito mais lucrativo do que um medicamento para a malária, e isso reflecte-se nas prioridades das empresas farmacêuticas. E há também o problema da origem desta legislação. As leis deviam ser criadas em representação de todos para defesa de direitos fundamentais ou do interesse da maioria. Mas estas leis são inventadas em tratados internacionais e negociadas à porta fechada entre gente com muito dinheiro e políticos à procura dele. O resultado, além de não ser democraticamente legítimo, é inevitavelmente prejudicial para todos os outros.

* A excepção, rara, é a da inovação que pode ser mantida secreta durante muito tempo. Nesses casos pode compensar conceder um monopólio em troca da divulgação da invenção. Mas suspeito que os casos em que o segredo pode ser preservado e a patente convence a revelá-lo são suficientemente raros para nem valer a pena ter um sistema legal só para isso.

1- TVI, 2012, Passos: «Vamos cumprir, custe o que custar»
2- Notícias ao minuto, "Deve-se fazer tudo para salvar vidas, mas não custe o que custar”
3- Wikipedia, Sofosbuvir
4- MSF, Gilead Denied Patent for Hepatitis C Drug Sofosbuvir in India
5- de rerum natura, O que acho que se deve fazer quanto ao medicamento da hepatite c.
6- EFACEC, FEUP e EFACEC comercializam tecnologia no valor de 5 milhões de euros

quarta-feira, fevereiro 04, 2015

Não é por ser científico...

Na semana passada, o David Marçal esteve no “A Tarde é Sua” para debater homeopatia com José dos Santos Lopes, o presidente da Associação Portuguesa de Homeopatia (1). É difícil debater naquele formato, com interrupções constantes e sem tempo para explicar ou desmontar adequadamente alegações falsas, mas, tendo em conta as dificuldades, acho que o David se safou bem. Só que penso que há uma forma melhor de abordar estas coisas.

O David começou por afirmar que «o que eu discuto é simplesmente se a homeopatia tem uma fundamentação científica ou não» e, alegando que não tem, afirmou então que o fundamento científico são «as provas experimentais, reprodutíveis e verificáveis por grupos de investigação independentes». Apesar de o David ter razão, esta não é a abordagem ideal. Primeiro, quando restringe a discussão à ciência expõe-se à alegação de que a ciência não é tudo e não explica tudo. O que é verdade mas é irrelevante porque a ciência continua a ser o melhor método para decidir se afirmações correspondem ou não à realidade e é precisamente isso que está em causa em coisas como a homeopatia. Mas o pior é que, para a maioria das pessoas, o argumento do David parece ser um argumento falacioso de autoridade porque não é claro que só a ciência possa estipular como se avalia a homeopatia ou outra treta qualquer.

Eu proponho que se pense nisto ao contrário. Não é por ser científica que uma investigação é mais legítima. É por ser o mais rigorosa e fiável que conseguirmos que merece o rótulo de “científica”. Mas não é o rótulo que importa. O que importa é que a forma como se aborda o problema seja adequada. No caso das doenças e terapias, importa ter em conta a complexidade e diversidade das pessoas e que as doenças, e o seu tratamento, sofrem influências de muitos factores como genética, alimentação, repouso, stress e assim por diante. Portanto, se a pessoa que tomou um medicamento se curou mais depressa do que a outra que não o tomou, tanto pode ter sido pelo medicamento como por outra coisa qualquer. Mesmo testando o medicamento num grupo de pessoas de forma controlada há o risco de deixar escapar algum factor importante que afecte os resultados. Idade, peso, horas de sono, muita coisa pode ter influência. Por isso, o que precisamos é de considerar o padrão que surge quando os testes são repetidos por investigadores diferentes, de forma cuidadosa e sistemática. Se o medicamento é eficaz, nesse padrão será visível uma tendência para que se cure mais depressa quem o tomar. Não será em todos os casos, pois há mais factores envolvidos, mas haverá uma tendência tão mais saliente quanto mais eficaz for o tratamento. Por outro lado, se o medicamento não for eficaz, iremos à mesma obter alguns resultados positivos. Mas serão esporádicos, pontuais, e apenas dentro do que se espera pela imprevisibilidade devida aos outros factores, muitos dos quais não podemos controlar. É por isto que é importante considerar o padrão todo, todos os resultados, todos os estudos conforme a sua qualidade, em vez de escolher uns como exemplo. Haverá sempre exemplos positivos ou negativos, conforme se queira escolher.

Isto é exactamente o que o David referiu como «provas experimentais, reprodutíveis e verificáveis por grupos de investigação independentes». Só que não se apresenta como uma regra arbitrária e autoritária que é assim porque a ciência manda. Nem é preciso dizer que é ciência, até porque o rótulo não importa. Assim, deixa de parecer um argumento de autoridade e deixa de poder ser falaciosamente atacado com a tal afirmação de que a ciência não é tudo. O que importa é que a natureza do problema de averiguar se um medicamento é eficaz obriga a experimentar várias vezes, com vários grupos, de várias maneiras e de forma sistemática para se poder tirar uma conclusão fiável do conjunto total de resultados.

O mesmo problema surge no artigo que o David escreveu com Carlos Fiolhais, no Público. Por exemplo, «No caso das ciências médicas, o padrão são revisões sistemáticas da literatura, que de um modo transparente levam em conta todos os ensaios clínicos sobre um assunto. [...] é isso a medicina baseada na ciência» (2). Isto é verdade e é óbvio para quem perceba de investigação médica. Mas, por não explicar o porquê, para a generalidade das pessoas parece um mero argumento de autoridade, como se fosse assim só porque os cientistas querem.

Em geral, tretas como a homeopatia são defendidas alegando que a ciência não é dona de tudo e escolhendo alguns exemplos a dedo. Explicando porque é que o problema tem de ser abordado como a ciência o faz evitamos facilmente estes truques. Quando fui testemunha no julgamento do Luís Grave Rodrigues, que foi processado por ter criticado uma farmácia homeopática, a advogada da queixosa vinha, previsivalmente, preparada com duas ou três referências a estudos que “comprovavam” a eficácia da homeopatia. Pediu-me então para explicar como poderia haver aqueles resultados se a homeopatia não funcionasse. Infelizmente para ela, eu tinha acabado de explicar aos juízes porque é que não se pode escolher apenas alguns estudos a dedo e se tem de considerar o padrão geral dos resultados, esse manifestamente desfavorável à homeopatia. Por isso nem tive de responder à pergunta, considerando os juízes que o assunto já estava esclarecido. Mas foi crucial explicar que era a natureza do problema que obrigava que assim fosse. Afirmar simplesmente que tem de ser assim para ser científico é muito pouco satisfatório para quem não perceba porquê.

