Treta da semana (atrasada): a cultura da violação.
No Jornal de Notícias, Mariana Mortágua escreveu:
«A cultura da violação não vive apenas da imagem agressiva e violenta que o termo convoca. O piropo que não pedimos, o assédio light, a insistência desconfortável, o gesto não consentido partem todos do mesmo princípio. O princípio que o "não" de uma mulher vale menos que a vontade ou desejo de um homem. E que ao homem é dado o direito de expressar essa sua vontade, mesmo que isso signifique ir contra o direito de uma mulher se sentir incomodada, de não querer ser alvo dela.» (1)
Segundo Mortágua, tudo isto é violação e a diferença está apenas no grau. «Do tipo insistente do bar à oferta sexual que nunca pedimos ou desejámos. Do estranho que nos toca ao amigo que nos beija sem que queiramos, ou ao sexo não consentido.» Mas não é tudo violação. Há uma diferença fundamental entre a oferta que não pedimos e uma relação sexual sem consentimento. A dificuldade em perceber onde deve acabar a liberdade de uns para que outros também sejam livres tem enfraquecido a esquerda política, desviando-a da luta pela liberdade e pela justiça e fragmentando-a numa salganhada de caprichos.
Consideremos duas situações hipotéticas. Numa, tocam trombone à noite e alguém, incomodado, diz para não tocarem. Noutra, dois homens beijam-se na rua e outro, incomodado, diz para não se beijarem. Assumindo ser óbvio que estes “não” não valem o mesmo, o interessante é pensar porquê. Dizer que temos o direito de beijar mas não o direito de tocar trombone à noite é uma justificação ilusória que apenas inventa um “direito” sem dizer de onde vem. É um erro comum julgar que os direitos são um bom ponto de partida. Não são. Não é por cair ao mar que ganho o direito a uma bóia. É só se alguém por perto tiver uma bóia a jeito que o seu dever de me ajudar se configura no meu direito à bóia. É do dever de cada um que vêm os direitos dos outros.
Tocar trombone à noite é condenável por violar o dever de não impor incómodo a terceiros. É um dever ético fundamental que limita a liberdade da cada um para que não restrinja a do outro. Mas o incómodo de quem vê o beijo, por muito grande que seja, vem da liberdade do incomodado. Se for adulto e não tiver problemas mentais, é responsabilidade sua decidir que não é nada consigo, ficar feliz pelos namorados ou ficar escandalizado porque aquilo é pecado. Seja como for, o resultado não é imposto por quem se beija. É, literalmente, o direito do outro se sentir incomodado. Só se causassem transtorno a alguém que não fosse responsabilizável, como uma criança ou um doente mental, é que teriam o dever moral não se beijarem à sua frente.
Se me ameaçam, agridem ou me forçam a ter relações sexuais impõem restrições à minha liberdade e, por isso, violam o dever ético de não me fazer essas coisas. E se eu fosse criança ou doente mental teriam de ter um cuidado adicional com o que me fizessem porque não me seria imputável a responsabilidade pelo exercício da minha liberdade. Mas, sendo eu adulto e não tendo doenças mentais óbvias*, fazer-me propostas que não peço, insistir quando digo não ou dizer que tenho um rabo jeitoso não me restringe a liberdade e qualquer incómodo que eu sinta será responsabilidade minha. É essa a diferença entre o que vai «Do estranho que nos toca ao amigo que nos beija sem que queiramos, ou ao sexo não consentido», coisas que impõem objectivamente restrições à liberdade do visado, e o que vai «Do tipo insistente do bar à oferta sexual que nunca pedimos», que não é nada que restrinja a liberdade a um adulto normal.
Os “não” não valem mais ou menos em função do sexo de quem os diz. Mas valem mais ou menos em função do que exigem dos outros e da razão pela qual o exigem. O “não quero ter relações sexuais” vale muito porque forçar alguém a ter relações sexuais é subordinar a sua liberdade aos desejos de outrem. Não é legítimo tirar liberdade a alguém só porque se quer. Mas, precisamente por isso, eu dizer “não quero que me chamem imbecil, ou “não quero que olhem para o meu rabo”, ou “não quero que me convidem para ir ao cinema” não valeria de nada porque, nesse caso, estaria eu a exigir dos outros que subordinassem a sua liberdade à minha vontade. Tenho todo o direito de me incomodar com estas coisas mas ninguém tem obrigações por isso.
Infelizmente, na nossa sociedade há mesmo uma cultura de violação. Não no sentido de violação sexual, porque é consensual a condenação das relações sexuais sem consentimento. Mas há uma cultura de violação de liberdades em favor de caprichos e sensibilidades. Há imensa gente conivente, cúmplice e culpada de violar a liberdade individual de decidir o que é privado e o que é público, seja nas revistas de coscuvilhice seja pelas fotografias de menores que constantemente publicam na Internet. Há muita gente a pedir a criminalização do racismo, a ostracização de xenófobos e a repressão de ideias das quais discordam, violando o seu dever de respeitar a liberdade de consciência dos outros. Esse dever não desaparece só porque nos incomoda o que os outros pensam. Mortágua propõe mais uma dessas violações. Agrupar na mesma categoria de acto condenável a proposta indesejada e as relações sexuais sem consentimento altera a fronteira entre as liberdades de uns e de outros. Em vez da liberdade de cada um só parar na liberdade do outro, Mortágua quer que pare logo naquilo que lhe incomode. Ou seja, quer subordinar a liberdade dos outros à sua vontade. O que é irónico porque, no fundo, esse “direito ao não” que Mortágua reclama acaba por ser a mesma violação que Mortágua diz opor: a violação da liberdade de uns só porque outro quer.
* Que eu saiba.
1- Jornal de Notícias, O nosso direito ao "não"
Ludwig,
ResponderEliminarTalvez seja impressão minha, ou até falta de comprensão da minha parte, mas parece-me que cada vez mais ouço falar de direitos e muito poucas vezes (nenhumas até) de deveres.
Parece-me que acertaste em cheio ao sugerir que o problema é a falta de equilibrio.
Há uma passagem bastante interessante nos Evangelhos (não que eu seja muito religioso, mas as boas ideias são sempre boas independentemente da sua origem): Mc. 2, 27: "O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado". Isto para dizer e defender que uma lei tem de ser de forma a servir a sociedade; quando as leis não são uteis, a sociedade tende a simplesmente ignorar. E mais uma vez, pode ser impressão minha e até falta de conhecimento, mas fico demasiadas vezes com a ideia de que os nossos legisladores não têm em conta este conceito que até parece básico.
Julgo que falta reflectir numa questão que será o fundamental da posição da Mortágua: se o assédio é disruptivo, limita a liberdade individual e a autodeterminação, então esse assédio deve ser limitado. Um exemplo: num bar abordo uma mulher e pergunto-lhe se posso pagar-lhe uma bebida. Ela não me pediu nada, não olhou para mim, ignorava a minha existência. Deve ser isto punido, limitado? Obviamente que não, tal como o Ludwig diz. Se a mulher se sentir incomodada é uma escolha dela. Mas se ela me diz não e eu insisto e me recuso a aceitar a sua autodeterminação, então isso deve ser limitado. Especialmente se isto se passar numa situação de força, como no local de trabalho ou se for uma menor...
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