sábado, março 18, 2017

Treta da semana (atrasada): o fascismo.

Ao contrário de muitos “ismos”, “fascismo” não refere uma ideologia concreta. Não há um Marx, Smith ou Paulo do fascismo que dê algum fundamento conceptual à doutrina, como há no socialismo, capitalismo ou cristianismo. Na origem do fascismo está o manifesto da “Liga Italiana de Combate”, fundada por Mussolini em 1919, mas as exigências desses «fasci italiani di combattimento» não tinham nada daquilo a que hoje chamamos fascismo. Exigiam coisas como o direito de voto para as mulheres, o salário mínimo e uma jornada de trabalho de oito horas(1). O que “fascismo” agora refere é uma combinação avulsa de truques que alguns ditadores usaram para agarrar o poder. Nacionalismo, repressão da oposição política, militarismo, racismo, culto da personalidade e afins. Dos «fasci» originais só sobra o nome. Como todas as definições de “fascismo” vêm dos seus opositores, o termo é apenas um rótulo depreciativo para condenar certas atitudes de direita. Não refere qualquer ideologia que alguém realmente defenda.

Isto é relevante porque estes elementos soltos não são igualmente importantes nem são exclusivos do fascismo. Por exemplo, a Coreia do Norte não é fascista, tendo uma economia controlada pelo Estado. Mas do resto tem tudo. Tem nacionalismo, repressão autoritária, culto da personalidade e até racismo e xenofobia, e em doses maiores do que no fascismo de Salazar. Mas eliminar o racismo e a xenofobia, que muitos apontam como o pior do fascismo, deixaria a Coreia do Norte na mesma porque o maior problema é o totalitarismo. Quando castigam a oposição ao regime prendendo toda a família do opositor em campos de concentração durante três gerações, não será por serem menos racistas que se vai notar melhorias.

Em discussões a propósito da rábula da palestra (2), tenho assistido também a uma confusão frequente entre o fascismo e a ideia do fascismo. Eu sou contra a monarquia. É inaceitável atribuir poder a alguém só por ser filho dos seus pais. Mas quero uma sociedade livre e essa tem de respeitar liberdades como a de debater publicamente os méritos e deméritos da monarquia. O regime em si não é aceitável mas a ideia e a sua defesa têm de ser admitidas porque pertencem àquela esfera de liberdades onde o indivíduo é soberano. Muitos afirmam opor o fascismo mas, na verdade, o que opõem é a liberdade de debater o fascismo, escapando-lhes até a ironia de cometerem uma das injustiças mais características daquilo que alegam opor.

Preocupa-me também a incapacidade de compreensão entre os que dizem opor o fascismo e aqueles que rotulamos de fascistas. Especialmente nos extremos, cada vez mais populosos. A extrema esquerda académica vive num mundo de narrativas fantásticas sobre a “violência simbólica” e a “interseccionalidade” onde se discute o privilégio do homem branco como o maior flagelo social, ignorando que é o dinheiro que explica quase toda a desigualdade. Como nem com as mais elaboradas teorias feministas conseguem convencer homens brancos sem dinheiro nem emprego de que deviam ter vergonha do seu privilégio, os guerreiros da justiça social cortam relações e, imaginando a sociedade como um grande departamento de ciências da comunicação, pretendem matar o fascismo impedindo a divulgação das suas teorias e narrativas.

O efeito é o contrário do pretendido. Não adianta impedir essas conversas porque o fascismo não nasce em palestras ou teorias. Vem da tripa. Vem do que sentem desempregados e precários quando a igualdade de género na administração de empresas preocupa mais políticos do que problemas mais sérios e que afectam mais gente. Ou quando vêem um vídeo de marginais africanos a espancar um segurança em Estocolmo e ouvem rumores de que as coisas estão ainda piores mas “eles” ocultam as notícias. Impedir pessoas de falar não tira nada que faça falta ao racismo. Só confirma estes medos e alimenta a revolta de quem se sente injustiçado. E essa é a parte mais perigosa. Se dialogassem com as pessoas que rotulam de fascistas, em vez de se gabarem de as “limpar” das listas de contactos, perceberiam que ninguém adere ao fascismo como opção ideológica. É um processo gradual de revolta contra injustiças, reais ou imaginárias, como a corrupção, a destruição da nossa indústria, o controlo estrangeiro de Portugal, os imigrantes que roubam postos de trabalho e cometem crimes, o uso do poder para impor umas ideologias e reprimir outras e assim por diante. É isto, e não as palestras, que pode levar as pessoas ao ponto de aceitarem um ditador para acabar com as injustiças.