1- tvi, A Tarde é Sua: medicamentos homeopáticos, sim ou não?
2- Público, O Prof. Mambo e Schrödinger
3- Processado.

domingo, fevereiro 01, 2015

Treta da semana: cinco vias.

Esta semana celebrou-se o dia de São Tomás de Aquino, doutor do cristianismo medieval e tido por muitos cristãos como o expoente máximo da teologia. Conta-se que, quando a sua família o fechou num quarto com uma prostituta, «ele perseguiu-a com um tronco a arder» e, em seguida, «desenhou uma cruz na parede do quarto e ajoelhou-se em veneração. Imediatamente dois anjos da pureza apareceram e colocaram um cinto angélico à volta da sua cintura. A partir deste dia ele nunca mais sofreu um pensamento ou acção de luxúria em toda a sua vida.»(1) Era, de facto, um indivíduo excepcional.

Um dos muitos feitos de Aquino foi ter demonstrado a existência do deus da sua religião com cinco argumentos diferentes, se bem que seguindo um padrão comum. Por exemplo, tudo o que concretiza o seu potencial precisa de algo que leve esse potencial a concretizar-se. A madeira está potencialmente a arder até que lhe pegam fogo e fica realmente a arder, precisando do fogo para concretizar o seu potencial. Se cada um desses “movimentos” do potencial para o concretizado precisa de algo que o concretize e se ,por sua vez, esse algo tem de ser concretizado por outra coisa, será preciso um concretizador original. Que é Deus, pois claro. Fazendo o mesmo com as causas dá-nos Deus como a causa original, com a perfeição temos Deus como o ser mais perfeito e assim por diante (2). Como manda a tradição escolástica, e como ainda é hábito na apologética e na filosofia da religião, a argumentação de Aquino parte de premissas aparentemente triviais, apresentadas como auto-evidentes, e prossegue com um argumento sofisticado, recorrendo a conceitos complexos e terminologia obscura para chegar à conclusão desejada. A vantagem desta abordagem é tornar o argumento tão hermético que o apologista pode deflectir qualquer crítica focando as minudências da terminologia e acusando o crítico de não perceber os detalhes. Mesmo que sejam irrelevantes. Por exemplo, se alguém questionar porque é que a causa original há de ser um deus e não outra coisa qualquer, o apologista dirá que “causa” é um termo da metafísica aristotélica e que só quem leu Aristóteles em grego e mais umas dúzias de livros sobre o assunto é que pode questionar o que quer que seja. Não resolve o problema apontado mas disfarça a crítica com a ilusão de autoridade.

Um argumento complexo com premissas simples também é vantajoso quando a audiência está predisposta para aceitar a conclusão. Apesar de, logicamente, a conclusão nunca merecer mais confiança do que as premissas, psicologicamente, a ênfase num argumento elaborado que conduz a uma conclusão aprazível faz as premissas parecerem muito mais fundamentadas do que realmente são. É este efeito que torna esta argumentação tão popular entre os crentes e faz com que ainda hoje se dediquem a “provar” a existência do Gambozino. No entanto, para quem não esteja particularmente inclinado a acreditar que o tal deus existe, esta argumentação revela-se um exercício fútil de retórica e contorcionismo mental. Para admiração de muitos cristãos, os argumentos que lhes parecem constituir prova irrefutável da existência do seu deus são notoriamente ineficazes para converter seja quem for ao cristianismo.

O erro fundamental da apologética e da filosofia da religião é focar demais no argumento e descurar a explicação. Um argumento exprime um processo de inferência que interliga conceitos e proposições que concebemos na nossa mente, enquanto uma explicação pretende descrever relações entre os aspectos da realidade que queremos explicar. Isto impõe à explicação restrições adicionais que permitem distinguir mais objectivamente entre explicações melhores e piores. Por exemplo, se partirmos da premissa de que Deus existe e encarnou em Jesus podemos argumentar que o cristianismo é verdadeiro. Ou então, se assumirmos que não existem deuses, podemos argumentar que o cristianismo é falso. Estes argumentos são igualmente válidos e o mais persuasivo será apenas aquele que partir da premissa preferida. É por isso que se pode andar milénios a argumentar estas coisas sem sair da cepa torta.

Mas se optarmos por explicações em vez de argumentos o resultado é outro porque, em vez de descrevemos o que fazemos mentalmente com as premissas, tentamos descrever o que se passa na realidade e essas descrições já não são equivalentes. Uma explicação para a origem do cristianismo pode ser a de que o criador do universo encarnou em Jesus e revelou a sua mensagem aos primeiros cristãos. Outra pode ser a de que as religiões são uma expressão da propensão humana para inventar narrativas como forma de persuadir, organizar grupos e regular comportamentos. Enquanto que a primeira só se aplica ao cristianismo, deixa muitos detalhes de fora e tem de assumir proposições para as quais não há evidências, como a existência de Deus, a natureza divina de Jesus e assim por diante, a segunda abrange todas as religiões e recorre apenas a aspectos bem conhecidos do comportamento humano. Independentemente das nossas crenças pessoais, há diferenças objectivas no fundamento empírico, na arbitrariedade das premissas e na abrangência destas explicações que torna uma claramente melhor que a outra.

O argumento exprime aquele raciocínio, daquela pessoa, com aquelas premissas. Por isso, quem quer estudar a teologia de Aquino tem de ler o que Aquino escreveu. A explicação, como pretende descrever a realidade, transcende o pensamento do seu autor e tende a aperfeiçoar-se. Por isso é que ninguém estuda evolução lendo Darwin nem física pelos textos de Newton. O grande progresso dos últimos séculos deveu-se a desistir do argumento complexo pendurado de premissas arbitrárias e a exigir que as premissas sejam as melhores explicações. Foi isto que nos deu mecanismos objectivos para progredir no conhecimento em vez de andarmos às voltas com os mesmos argumentos bolorentos.

