O que é uma treta.
Uma treta é mais que uma afirmação falsa. Um erro, uma conclusão precipitada ou uma crença injustificada não são, por si só, tretas. Mesmo uma mentira descarada pode não ser uma treta. O que caracteriza a treta é a argumentação manhosa com a qual se tenta racionalizar uma tese que se percebe não ter fundamento adequado. Mesmo quando não é para enganar terceiros, o recurso a estratagemas argumentativos para disfarçar o disparate implica desonestidade intelectual. É esta aldrabice que torna a treta muito mais interessante que a mera falsidade.
Em geral, a motivação para conceber uma treta é a necessidade de justificar uma afirmação. Sem isso não vale a pena dizer tretas. Por exemplo, um crente a quem baste a sua fé para acreditar num deus não inventa tretas. Diz que acredita e se alguém perguntar porquê encolhe os ombros. É só se quer dar ares de racionalidade que precisa da teologia. Argumentos ontológicos, o problema lógico do mal e essas coisas são um embrulho enfeitado para disfarçar o vazio da caixa. Assim, uma forma de topar a treta é notar que aquilo que faz uma pessoa crer no que defende não é o que tenta parecer que conduz a essa conclusão. Deve haver muito poucos cristãos que se tornaram crentes pela leitura de um argumento ontológico. Isso é uma racionalização a posteriori. Como é regra nas tretas, a teologia só serve para pintar o alvo à volta de onde a bala calhou.
No entanto, na prática pode ser difícil determinar se a motivação e a justificação estão desalinhadas. O astrólogo pode estar deliberadamente a aldrabar quando invoca a influência dos astros e o simbolismo das constelações para fundamentar prognósticos. Mas também pode ser ele próprio vítima da treta que lhe pregaram. Por isso é melhor examinar a consistência das justificações. Um argumento martelado até dar a conclusão desejada naquele caso específico tende a ficar demasiado torto para servir fora desse âmbito restrito. Por exemplo, o astrólogo argumenta que a direcção em que estava um planeta quando nascemos é importante por aquilo que o planeta e as constelações simbolizam. Mas isso faz esperar que a direcção do crucifixo na parede, da igreja mais próxima ou dos sinais de trânsito nas redondezas também sejam relevantes para traçar o horóscopo, porque todos esses têm valor simbólico. Por esta fragilidade dos argumentos manhosos a treta exige compartimentalização. O que se aplica a isto não se aplica àquilo. Isto pode ser fácil de perceber usando a mesma justificação noutras conclusões. Por exemplo, aplicando os mesmos argumentos de fé em religiões diferentes.
A atractividade da treta vem de imitar a forma como aprendemos quase tudo. O nosso forte é aprender comunicando, sem que cada um tenha de descobrir por si aquilo que os outros já sabem. Basta que nos digam o que é verdade e que o justifiquem de forma minimamente adequada para aquele propósito. Não queremos um doutoramento em matemática só para aprender a fazer uma conta. Mas esta atitude de poupar trabalho ficando pela justificação superficial desencoraja a análise crítica de inconsistências. A mesma pessoa pode defender que se criminalize o discurso racista porque este nega que alguns seres humanos são pessoas, que se legalize o aborto porque um feto humano não é pessoa e por isso não tem direito à vida, e que se proíba a eutanásia de cães vadios porque apesar de não serem pessoas têm o direito à vida. E pode defender isto sem nunca lhe ocorrer que as justificações se contradizem. Detectar tretas exige contrariar esta tendência de guardar ideias em gavetas separadas.
Além deste problema, o nosso cérebro está adaptado para tomar decisões rápidas. O que faz sentido. Se ponderarmos demoradamente todas as decisões que tomamos não conseguimos fazer nada. Mas a consequência disto é exigir alguma disciplina naquelas situações em que se justifica adiar a decisão e examinar alternativas. Por exemplo, se perguntarmos a várias pessoas se devemos ter um serviço público de veterinária para atender gratuitamente animais doentes ou feridos, muita gente vai logo responder. Uns que sim e outros que não. Perguntados porquê uns poderão dizer que os animais também têm direitos e outros que os recursos limitados devem ser gastos em humanos, reforçando a posição inicial e escavando cada vez mais a trincheira que dificulta perceber os prós e contras de cada opinião.
Outra peça importante neste processo de compartimentalização, entrincheiramento e racionalização é o conceito vago. “Energia” tem um significado rigoroso em física mas pode ser usado para significar qualquer coisa em muitas tretas. As vibrações também. O conceito de “saber” também pode ser tornado tão vago que simplesmente ter fé numa crendice passa a ser uma “forma de saber”. Na nova justiça social, “identidade” deixa de ser aquilo que caracteriza cada indivíduo como único e passa a ser a mera pertença a um grupo, como na identidade de género ou raça. “Comunidade” agrupa pessoas que têm muito pouco em comum, como lésbicas, gays e transgénero. Até o termo “igualdade”, que devia ser claro, é usado de forma confusa em expressões como “igualdade de género”. A ideia de género serve precisamente para distinguir entre grupos como masculino e feminino e se queremos igualdade nestes grupos temos de especificar em quê. Essa omissão torna difícil interpretar mensagens como, por exemplo, a da organização UN Women denunciando que 19% de jornalistas assassinados em 2017 eram mulheres (1). Exigir clareza nos conceitos torna-nos pouco populares e aumenta a probabilidade de sermos bloqueados no Facebook mas é fundamental para nos protegermos de tretas.
Amanhã às 21:30 vou participar nos diálogos COGITO (2) e deixo este texto como mote para a conversa. Talvez motive alguns leitores a participarem com críticas. Mesmo que não tenham paciência para me ouvir, visitem a página porque há lá conversas interessantes. Parabéns aos organizadores por esta iniciativa e muito obrigado pelo amável convite.
1- UN Women, 3 de Maio 2018
2- COGITO, Diálogos
Já tinha saudades de vir aqui ao ktreta. Se um dia quiseres escrever um livro sobre tretas, um assunto até muito na moda, eu compro um. Abraço!
ResponderEliminarSim, está nos planos para os próximos anos. Vou cobrar a promessa :)
EliminarBom texto. Parabéns.
ResponderEliminarah isso é uma treta? acabou a temática coronavirus agora que a malta estava mais necessitada
ResponderEliminar+1
ResponderEliminarExcelente, como sempre.
De facto seria muito interessante uma compilação dos melhores textos (ao critério do autor), como o presente, publicada em livro. O difícil seria selecionar. Eu comprava, sem dúvida. E vários exemplares para oferecer.