O fascismo não é uma ideologia coerente escolhida pela virtude da sua argumentação. É só o nome que damos a um conjunto desagradável de preconceitos e reacções viscerais. Para impedir que voltem a aproveitar-se disto para nos governar não podemos enveredar pela repressão coerciva destes sentimentos. Ninguém se cura de uma fobia por ser multado e legislar contra coisas como o racismo faz tanto sentido quanto criminalizar o medo de palhaços. Além disso, este fascismo surge da percepção de injustiça e perseguição. Qualquer tentativa de o reprimir só o alimenta e legitima o autoritarismo que queremos evitar. Temos também de quebrar o hábito de tratar estas pessoas como se vivessem em cavernas. Políticas de imigração, trabalho, igualdade de género e afins levantam problemas complexos, de facto e de valor, e mesmo quem tenha ideias erradas merece perceber o erro em vez de levar só com o carimbo de reaccionário ou fascista. Num regime democrático, pode-se manter o poder ignorando minorias. Mas para acabar com um regime democrático não é preciso maioria. Basta uma minoria suficientemente motivada e que sinta não ter nada a perder em mandar tudo abaixo. Em suma, é preciso diálogo. Não é retórica da treta, nem sermões, nem slogans parvos ou gritaria. É preciso diálogo racional. O que exige dos participantes que fundamentem bem o que defendem e é arriscado para quem tem pés de barro. Daí a relutância de muitos em meter-se nisso. Mas é a única medida que nos pode safar. As alternativas, seja a de ignorar seja a de reprimir, já a história demonstrou que não funcionam.

1- Wikipedia, Fascist Manifesto
2- Treta da semana (atrasada): a palestra.

16 comentários:

  1. MUTAÇÕES ALEATÓRIAS: EVOLUÇÃO OU CORRUPÇÃO?

    Dois interessantes estudos científicos recentes corroboram inteiramente a ideia criacionista de que o genoma não está em evolução mas antes em progressiva deterioração.

    A Bíblia quando ensina que por causa do pecado o ser humano e toda a criação ficaram sujeitos à corrupção. À luz desta ideia, as mutações devem ser compreendidas como evidência de degeneração e não como prova de evolução.

    O que é que efetivamente se observa?

    O primeiro estudo, de resto amplamente confirmado por muitos outros que o precederam, mostra que as mutações aleatórias são cumulativas e degenerativas causando doenças e morte. O cancro é, em boa medida, resultado de mutações aleatórias.

    Logicamente, podemos perguntar: se o genoma humano tivesse milhões de anos,como os evolucionistas especulam, qual o efeito de milhões de anos de acumulação de mutações aleatórias?

    O segundo estudo permite advinhar a resposta, na linha do que os criacionistas têm escrito sobre a entropia genética.

    Embora os evolucionistas (incluindo o Ludwig) compreensivelmente não gostem da ideia entropia genética, por ela tornar inviável a teoria da evolução por mutações aleatórias e seleção natural, a verdade é que um estudo recente confirmou que os mamutes se extinguiram por causa da entropia genética, tendo a acumulação de mutações conduzido a um "genomic meltdown".

    Como bem se compreende, estudos como estes, associados a outros que confirmam que o suposto "junk-DNA" desempenha afinal importantes funções no genoma, não sendo vestígio sem função de milhões de anos, de evolução, longe de refutarem a Bíblia, corroboram o seu ensino sobre a criação super-inteligente seguida de corrupção e morte (v.g. Génesis 1-5).

    As observações científicas são exatamente as mesmas para criacionistas e evolucionistas.

    Os primeiros interpretam-nas à luz da Bíblia, ao passo que os segundos interpretam-nas com base na filosofia naturalista ateísta.

    A questão fundamental prende-se com saber qual dessas interpretações melhor permite compreender todos os factos efetivamente observados.

    Esta pergunta é importante, porque a origem da vida por acaso ou a transformação de um género noutro diferente e mais complexo nunca foram efetivamente observados, sendo apenas uma especulação naturalista e ateísta.

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    2. Criacionista,


      Sobre o primeiro artigo, ao contrário do que indica, a notícia nada diz sobre o cancro ser o resultado de mutações cumulativas e degenerativas. O que está escrito é algo mais do que conhecido: o cancro resulta de problemas que ocorrem durante a mitose celular, e até se conhecem bem os mecanismos celulares que o combatem e garantem que não temos ainda mais casos de cancro. O que é novidade, é dizer que a maioria dos cancros resultam deste processo.
      É bastante curioso, que sendo os seres vivos resultado de engenharia sobrenatural, que exista tal possibilidade… claramente o “engenheiro” cometeu algum erro pelo caminho!….