1- Taylor Marshall, traduzido por João Silveira, As minhas três histórias preferidas da vida de S. Tomás de Aquino
2- Wikipedia, Quinque viae

sexta-feira, janeiro 30, 2015

Treta da semana (passada): a teoria da confusão.

O Orlando Braga discordou da definição de evolução como sendo a variação nas características hereditárias ao longo das gerações. Em vez disso, propôs que «No sentido biológico, “evolução” designa um processo pelo qual a vida emerge da matéria não-animada e se desenvolve depois por meios exclusivamente naturais. Foi esse o sentido que Darwin emprestou à palavra e foi retido pela comunidade científica.» (1)

É curioso. Na primeira edição de “A Origem das Espécies”, Darwin usou o termo “evolução” exactamente zero vezes (2). Em vez disso, falou sempre em descendência com modificação, que é, aliás, o significado que a biologia moderna atribui ao termo “evolução” (3). Se bem que na sexta edição já tivesse mencionado “evolução”, fê-lo praticamente só no contexto das objecções à sua teoria (4). Quanto à origem da vida em si, Darwin foi bastante claro: «a ciência, por enquanto, não esclarece o problema muito maior da essência ou origem da vida»(4). A definição de evolução que Braga atribui a Darwin, «processo pelo qual a vida emerge da matéria não-animada», teria surpreendido e chocado o próprio Darwin.

Braga discordou também da minha explicação de que os mecanismos da evolução podem ser mais ou menos aleatórios (5). Aparentemente, julga que ser aleatório é como estar grávida. Ou está, ou não está. Mas isto é errado. O resultado de lançar um dado equilibrado é aleatório, com uma probabilidade de um em seis para cada número. Se o dado estiver viciado e a probabilidade de sair 6 for 50%, o resultado continua a ser aleatório mas será menos aleatório porque é mais previsível. E se lançarmos ambos os dados um milhão de vezes, é praticamente certo que o dado viciado terá um resultado médio superior ao do dado equilibrado. É isto que acontece na evolução. O acaso tem alguma influência. Por exemplo, a retina dos vertebrados desenvolve-se como uma extensão do cérebro e acaba por ficar ao contrário, com os receptores atrás dos nervos e dos vasos sanguíneos. Nos invertebrados, a retina desenvolve-se a partir de uma invaginação da cabeça e fica orientada da forma mais conveniente. Alguma mutação menos feliz num ancestral dos vertebrados deu neste azar. Mas a aleatoriedade não é total, e os enviesamentos causados pela pressão da selecção natural fizeram com que os olhos dos vertebrados acabassem por ser quase tão eficientes quanto os dos invertebrados.

Além de persistir nas confusões sobre a informação e o teorema de Gödel, Braga acrescenta agora que eu estou «a misturar a micro-evolução com a macro-evolução» enquanto que ele só está a falar desta última. Este é um truque comum entre os “cépticos” da evolução. A ideia é a de que aceitam que as populações se vão modificando com o passar das gerações mas não aceitam que a alteração seja muito grande. Exactamente o que isso quer dizer ou porque defendem isso nunca é explicado. É como aceitar que uma pessoa pode envelhecer um ou dois anos mas nunca setenta, porque o macro-envelhecimento é impossível.

Na verdade, existem várias distinções entre micro-evolução e macro-evolução. Uma é a distinção entre a evolução de elementos microscópicos do organismo, como enzimas e células, e elementos macroscópicos como ossos e escamas. Isto é relevante em paleontologia, por exemplo, onde normalmente só os macroscópicos são visíveis. Outra distinção é a da evolução dentro de uma mesma população e a evolução que envolve formação de novas espécies. No entanto, tudo isto refere ao mesmo processo de evolução e, por isso, muitos autores simplesmente ignoram essa distinção como pouco relevante. Mas há um sentido no qual a diferença entre micro-evolução e macro-evolução pode ser importante. Como Ernst Mayr apontou, a teoria da evolução descreve apenas o que acontece às populações, ao longo das gerações, sob pressão dos outros organismos com quem coexistem e do ambiente onde vivem. No entanto, esta teoria é omissa acerca do impacto que os organismos têm sobre o ambiente. Que normalmente é negligenciável mas por vezes não é.

Por exemplo, há coisa de dois mil milhões de anos começaram a proliferar bactérias capazes de aproveitar o hidrogénio da água durante a fotossíntese. Sobrava o oxigénio, que deitavam fora. Este poluente foi reagindo com os iões metálicos dissolvidos no oceano formando óxidos insolúveis e, assim, retirando gradualmente este iões da água. Pior ainda, quando se esgotaram os iões metálicos nos oceanos, o oxigénio começou a escapar-se para o ar e alterou profundamente a atmosfera da Terra. A teoria da evolução permite modelar como é que as populações foram sendo pressionadas a adaptar-se a estas condições mas, por si só, não nos permite prever o que iria acontecer aos iões metálicos nos oceanos ou à composição química da atmosfera. Quando a evolução decorre durante muito tempo, os organismos podem ter grande impacto no ambiente e esse impacto tem de ser modelado por outras teorias que não a da evolução. Pela química, geologia, física e assim por diante. É essa a diferença mais importante entre micro-evolução e macro-evolução. No entanto, do ponto de vista da evolução, o processo é o mesmo. É sempre o lento acumular de mutações hereditárias sob pressão selectiva. Dizer que se aceita a micro-evolução mas que a macro-evolução é impossível é apenas uma forma rebuscada de admitir que não se percebe nada do assunto.

1- Orlando Braga, Ludwig Krippahl: mistura, baralha, confunde, e diz que é ciência 2- Project Gutenberg, On the Origin of Species, first edition.
3- Wikipedia, Evolution.
4- Project Gutenberg, On the Origin of Species, sixth edition
5- Treta da semana (atrasada): Impossível.

quinta-feira, janeiro 29, 2015

De novo os limites.

