O plano.
Está disponível para consulta pública o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025 (1). Começa logo por uma confusão grave que inquina toda a proposta: «O direito à igualdade e à não discriminação é um alicerce da democracia portuguesa». O “direito à igualdade” é um absurdo. Os nossos direitos são o outro lado dos deveres que têm para connosco. O direito à vida é a outra face do dever de não nos matarem, o direito à educação é a do dever de garantir um ensino universal e o direito à saúde do dever de garantir assistência médica para todos. O direito à igualdade nem se percebe o que possa ser. Que dever têm outros que eu seja igual? E igual a quem? Ao Cristiano Ronaldo? À Sara Sampaio? A expressão “direito à igualdade” não é sequer inteligível. Têm é o dever de me deixar ser diferente.
O que é um alicerce da democracia é a igualdade de direitos. Porque os deveres do Estado são iguais para todos, temos direitos iguais na nossa relação com o Estado e o Estado democrático não pode discriminar por características como sexo, raça, religião e afins. Por isso não é legitimo o Estado proibir-me de casar com um homem só por eu ser homem. Nem em nome da igualdade de género ou de quotas de representatividade. Se naquelas circunstâncias é permitido a uma mulher casar-se, então também tem de ser permitido a um homem. Mas esse dever de não discriminar pelo sexo é um dever do Estado. Não é dever de cada um de nós, e o homem com quem eu possa querer casar tem o direito de recusar casar-se comigo por eu ser homem, ou por ser branco, ou por ser ateu ou o que for. Nós temos alguns deveres por igual para com todos os outros, como o dever de chamar o 112 se vemos alguém ser atropelado. Mesmo que seja o André Ventura. Mas na vida pessoal esses deveres são excepção e não a regra. Quem tem por regra o dever de não discriminar é o Estado. O cidadão deve ser livre de escolher como se relaciona com os outros e de gostar mais destes que daqueles. Seja por que razão for.
Isto não é apenas para implicar por terem escrito «direito à igualdade» em vez de igualdade de direitos. É um problema fundamental na proposta porque ignora que o dever do Estado não discriminar entre cidadãos refere-se a direitos e à igualdade perante a lei e não se restringe a aspectos como sexo ou raça. Como se pode ler no artigo 13º da Constituição:
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»
É um alicerce do Estado democrático que o Estado também não discrimine os cidadãos em função de crenças ou ideologias. Porque numa democracia a autoridade última é o povo e é o povo quem tem de decidir. Esse principio é claramente violado por um governo que se ponha a combater ideologias. Não importa que ideologias sejam. Tal como discordo do racismo, também discordo da astrologia, do criacionismo, da monarquia, do nacionalismo, das religiões em geral e de algumas em particular mas nunca concordaria com um plano de combate a essas ideologias ou crenças. É dever do Estado garantir que todos têm informação para perceber que essas crenças são parvas e a liberdade para as rejeitar. Mas também é dever de todos respeitar a liberdade de quem, apesar disso, opta por acreditar em parvoíces. Mesmo que seja o racismo.
Sob esta inversão de valores fundamentais, o plano contempla coisas como «contrariar e deslegitimar os estereótipos», dar formação a «pessoal docente e não docente, envolvendo também estudantes, famílias, encarregados/as de educação» e medidas de contratação que visem «a promoção de maior diversidade entre os trabalhadores». O objectivo deste plano é doutrinar os cidadãos, algo que o Estado democrático não devia fazer. E propostas como «Avaliar formas de ação positiva de promoção de maior diversidade e representatividade nos cargos de decisão política e nos cargos de assessoria política» ou «Definir um contingente especial adicional de alunos das escolas TEIP no acesso ao ensino superior» sugerem que nem se importam que o Estado discrimine se for preciso para empurrar as estatísticas. Em vez de garantir igualdade de direitos e a liberdade de cada um pensar à sua maneira, vão discriminar nos direitos para reduzir o mais possível a diversidade de opiniões.
Além do equívoco acerca dos direitos dos cidadãos e dos deveres do Estado, e o retrocesso perigoso a quando o Estado doutrinava as pessoas nas ideologias escolhidas pelo governo, algumas medidas são imbecis até no aspecto prático. Por exemplo, o tal contingente especial para alunos dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). Eu estudei em escolas dessas até ao nono ano e sei como a falta de condições materiais e humanas colocam muitos alunos em desvantagem. Não é fácil estudar quando se vive numa barraca com a avó e se tem os pais na prisão. Mas nem todas as crianças nessas escolas estão nessas condições. Eu nunca estive. E as que estão não vão beneficiar de quotas para o ensino superior porque nem vão chegar lá. A solução justa seria investir em apoio às famílias carenciadas, mais professores nessas escolas, turmas mais pequenas e medidas afins que custam dinheiro mas funcionam. É esse tipo de medidas que este plano devia propor, para que o Estado cumpra os seus deveres sem discriminar. Em vez disso propõe que o Estado tome medidas discriminatórias e se dedique a doutrinar as pessoas. É um ataque duplo aos alicerces da democracia que o plano alega defender.
1- Consultas LEX, Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025
na barraca com a avó e os pais na prisão é um caso estatisticamente raro a maioria vive nos bairros sociais e tem os pais a trabalhar ou no semi-emprego
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