Treta da semana (atrasada): e o problema do alakazam.
Estas coisas são como as cerejas. Acerca do meu post sobre o problema do mal, apesar de admitir que os exemplos que dei ilustram «estados de coisas maus M, que consideramos moralmente errado, [e] devemos fazer tudo para [...] prevenir», o Domingos Faria afirmou, no entanto, que «se Deus existe, ele não pode eliminar tais estados M sem que também elimine estados de coisas bons que os superam, nomeadamente o livre-arbítrio». Indo mais longe, Faria alega até que «se é melhor um mundo com livre-arbítrio do que sem livre-arbítrio, Deus pode ter uma razão para permitir todos os estados de coisas que resultam do livre-arbítrio, quer tais estados sejam morais quer sejam imorais» (1). Isto cria mais problemas do que resolve.
Primeiro, permitir «todos os estados de coisas que resultam do livre-arbítrio» não nos diz se é o livre-arbítrio do violador se o da vítima, se do opressor ou do oprimido, se do caçador ou da presa. E não se vislumbra justificação moral para Deus resolver tais conflitos sempre em favor do mais forte. Em segundo lugar, os tais «estados M» não são letras abstractas. Há dias, uma mulher transtornada tentou suicidar-se no Tejo com duas filhas pequenas. As filhas acabaram por morrer. Neste “estado M” não há vestígios de qualquer valor moral superior que Deus tenha protegido ao permitir tal desfecho. Não foi o livre-arbítrio das vítimas mortais, uma bebé e outra com 4 anos. Também não deve ter sido o livre-arbítrio da mãe, considerando o estado em que estava e o desespero que a assolou em seguida. Compreendo que Faria tenha de chamar a isto um “estado M” para conseguir dizer que protege “coisas boas que o superam”. Dava cabo da tripa se enfrentasse o concreto em vez de gesticular em abstracto. Compreendo, mas não aceito.
A tese de que Deus fez neste o melhor de todos os mundos possíveis também é inconsistente com outras partes da mitologia Cristã. O Paraíso devia ser melhor do que a Terra. Deus teria até evitado muito mal e sofrimento se tivesse criado, logo no Paraíso, somente as pessoas destinadas a ir lá parar. O Inferno também está a mais. Não deverá haver “coisas boas” que superem o sofrimento eterno de forma a justificá-lo moralmente. Mas discutir isto é como discutir a diferença molecular entre a kryptonita verde e a kryptonita vermelha. Mais interessante será considerar os detalhes desta hipótese de vivermos no mundo ideal, criação de um deus perfeito.
Imaginemos um universo hipotético igual ao nosso em quase tudo excepto que, nesse outro, basta apontar o dedo e dizer “alakazam” para fazer alguém irromper em chamas e morrer num sofrimento horrível. Porque eliminar essa possibilidade resulta num universo melhor, Deus terá criado este nosso universo onde é inócuo apontar o dedo e dizer “alakazam”. Livrou-nos de um mal sem eliminar “coisas boas” como o livre-arbítrio. Até aqui parece fazer sentido. Mas, no nosso universo, podemos obter o mesmo efeito regando alguém com gasolina e atirando um fósforo. E é tão mais fácil quanto mais indefesa for a vítima. Um bebé, uma pessoa amarrada ou com as pernas partidas, por exemplo. Ou seja, Deus consegue impedir que se incinere pessoas com um dedo e “alakazam”. Isto não elimina “coisas boas de maior valor”. Mas se for com gasolina e um fósforo então já não dá. Sendo esta diferença irrelevante, quer para a moralidade quer para o livre-arbítrio, a proposta de Faria não faz sentido.
Acontece o mesmo pelo outro lado. Imaginemos um universo hipotético no qual ninguém sofria de insanidade, doença de Alzheimer, psicoses ou depressões. Estas maleitas causam males e sofrimento além de degradarem o livre-arbítrio. Segundo Faria, isso não pode ser melhor do que o nosso universo senão era assim que Deus o tinha feito. Temos de assumir que alguma “coisa boa” desconhecida compensa todos os problemas mentais e não pode existir sem estes. O mesmo para os nossos reflexos. Se fossem melhores haveria menos acidentes. Deve haver alguma “coisa boa” desconhecida nos acidentes. Que nem pode ser o livre-arbítrio porque são acidentes. Do cancro à unha encravada e do tsunami ao granizo, para cada mal tem de haver um bem desconhecido. Milhões e milhões e milhões de “coisas boas” que ninguém faz ideia se existem.
Seja o que for que se observe, é sempre possível conjecturar várias explicações. Por isso, problema de compreender a realidade é sempre o problema de escolher a melhor entre várias explicações alternativas. Neste caso, uma explicação é a de que este universo é governado por um deus infinitamente bom que criou tudo para ser o melhor possível. Esta explicação complica mais do que explica. Para cada mal que se observa, exige assumir um bem desconhecido que o compensa. Para cada melhoria que pareça possível, exige alegar um mal desconhecido que a anula. Fica tudo tão pejado de bens e de males ocultos que nem com a criança a afogar-se é possível saber se é melhor salvá-la ou deixá-la morrer.
Há muitas explicações alternativas. Muitas religiões, muitas cosmologias, muitos contos, lendas e teorias. Mas, neste momento, há uma explicação que se destaca. É a de que as regularidades do universo se devem a factores impessoais que não são bons nem maus. Esta explica-os em detalhe em teorias como a da evolução, relatividade ou mecânica quântica. Esta explicação dispensa os incontáveis bens e males ocultos que a outra exige e deixa a moral a nosso cargo. Esta explicação diz-nos que é possível melhorar as coisas e diz-nos exactamente o que precisamos fazer para isso. Esta explicação diz-nos o que vai acontecer antes que aconteça, e acerta no que prevê, em vez de só debitar desculpas para o que já aconteceu. Esta explicação não precisa de deuses invisíveis, nem de milagres, nem de fé ou mistérios que nunca se possa desvendar. Esta é a melhor explicação.
1- Treta da semana (atrasada): o problema da má lógica.