Em comentários ao post sobre os limites da liberdade de expressão, a Cristina Sobral argumentou que a ofensa não deve ser permitida. As razões que apresentou foram a protecção constitucional da «dignidade da pessoa humana» e do «direito ao bom nome e reputação, à imagem, à dignidade e identidade pessoal» bem como o artigo 181º do Código Penal que pune «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração» (1). Propôs também que, sendo a crença religiosa algo com o qual o crente se identifica tão fortemente, se deve considerar uma crítica insultuosa à religião como um insulto pessoal a cada crente dessa religião.

Eu concordo que a difamação está fora da liberdade de expressão, em parte pelo direito à dignidade e imagem pessoal. Se entendermos a difamação como a imputação pública, a alguém, de algo que é falso ou do foro privado, então esta expressão estará a violar direitos igualmente fundamentais e não deve ser permitida. Mas a ofensa é diferente da difamação porque, além de ser mais um problema de forma do que de conteúdo, os seus efeitos são determinados exclusivamente pelo visado. Se alguém disser à polícia que eu bato na minha mulher eu posso sofrer consequências disto independentemente da minha opinião acerca do assunto. Mas se alguém me chamar imbecil ou gozar com quem usa óculos isso só me afectará se eu deixar que me afecte.

Qualquer um é livre de se identificar tão fortemente com uma doutrina que se ofenda quando troçam dessa doutrina. Qualquer um é livre de se ofender por ver mulheres sem burka na rua. Qualquer um é livre de ter nojo dos homossexuais, de odiar os imigrantes e de ficar zangado por lhe chamarem nomes ou maldizerem o seu deus. Mas isso é lá consigo. Mais ninguém tem que ver com isso e não se justifica proibir nada por causa disso. A própria lei acaba por ser condicionada por este problema. Sendo impossível criminalizar tudo o que qualquer pessoa diga ofender-lhe e não havendo critérios objectivos para categorizar ofensas, o que é ofensivo será simplesmente o que o senhor doutor juiz julgar ofensivo. O resultado é uma das leis mais imbecis que temos e não admira que Portugal seja constantemente condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violar a liberdade de expressão (2).

Não faz sentido que a ofensa seja proibida porque ofender-se é apenas uma variante do beicinho e da birra. E quem estiver preocupado com a sua dignidade e bom nome deve ter em conta que, ao declarar-se ofendido, revela apenas falta de inteligência e de maturidade.

1- Treta da semana (atrasada): limites
2- TVI, Portugal condenado por violar liberdade de expressão

domingo, janeiro 25, 2015

Treta da semana (passada): água fluidificada.

A Associação Espírita de Évora oferece um serviço gratuito de fluidoterapia. «Esta transferência de fluidos é feita através de um trabalhador da Casa Espírita, preparado e seleccionado para o efeito, que serve de mediador entre o mundo espiritual e o mundo material; os espíritos canalizam seus fluídos através do passista, combinando ambos e dando ao fluído humano as qualidades que lhe faltam e que são adequadas àquele receptor.»(1) Se bem que pareça pouco higiénico à primeira vista, não há nada a temer porque são fluidos espirituais. Não molham, não colam e não deixam mancha quando secam. Também é importante salientar que «No Centro Espírita não se deve tocar no receptor.» Não há poucas vergonhas.

Mais interessante ainda do que a passagem dos fluidos espirituais para um receptor é a sua transferência para a água. «A água é um dos corpos mais simples e receptivos da Terra. É como que a base pura, em que a medicação Espiritual pode ser impressa.»(2) Pela acção dos espíritos, obtém-se a água fluidificada: «A água fluidificada é a água normal, acrescida de fluidos curadores. Em termos de Espiritismo, entende-se por água fluidificada aquela em que fluidos medicamentosos são adicionados à água. É a água magnetizada por fluidos.» Esta água magnetizada por fluidos medicamentosos curadores espirituais tem como efeitos, entre outros, «aceleração dos processos de fagocitose, incremento na produção de linfócitos (células de defesa); […] efeito rejuvenescedor no organismo […] captura e precipitação do cálcio em excesso no meio celular».

Como as doenças transmitidas pela água matam quase trêm milhões e meio de pessoas por ano (3), a possibilidade de fluidificar a água com esta magnetização espiritual medicamentosa tem um potencial imenso para a saúde mundial. Mesmo que os espíritos não consigam inactivar os agentes patogénicos, fluidificar a água consumida pelas pessoas que não têm acesso a água potável ajudaria imenso por fortalecer as suas defesas, rejuvenescer os seus organismos e até capturar o cálcio em excesso, se fosse caso disso.

Infelizmente, as terapias espirituais e alternativas só servem para quem usufrua de boa infraestrutura sanitária, acesso a vacinas e antibióticos e a um sistema de saúde que resolva os problemas sérios. Para essas pessoas, a água fluidificada pode ser um bom complemento para a «Reposição da energia espiritual, renovando a estrutura perispiritual». Seja lá o que isso for. Para quem precisa de ajuda a sério não há milagres.

1- Associação Espírita de Évora, Fluidoterapia Espírita
2- Centro Espírita Adolfo Bezerra de Menezes, O Que é Água Fluidificada?
3- Voice of America, WHO: Waterborne Disease is World's Leading Killer

quarta-feira, janeiro 21, 2015

Treta da semana (atrasada): limites.

A liberdade de expressão é um direito simples de compreender. É o direito de não ser forçado a calar o que se quer dizer. É um direito negativo, como o direito de não ser torturado, de não ser violado ou de não ser preso, porque é um direito que se garante simplesmente deixando a pessoa em paz. Não é preciso fazer nada por alguém para garantir a sua liberdade de expressão. Basta não o castigar pelo que exprime. No entanto, como qualquer direito, tem de acabar na fronteira a partir da qual infringiria outros direitos tão ou mais importantes. Por isso, o direito de me exprimir por gestos não me autoriza a bater nos outros, o direito de falar não me autoriza a burlar ou a ameaçar e o direito de escrever não me autoriza a fazer denúncias falsas. Em todos estes casos podemos identificar um direito que seria desrespeitado se permitíssemos à liberdade de expressão ultrapassar estes limites, como o direito à integridade física, à auto-determinação e a não ser perseguido por crimes que não se cometeu, por exemplo. E em todos esses casos podemos identificar também a fronteira onde acaba um direito para não interferir no outro.