      Quanto ao segundo artigo, também nada de novo: há muito que se conhece o conceito de população mínima viável ou efeito de gargalo, sendo a população mínima média de 4169 indivíduos.
      Talvez o Criacionista consiga, recorrendo à Bíblia, pois claro, explicar como é possível que Adão, Eva e os respectivos filhos e filhas pudessem constituir uma população viável: é que pela Bíblia, e de acordo com o que está no artigo que referiu, há muito que devíamos estar extintos!… Mas não estamos. E pior do que isso: convém perceber que não pode usar um estudo para provar e refutar a mesma tese!

      Em resumo, creio que o caro criacionista sofre do chamado “efeito ilusório da verdade”!

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  2. Isso era tudo muito lindo se as mutações geneticas espontaneas durante a vida que podem dar origem a cancro fossem propagadas à descendência, o que não é o caso. Além disso, uma entropia genética deveria implicar que as pessoas fossem cada vez mais doentes, mais pequenas, menos inteligentes e vivessem menos anos. A realidade é o oposto disto.

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  4. Gosto das reflexões do senhor Ludwig Krippahl. Que pena que ele não poste mais com tanta frequência. Espero que o blogue não caia no esquecimento.

    P.S.: Desculpa pela confusão, acabei postando duas vezes. :)

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  5. É verdade. O homem anda preguiçoso. ...

    Como é snr L.K. ?

    É necessário contratar uns capangas para o incentivar?

    Também se arranja.

    Toca a trabalhar.

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  9. Ele também pode estar sem tempo. Fiz uma pergunta em outro post e ele não respondeu.

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  10. Ó Ludwig, mas não houve fascismo nenhum com Salazar. Aliás, o líder fascista de então, Rolão Preto, foi obrigado a exilar-se. Seria mais tarde condecorado no pós-25A por Mário Soares...

    Um fascista é um revolucionário, como expões no início do teu texto. Ora Salazar era um conservador...

    Ana Pedro

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  11. Sousa,

    «Toca a trabalhar.»

    Sim, tem sido mais isso.

    Se quiseres ver o que tenho feito, aqui está um exemplo:

    http://aa.ssdi.di.fct.unl.pt/teoricas.html

    E aqui outro:

    http://ba.ssdi.di.fct.unl.pt/teoricas.html

    Os lecture notes de bioinformática ainda vão a meio, mas tenciono tê-los acabados nas próximas semanas. Mas entretanto talvez já consiga recomeçar a escrever por aqui.

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  12. Ana Pedro,

    Concordo que o termo “fascismo” é pouco rigoroso. O fascismo original de Mussolini nem é hoje reconhecível como fascismo e muito do que chamamos hoje fascismo na altura chamava-se outra coisa. Mas a minha preocupação principal é com a tendência de usar o poder repressivo do Estado contra ideias das quais se discorda. Isso parece-me ser muito perigoso.

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  13. Estava a brincar. O malandro de serviço aqui sou eu....
    Abraço

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  14. Ludwig, tens razão em que reprimir certas ideias pode ser perigoso. Uma das formas de perigosidade é a que sucedeu no pós-25A: de tanto se pretender afastar a ideologia comunista, que já tinha dado os seus "frutos" em Praga e, antes, na Hungria (1958), mostrando a sua verdadeira natureza totalitária, o Estado Novo tornou o fruto apetecido. Pretendia-se proteger o regime de um ataque vindo de quem prezava muito pouco (muito menos ainda) a liberdade. O resultado foi o que se viu. Hoje, a linguagem que prevalece é a dos vencedores, que usam o termo "fascismo" a torto e a direito para legitimarem uma narrativa de conquista e manutenção do poder e de apagamento da história. Há muito a aprender com o Estado Novo, se não nos deixarmos aprisionar nas armadilhas do falso consenso sobre o que foi o regime.

    Gostei da forma como apresentas a questão de o fascismo vir da tripa. Estou de acordo. A extrema-esquerda académica está a abafar toda e qualquer possibilidade de reflexão séria. Limitam-se a doutrinar. Já fede. Nas faculdades de letras e ciências humanas cometem-se atentados constantes ao pensamento crítico e à liberdade que ele implica.

    Ana Pedro

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