No entanto, dizer que a liberdade de expressão é um direito fundamental só que não se pode insultar é análogo a dizer que a violação é condenável mas não se pode andar vestido de forma provocante. Primeiro, porque ambos os casos deixam deliberadamente vaga a fronteira que insinuam. Não é claro se defendem que a violação passa a ser aceitável por a vítima vestir uma mini-saia ou se é legítimo coagir alguém ao silêncio para evitar que outros se sintam insultados. Em segundo lugar, ambos pretendem limitar um direito importante para a autonomia do indivíduo em favor de algo que, em rigor, não passa de um capricho. O direito de não ser silenciado e o direito de não ser forçado a ter relações sexuais são parte do que permite a cada pessoa ser ela própria em vez de um mero objecto da vontade dos outros. Este respeito pela autonomia do indivíduo tem de ser uma preocupação ética fundamental. Se bem que isto inclua reconhecer que cada um tem o direito de se sentir ofendido ou provocado com o que bem quiser, este direito só se estende até colidir com os direitos dos outros. Tal como o meu direito de me sentir provocado não me autoriza a violar quem quer que seja, também o meu direito de me sentir ofendido não me autoriza a fazer calar ninguém. Eticamente, a ideia de limitar a liberdade de expressão para proibir a ofensa, o escárnio ou o ridículo não tem fundamento.

Mesmo numa perspectiva prática, é fácil de ver as vantagens em permitir estas formas de expressão. Eu e o Papa podemos coexistir pacificamente numa sociedade que me permita dizer que o Papa é estúpido e que lhe permita a ele dizer que o estúpido sou eu. O exercício deste direito por cada um de nós não impede o outro de exercer direitos equivalentes. Mas se adoptarmos a receita que o Papa sugeriu, de agredir quem nos insulta, deixamos de poder coexistir de forma civilizada e caímos na bestialidade da lei do mais forte.

Outra vantagem da liberdade de insultar e ridicularizar é ser selectivamente corrosiva de más ideias. Quem tentar ofender os físicos ridicularizando a termodinâmica ou a teoria da relatividade irá apenas fazer figura de parvo ou revelar a sua ignorância. Em contraste, é muito fácil ofender quem acredita que o criador do universo encarnou num palestiniano para fazer meia dúzia de milagres e assim nos indicar que quando morrermos podemos ir para o céu. Essa ideia é tão descabida e ridícula já de si que qualquer piada que se faça vai ofender. Quando o rei vai bem vestido, dizer que ele vai nu é ridículo. É só quando todos se esforçam por ignorar o abanar evidente dos seus testículos engelhados que a mais leve menção de algo “ofensivo” arrisca desmoronar o embuste. Não admira por isso que pessoas como o Papa sejam tão avessas à liberdade de ridicularizar e ofender, principalmente quando o alvo são crenças religiosas.

Por causa desta corrosão selectiva das tretas, nenhum regime autoritário pode permitir que os seus cidadãos sejam livres de ofender e ridicularizar o que quiserem. Nenhum Hitler, Estaline ou Kim se aguentaria no poder se o insulto e o escárnio fossem permitidos. Logo por isso já se justifica prezarmos esta liberdade como uma das mais importantes da nossa civilização. É o canário na mina. É a primeira a morrer quando as coisas começam a dar para o torto, e é de desconfiar sempre que alguém defende que o respeitinho é mais importante que a liberdade de dizermos o que nos vai na cabeça.

domingo, janeiro 18, 2015

Não é do extremismo.

Segundo a comunicação social, o terrorismo islâmico é causado pelo extremismo e não se pode confundir com o “Islão moderado”. Realmente, o terrorismo é um extremo na gama de comportamento que vai do pacifismo à violência. Mas isso é o efeito e não a causa. A causa do terrorismo está nos valores dos terroristas e, nisso, a distinção entre extremista e moderado não faz sentido. No resto do post tento explicar porquê e porque isto importa.

Não há nada de errado em ser extremista, fundamentalista ou radical nos valores. Eu acredito que não se deve torturar crianças e sou extremista nesta crença, aceitando até que se mate o torturador se for necessário para o deter. Nem compreendo como poderia ser moderado nisto. Acreditando só segundas, quartas e sextas? É verdade que outros podem discordar. Por exemplo, julgando legítimo torturar uma criança se for absolutamente necessário para salvar milhares de vidas. Mas esse será um valor diferente e não uma versão moderada do meu. É sensato acreditar em factos com diferentes graus de confiança, incerteza ou margens de erro, conforme as evidências, mas os valores são critérios de decisão e só servem esse propósito se forem claros. Temos de saber o que é importante. Por isso, mesmo quando conciliamos vários valores, temos de encontrar um extremo no espaço de possibilidades que nos sirva de orientação. Considerando o direito de cada um se vestir como quer, de recusar relações sexuais e outros valores, eu defendo que a condenação da violação não deve depender da roupa da vítima. Outros podem achar que a violação só deve ser condenada se a vítima se vestia modestamente ou até que a mulher violada é sempre culpada porque provocou. Todas estas posições são extremistas. Distinguem-se apenas por estarem em extremos diferentes.

Outro erro na ideia do Islão moderado e extremista é sugerir uma gama de possibilidades contíguas e ordenadas. Como o consumo de álcool, que vai da abstinência ao copo de vinho ao jantar e à garrafa de vodka ao pequeno almoço. Mas não dizemos que o terrorismo dos cartéis da droga no México é uma forma extremista do “mexicanismo” moderado porque é óbvio que os bandidos não têm variantes mais extremistas dos valores da maioria dos mexicanos. Têm é valores diferentes. Também “o Islão”, na verdade, é uma catrefada de “islões”. Alguns muçulmanos integram-se na cultura ocidental e adoptam os valores de liberdade e respeito pelo indivíduo dos seus concidadãos. Outros imigrantes muçulmanos não se integram e mantém valores diferentes. As mulheres andam de burka, não querem as filhas na escola, não aceitam a liberdade religiosa e assim por diante. Os países de maioria muçulmana têm outros “islões”, muitos ainda piores, e grupos como Al-Qaeda, Boko Haram e ISIL têm as suas variantes do Islão, que não são nem mais nem menos extremistas, fundamentalistas ou radicais. Baseiam-se apenas em partes diferentes do Corão.

A ideia de uma gama de muçulmanos que vai do moderado ao extremista engana por sugerir que a maioria dos muçulmanos é “moderada” por não andar de metralhadora a matar gente. Mas centenas de milhões de muçulmanos que não são terroristas também estão muito longe de partilhar os valores que nós consideramos fundamentais e acerca dos quais somos extremistas, como o respeito pela liberdade religiosa e pela igualdade de direitos entre os sexos. A maioria dos muçulmanos é a favor de coisas como criminalizar a apostasia (1) ou punir qualquer crítica à religião (2). Não são mais extremistas do que nós, mas estamos em extremos opostos. Os muçulmanos a quem podemos chamar “moderados” por serem extremistas nos mesmos valores em que nós o somos são uma minoria muito pequena e com pouca influência nos demais.

Principalmente, a ideia do Islão moderado e extremista engana por fazer parecer que a solução para o terrorismo é reduzir o fervor da crença quando, na verdade, exige uma conversão radical entre dois tipos de ideologia. Por um lado, o das ideologias que impõem valores que visam perpetuar a ideologia e preservar o poder de alguns em prejuízo de todos os outros. É o que acontece na generalidade das religiões, em regimes totalitários, nos países de maioria muçulmana e nos cartéis da droga no México. Por outro lado, a ideologia da liberdade individual, que rejeita qualquer obrigação ou proibição que não sirva para prevenir restrições maiores. A que proíbe a tortura em vez de proibir ofensas a vacas sagradas, por exemplo. É para esta ideologia que convergem as pessoas informadas e que se sentem livres de contribuir para a construção da sua sociedade, mas é muito difícil converter a isto pessoas ignorantes, oprimidas, revoltadas e treinadas para não pensar criticamente.

Portanto, este não é um problema que se resolva com apelos à “moderação”. É um problema que tem de ser resolvido investindo nas próximas gerações. Em melhor educação, em escolas livres de pressões religiosas, em maior igualdade económica, mais democracia, mais laicidade. Mais liberdade. O que é muito difícil pela oposição constante de quem esteja no poder, seja a família real da Arábia Saudita, os chefes da Al-Qaeda, quaisquer líderes religiosos e até os nossos próprios políticos, sempre dispostos a aproveitar qualquer desculpa para criar leis que violam os nossos direitos alegando ser para nosso bem. A única possibilidade de conseguirmos progredir nisto é continuarmos a ser extremistas nos nossos valores de liberdade individual, igualdade de direitos, direito à educação e a condições dignas de vida. Direitos pelos quais já milhões de pessoas morreram nos últimos séculos, tal foi o extremismo com que os tiveram de defender.

1- Wikipedia, Apostasy, countries
2- BBC, Saudi blogger Badawi 'flogged for Islam insult'

terça-feira, janeiro 13, 2015

Treta da semana (atrasada): O ataque.

Resolvido o problema com o Facebook, encontrei um artigo de Marden Carvalho, no seu blog sobre coisas como Eficiência Pessoal e Espiritualismo, que aponta muitas inconsistências na narrativa oficial do ataque ao Charlie Hebdo (1). Realmente, algumas coisas já me tinham incomodado logo de início. Por exemplo, querem que acreditemos que dois homens, após uns meros meses de treino com terroristas, alcançaram tal perícia com as metralhadoras que conseguiriam matar à queima roupa dez pessoas numa sala pequena. Isto não é credível. O famoso documentário “Comando”, que contou com a participação do Governador da Califórnia, USA, demonstra claramente que os soldados maus não conseguem acertar nos bons com metralhadoras. A menos que sejam maus especiais. É isto que Carvalho esclarece. «Nas minhas pesquisas acabei descobrindo o blog Aangirfan onde o autor afirma que o atentado em Paris foi um trabalho interno, que a MOSSAD atacou Charlie Hebdo.»(1) Ora se o blog Aangirfan, da autoria de Anon, o afirma, e ainda por cima numerando vários itens e escrevendo algumas frases a encarnado, certamente é porque se trata de um facto (2).

Com esta explicação, podemos compreender outros detalhes intrigantes. Partilho aqui as minhas próprias pesquisas, feitas há pouco no sofá da sala enquanto aguardava o efeito do ibuprofeno. Primeiro, é de notar o cuidado com que os agentes da Mossad deixam falsas pistas para dar uma ideia de amadorismo e incompetência. Começam por entrar na porta errada, no número 6, antes de fingir perceber o erro e dirigirem-se ao número 10. Depois, deixam cair uma sapatilha do carro como se tivessem mudado de roupa à pressa e sem cuidado. Tudo em preparação para deixar no chão da viatura o cartão de identidade de um tal Said Kouachi, que mais tarde seria culpado, com o irmão, pelo crime.

Outra incongruência é evidente no vídeo dos jornalistas que fugiram para o telhado do edifício. Inexplicavelmente, nesse vídeo vê-se «uma pessoa com um colete à prova de balas»(1). A história “oficial” é a de que um dos jornalistas teria regressado recentemente da Síria e haveria dois coletes à prova de balas nos escritórios (3). Mas isso não é credível porque sabemos que os jornalistas nunca usam coletes à prova de balas, nem mesmo em situações perigosas como moderar o Prós e Contras. A Fátima Campos Ferreira nem sequer parece usar um espartilho à prova de faca, quanto mais um colete à prova de bala. A única explicação plausível é o homem com o tal colete ser mais um agente da Mossad, infiltrado no jornal com o propósito de vir para o telhado vestido com o tal colete e, assim, lançar a confusão em quem tenta perceber o que se passou. Os judeus sempre tiveram destas coisas. Basta ver a confusão que é o Antigo Testamento ou o que fizeram ao líder da Alemanha nos anos quarenta. Tantas foram as calúnias e histórias que inventaram que o coitado acabou por se suicidar.

Tendo fugido do local do crime e deixado na viatura a identificação incriminatória, estes agentes tiveram então de capturar os irmãos Kouachi, vesti-los, armá-los, convencê-los a assaltar um posto de abastecimento, a dar uma entrevista telefónica confessando o crime e depois a resistirem à polícia até à morte. É evidente que tal domínio da vontade e dos actos de terceiros não está ao alcance da pessoa comum. Só organizações secretas como a Mossad é que têm acesso aos recursos necessários para este tipo de manipulação, como raios electromagnéticos de controlo mental ou enguias de Ceti. Outro dado importante, como aponta Marden Carvalho, é o de que «O primeiro carro abandonado pelos terroristas foi em frente de um restaurente (judaico) Kosher.» Coincidência? Claro que não. Eles abandonaram o carro porque estavam com larica e foram rapidamente almoçar antes de continuar a fuga.

Apesar das evidências sólidas e incontestáveis de que foi Israel quem cometeu estes atentados, talvez o leitor se questione acerca do motivo. Esta parte é fácil de compreender considerando a história que urdiram. Os protagonistas são dois irmãos, órfãos de um casal argelino. Crescem num bairro violento de Paris, conhecem jihadistas franceses, treinam no Iémen e atacam um jornal satírico francês financiados pela Al-Qaeda. Qual é a única reacção instintiva e emocional que as pessoas podem ter perante isto? Obviamente, odiar os palestinianos. É esse o plano de Israel.

Há certamente quem queira contestar as minhas conclusões, ofender as minhas crenças e impor-me a sua verdade. Não posso admitir esses actos inaceitáveis de superioridade cultural. Citando o Professor José Carlos de Paula Carvalho, trata-se «daquilo que Pierre Bourdieu chama “violência simbólica”, que é o “colonialismo cognitivo” na antropologia de De Martino»(4). E contra os vossos raios electromagnéticos estou precavido com o meu chapéu de folha de alumínio.

PS: Não sou Charlie. Estou muito aquém da coragem e perseverança daquela malta. Mas talvez, quando for grande, fique mais perto disso. Entretanto, queria deixar um pedido a todos aqueles que se sentem ofendidos por bonecos, ideias, expressões ou palavras. Deixem de ser estúpidos.

1- Marden Carvalho, Tem coisas que não encaixam no atentado contra a revista Charlie Hebdo.
2- Aangirfan, PARIS PSYOP - INSIDE JOB - MOSSAD ATTACKS CHARLIE HEBDO
3- The Irish Times, Charlie Hebdo: ‘People were on the floor, huddled, sobbing’
4- José Carlos de Paula Carvalho, Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das organizações educativas(pdf, obrigado pelo link no Facebook).

domingo, janeiro 11, 2015

Treta da semana (atrasada): Impossível.

Demonstrando mais uma vez a extensão do seu conhecimento científico, Orlando Braga argumenta que «A evolução darwinista é impossível quando é concebida como “evolução aleatória e não guiada”, porque se não existe informação prévia (se não existir uma condução do processo que pressupõe a existência de informação), as hipóteses de algo acontecer sem essa informação tornam a evolução darwinista impossível.»(1). Há aqui alguns detalhes que não estão inteiramente correctos.

Em primeiro lugar, a evolução não é concebida como “evolução aleatória e não guiada”. Em biologia, o termo refere-se à variação da distribuição de características hereditárias numa população conforme novas gerações substituem as anteriores. O que se propõe ser mais ou menos aleatório são os mecanismos que influenciam a evolução de uma população. No caso da selecção artificial, a evolução é guiada pela acção propositada dos criadores de animais ou plantas. No caso da selecção natural, a evolução é guiada pelo efeito das características herdadas na probabilidade de reprodução de cada organismo. Noutros casos, o acaso pode ser muito importante. Quando um pequeno grupo de escaravelhos chega a uma ilha num tronco à deriva, muitas características da nova espécie de escaravelho que existirá nessa ilha uns milhões de anos mais tarde serão determinadas por acontecimentos fortuitos como cruzarem-se aqueles escaravelhos em vez dos outros que deambularam pelo areal sem encontrar parceiro. Com populações pequenas ou características sob fraca pressão selectiva o acaso é importante, mas com populações grandes e forte pressão selectiva este tende a diluir-se e é a tendência média que domina.

Em segundo lugar, o que Braga diz ser impossível seria meramente improvável se fosse um acontecimento único. E nem isso é, devido ao número de repetições. Braga dá «como exemplo a procura do tesouro na ilha: ou temos informação prévia da área onde pode estar o tesouro, ou prosseguimos escavando a terra de forma aleatória (sem informação). No segundo caso, a probabilidade de encontrarmos o tesouro é muito baixa se a ilha for grande.» Isto depende de quantos formos. A probabilidade de uma dada formiga, algures em Portugal, encontrar o açucareiro que deixei aberto na tenda é muito baixa. Mas como há muitas formigas, a probabilidade de alguma o encontrar é muito alta. Passa-se o mesmo com as mutações benéficas. Individualmente, têm uma probabilidade baixa, mas a evolução é um processo que ocorre em populações e ao longo de muitas gerações.

Finalmente, Braga alega que a evolução é impossível porque «não existe informação prévia» para se encontrar o tal tesouro. Mas a evolução não procura um tesouro ou qualquer alvo predeterminado. Em retrospectiva, sabemos que estes quatro mil milhões de anos de evolução fizeram uma de muitos milhões de linhagens desembocar no Homo sapiens. Mas é presunção crer que era esse o plano inicial e que a evolução andava à procura deste tesourinho deprimente. Para mais, a pesquisa não precisa guiar-se apenas por informação “prévia”, como um mapa do tesouro. Pode ser guiada por qualquer coisa que, a cada passo, indique se está “mais quente” ou “mais frio”. É o que faz a selecção natural. Se uma mutação for desfavorável tende a ser eliminada. Se for favorável tende a propagar-se pela população. É isto que, ou vai moldando a população num aperfeiçoamento contínuo de características que, a cada momento, conferem vantagens competitivas, ou então leva à sua extinção. Este último é, de longe, o desfecho mais comum. Mas isto nem tem uma direcção fixa nem tem um tesouro em mente e muito menos precisa de um mapa. Vai-se espalhando por todas as soluções de sucesso, dos vírus à baleia azul e a caldeirada toda que há pelo meio.

Braga alega que também o teorema de Gödel demonstra que a “evolução darwinista” é impossível. Infelizmente, a sua explicação não esclarece nada: « um computador suficientemente complexo para simular o trabalho cerebral [...] não permite calcular, em um tempo t, o que ele (computador) será num tempo t+1». O teorema de Gödel mostra que qualquer sistema formal suficientemente expressivo admite proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas a partir dos axiomas desse sistema formal. Isto é importante para alguns problemas lógicos, matemáticos ou de computação mas não tem nada que ver com a teoria da evolução. Nem é relevante para a formalização matemática da teoria nem é preciso os escaravelhos saberem que o teorema de Goodstein sobre sequências de números naturais não pode ser demonstrado na álgebra de Peano para que os mais camuflados se escapem melhor dos predadores.

Braga conclui alegando que «Não se quer dizer que a teoria de Darwin seja falsa; o que se quer dizer é que é impossível.» A teoria de Darwin está, em alguns aspectos, ultrapassada. Talvez a teoria da evolução que temos hoje, que uniu a biologia molecular à genética de populações, um dia venha a ser substituída também. Até agora demonstrou ser, de longe, a melhor explicação para a origem das espécies mas nunca se sabe o que o futuro reserva. No entanto, não recomendo ao Orlando Braga que conte para já com o dinheiro do prémio Nobel.

1- O. Braga, A evolução darwinista é impossível


PS: Desta vez não posso por o link no Facebook. Por alguma razão, o Facebook decidiu que o meu nome não é verdadeiro e suspendeu a minha conta. Talvez a coisa se resolva em breve. Ou talvez não...

PPS: O problema com o Facebook já está resolvido.

quarta-feira, dezembro 31, 2014

Treta da semana (atrasada): Umbiguismo.

Algumas pessoas, raras, são tão geniais e têm um pensamento tão avançado para a sua época que muitos dos seus contemporâneos, não conseguindo alcançar tal visão, as julgam palhaços. Pessoas como Copérnico, Galileu, Darwin e Batatinha, por exemplo. Gustavo Santos é mais um nome a acrescentar a esta lista. É difícil perceber isto à primeira porque Gustavo Santos é um homem modesto. Logo no seu perfil, pede aos leitores «Não me chamem "famoso" ou "vedeta da televisão"»(1) e apresenta-se simplesmente como «um homem que sabe quem é e o que anda aqui a fazer». Parece pouco, mas as aparências enganam. O pensamento de Santos não só é revelador, avassalador e revolucionário como toca várias áreas distintas daquilo que preocupa a humanidade.

Durante milénios, pessoas relativamente inteligentes como Platão, Kant e Mill procuraram soluções para o problema de avaliar actos, guiar decisões e encontrar a melhor forma de viver. Pelo caminho inventaram conceitos confusos como virtudes, deveres, imperativos, utilidades, contratos sociais e noções de justiça. Uma enorme baralhada que não ajuda ninguém. Num rasgo de genialidade, Gustavo Santos revela-nos que a resposta esteve sempre ali, mesmo à nossa frente. No umbigo. «O amor da minha vida sou eu, ponto final parágrafo […] O amor da tua vida és tu.»(2) «Ser feliz é saber quem somos e respeitar o que desejamos, materializando. É sermos a pessoa mais importante da nossa vida»(3).

Também na etimologia o trabalho de Gustavo Santos sobressai. A palavra “presente”, que muita gente julgava vir do Latim praesum, do “é perante”, afinal separa-se em “pré” e “sente”. Portanto o presente, afinal, é o que ocorre antes de sentirmos, que Gustavo Santos separa do agora que é o que ocorre depois de sentirmos (2). Por exemplo, o período de aproximação rápida entre o martelo e o polegar é o presente, enquanto o agora é o período durante o qual o incauto martelador grita “F***-se! M**** para isto! Quem me mandou a andar a pregar coisas à p*** da mobília! C******!” É supreendente como a análise etimológica cuidada e bem fundamentada dá novos sentidos à nossa vida.

Mas o génio de Gustavo Santos não se limita à ética ou a questões linguísticas. Mostra-nos também como terminar, de uma só vez, com todo o sofrimento da humanidade. A doença, a fome, a miséria, as guerras, o ódio e a sede de poder assolam muitos milhões de pessoas tornando a sua vida num inferno. Não é preciso que assim seja e, graças a Gustavo Santos, já sabemos como resolver este problema. «Descobri que era um homem feliz quando percebi que a minha felicidade apenas dependia de mim»(4). É esta mensagem importante que temos de transmitir a toda a gente. A quem tiver perdido a casa e a família num bombardeamento e esteja agora a fugir de uma guerra. A quem tenha os filhos a morrer de sede. Aos órfãos esfomeados e abandonados e a quem a vida se esvai em pus e sangue numa cubata. A todos esses, que se julgam infelizes vítimas das circunstâncias, temos de dizer que a felicidade só depende deles. Que a fome não é uma tragédia. É uma oportunidade. Que a guerra não é um mal. É um desafio. Que se a morte dos filhos os entristece é porque, incautos, não decidiram amar-se a si próprios acima de tudo.

Gustavo Santos diz-se um “life coach”, alguém que treina os outros para viver. Na sua modéstia, aponta que apesar de ter «formação segundo as normas da ICF, International Coaching Federation», o que lhe dá «verdadeiras habilitações para trabalhá-lo com as mais variadas pessoas [...] é o facto de ser um homem verdadeiramente feliz.»(4) E qual é o segredo dessa felicidade? Que ideia invulgar permite a Gustavo Santos dizer tanta coisa genial sem corar de vergonha? É talvez a mais importante de todas, e aquela que dá a Gustavo Santos o lugar merecido no fecho de mais um ano de tretas:

«Tudo o que vale a pena nesta vida é aquilo que sentimos; o que pensamos [...] é mau entretenimento.»

Sigam o conselho de Gustavo Santos. Não pensem. Sintam apenas. Senão, se se metem nesse mau entretenimento que é pensar, não sentirão a genialidade de Gustavo Santos e ainda podem acabar confundindo-o com um palhaço. Até par ao ano, e bom 2015.

1- Gustavo Santos, Arrisca-te a viver, perfil.
2- Gustavo Santos, Quanto tempo esperarias pelo amor da tua vida?
3- Revista Progredir, Entrevista a Gustavo Santos
4- Gustavo Santos, Arrisca-te a Viver.
5- Gustavo Santos, Arrisca-te a Viver, Coaching.